Ás Mulheres Portuguêsas/As pobres mães
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PORVENTURA evocará este titulo míseras mulheres desgrenhadas, arrepanhando-se de dôr, ante a morte que lhes arranca dos braços os filhos estremecidos...
Ou a visão dolorosa das que os vêm partir, na força da vida, frementes de esperanças e ambições, chamados pela lei para a guerra odiosa...
Ou, ainda, pobres mulheres vagabundas, arrastando os seus farrapos pelas ruas e caminhos, mendigando baixinho, numa vergonha ou num pavôr, para os sêres informes que levam nos braços e pendurados ás saias, culturas para a dôr e para a doença, crimes e loucuras em fermentação...
E, entanto, não são essas as que merecem a epigrafe que encima estas palavras.
É mais dôce o seu viver, mais calma a sua existencia...
É ao recolhimento da vida burguêsa que iremos buscar essas pobres mães, que a sociedade moderna, no impulso avassalador e tiranico de necessidades e exigencias novas, vai fazendo martires pelo sentimento e pelo coração.
São essas mulheres naturalmente inteligentes, mas fundamentalmente ignorantes, que sofrem pelo afastamento progressivo dos filhos do seu amôr e do seu encanto, a par e passo que os vêm crescer em inteligencia e saber.
É á classe média, a mais numerosa e nacionalisada, a mais apegada a preconceitos e tradições, que vamos buscar o nosso exemplo, porque: — o povo operario, caminhando revoltoso e tumultuosamente para o futuro; o dos campos, muito perto ainda do primitivismo animal; a alta burguesia e os restos desmantelados das velhas aristocracias, despaízadas pela educação e pela existencia só de luxo e egoismo — não podem fornecer os elementos comprovativos para a nossa these.
Um dos muitos axiomas fabricados para satisfação da nossa vaidade, e que transmitimos gostosos pelo prazer de nos iludirmos e pela preguiça em nos emendarmos, é a conhecida frase — que faz comover sentimentalmente os mais áridos corações — a mulher portuguêsa é uma bôa mãe.
Ora se olharmos a maternidade apenas como a funcção animal de conceber, ter o filho, amamentá-lo e cuidá-lo materialmente, nos primeiros três ou quatro mêses da sua existencia, a mulher portuguêsa é, realmente, uma bôa mãe.
Tudo a predispõe para isso. A bondade natural da nossa raça, essa bondade passiva feita da indolencia atavica de sangue oriental que nos anda nas veias; a belleza efemera, quasi toda feita da frescura dos poucos annos e da delicadeza das linhas que a maternidade ainda não engrossou; o esmagamento duma longa série de gerações em que viveu no recolhimento freiratico da antiga vida portuguêsa, e ainda hôje sem os cuidados rudes de procurar a subsistencia, encargo exclusivo do homem...
Tudo predispõe a mulher, na doçura amolecedôra do nosso clima, para ser uma cuidadosa mãe: cheia de mimos para os seus pequenos; temendo vê-los chorar, como quem teme uma trovoada; muito ciosa das suas prerogativas, quando se trata do enxoval de bébé, da moda dos vestidos, dos chapéos e das bótas; sacrificando-se, em caso de doenças; tendo, emfim, todos os carinhos e todos os merecimentos duma bôa aia.
Mais tarde, procurará dar ás filhas uma educação primorosa, segundo o seu ponto de vista, não se poupando ainda a sacrificios para que toquem no seu piano, saibam prendas de mãos, e um bocadinho de francês para não se envergonharem numa sala...
Emquanto aos rapazes, cedo entregues aos professores que os levam a exame, ficam — graças a Deus — livres de toda a responsabilidade de educadora.
Para com as filhas é mais longa a sua missão , que não é desagradavel a espiritos que ficaram ignorantes das mais singelas regras de alta moral.
Quando as raparigas chegam á idade de procurar marido, ahi dos dezeseis para os dezoito, começa para a mulher o desempenho do papel, annos atrás a cargo da sua propria mãe, quando a acompanhou a todos os divertimentos, aguentou calôres e frios nos passeios da móda, cabeceou pelas reuniões dançantes, fez sacrificios para lhe comprar vestidos vistosos, despojou-se dos seus adornos para enfeitar as filhas, porque — e esta frase é bem caracteristicamente portuguêsa e lança toda a luz no módo de ser e nas aspirações da nossa pobre mulher — já agradou a quem tinha de agradar.
Agora é a vez da filha ir para a amostra, até encontrar senhor. Sujeitam-se a tudo: trabalham, quando não têm criadas, nos mesteres mais humildes, para que as filhas desempenhem o seu papel de princesinhas de contos á espera do principe encantado que as fará soberanas de deslumbrantes reinos imaginarios...
A rapariga, assim preparada, casa emfim, realisa a sua ambição, está finalmente arrumada — como é vulgarissimo dizer-se quando uma noiva passa, sorridente e confiada, dos mimos da casa paterna para os braços de um homem que na maior parte das vezes é quasi um desconhecido.
Pobres dellas!... O que julgam o fim é apenas o principio — da sua árdua missão de mãe de familia.
Deixou de ser uma criatura sem deveres nem responsabilidades, a quem tudo se perdoa e desculpa, para ser a pedra basilar desse sagrado templo que se chama o lar.
Vai sêr a mãe! Vai pertencer-lhe, só a ella, por longos e dolorosos mêses, viver da sua vida, alimentar-se com o seu sangue, sentir pelos seus nervos, um pequenino ser informe que é o seu filho, que será para o futuro um homem ou uma mulher, que poderão ser uns criminosos ou uns santos, doentes ou sãos, devido, em muito, aos cuidados, preocupações e higiene moral e material da mãe.
Nascido para a vida, é ainda o objecto dos seus cuidados e amôr. Treme pela sua fragil existencia, alimenta-o com o seu leite, acalenta-o no seu regaço, — continúa a viver da sua existencia, póde assim dizer-se.
A mãe sente-se satisfeita com esses cuidados que dispensa aos pequeninos seres, que lhe enchem de ternura e de encanto o coração; e, cuida, justamente, que ninguem será capaz de os tratar e amar como ella...
Mas esta mulher tão cuidadosa e carinhosa não é, não pode ser, uma bôa mãe! Só o instincto a guia, e o homem de hôje é por tal fórma o producto de costumes e civilisações sobrepostas, que deixou ha muito de ser o animal de instinctos, segundo a natureza, para ser um producto de arte e de trabalho e de paciente cultura.
Educar uma criança de hôje, não é manda-la para a escola para que saiba lêr e escrever; é muito mais do que isso!
Ainda antes de nascer, já a criança deverá ser respeitada e amada, cohibindo-se a mãe de muita coisa que a póde prejudicar, cuidando do seu proprio somno, da sua alimentação, e da sua higiene, para que a delicada planta humana desabroche vigorosa e possa resistir e desenvolver-se propiciamente.
Conhecem, por acaso, a maior parte das mães, a responsabilidade duma gravidez?
Sabe a mulher que casou com a educação que descrevemos, que do conhecimento e da prática de simples noções de hygiene póde evitar aos seus filhos terriveis males, quasi todo o estendal das doenças infantis, que levam para a terra centenares de corpinhos inermes: desde a enterite, que faz das mais lindas creanças pequenos cadaveres ambulantes, até á atrepsía que, sob as côres rosadas da saude, disforma o esqueleto, dobrando as pernas em arco, dando ás criancitas o andar grotesco de marrequinhos fóra da agua?
A propria tisica, a escrofulose, a anemia, como as inúmeras nevróses que desvairam a raça humana, são quasi sempre evitaveis se uma vida infantil regular e higienica tonificar organismo e o preparar com a resistencia precisa para o triumfo dos principios vitaes.
Partindo do cuidado, quasi só material, dos primeiros dois ou três annos, a missão da mãe redobra a cada passo de dificuldades e requer toda a inteligencia e a tenacidade duma grande obra.
É então que todos os desvelos serão poucos para vigiar a consciencia que vai despertando, e que é necessario começar cedo a ser educada e dirigida para o bem.
Não faltará quem se ria ouvindo falar em educação duma criança de três ou quatro annos; e, no entanto, nada mais sério e nada mais util do que saber aproveitar a franquêsa dessa idade, que ainda não sabe mentir, para conhecer na criança o homem ou a mulher que será no futuro. É a ocasião de poder aproveitar todas as qualidades de um caracter e até os seus defeitos, e convertê-los em virtudes, sem torcer a vontade nem o temperamento individual.
E a mãe, a pobre mãe, que é a mulher da qual descrevemos o casamento, começa então a sentir que o seu filho se lhe escapa dos braços, arredando-se-lhe do coração, alheando-se-lhe do espirito.
Dahi em diante, a criança, pela vida e pela alegria da qual ella sacrificaria gostosamente a sua propria vida, dá cada dia um passo que a tornará uma estranha para aquella que lhe devia ser a mais certa e mais respeitada guia.
É quando, cheia de curiosidade, começa a abrir os olhos do espirito, que se não fartam de luz, e pergunta tudo quanto existe, tudo quanto lhe fere a atenção, sempre desperta e voluvel.
As coisas mais simples, como as coisas mais complexas, tudo procura saber e tudo é preciso que se lhe explique duma maneira comprehensivel. É o momento unico de lhe dar noções que nunca mais esquecem e que pela fórma estejam ao alcance dos seus poucos annos e rudimentar inteligencia, mas pela substancia resumem os conhecimentos e verdades que lhe serão uteis pela existencia fóra.
Se a mãe não responde, a criança desinteressa-se de coisas sérias e torna-se futil, ou vae fazer as suas perguntas ao pai, quasi sempre mais culto, e que por esse motivo passará a ser considerado superior á mãe ignorante.
Se a mãe, não querendo passar aos olhos da criança por inferior, diz uma coisa ao acaso, que não é precisamente a verdade, o mal é ainda peor porque não tardará que a criança saiba, por estranhos, o contrario do que lhe disseram.
E não imaginem que ella esquecerá, não! Na primeira ocasião saberá mostrar a sua estranhesa.
Cresce: da escola para sujeição, onde a mãe a meteu por ser impossivel tê-la em casa desde os três annos, passa a frequentar as aulas públicas. Tem os seus compendios, que lhe falam de coisas de que não tinha a menor noção; cada passo é uma dificuldade, cada palavra um barranco, cada materia uma novidade, que o professor, entre tantos discipulos a reclamar-lhe a atenção, não tem tempo de aclarar-lhe o sentido. De lagrimas nos olhos, o livro na mão, a criança irá procurar aquella que mais estima, e que mais tem tido chegada ao coração desde que existe, para que lhe explique o que não comprehende. E a pobre mãe não saberá auxilia-la, terá de confessar a sua impotencia, a sua ignorancia, diante do filho que se desespera!
Quantas vezes, indo encontrá-lo a cabecear sobre o livro que não comprehende, a mãe não teria desejo de tirar-lh'o das mãos e, numa clara leitura e uma inteligente explicação, fazê-lo aprehender o sentido que lhe foge?!... mas... a pobre mãe não o poderá fazer, porque não sabe tambem! E quantas vezes a sua revolta de ignorante não se torna uma defesa para a criança mandriona, que repetirá o que lhe ouve: — Para que serve saber isto ou aquillo? Sem estudar tambem se come e bebe!...
Se a criança é estudiosa e inteligente, em vez de pensar com leviandade sobre o assumpto, com a aprovação da mãe, concentrará todo o seu espirito no estudo e irá perguntar aos estranhos o que em casa não poude saber.
A pobre mãe será, aos olhos de seu proprio filho, uma ignorante, uma inferior.
De dia para dia esta convicção se irá radicando no ânimo da criança, à medida que fôr adquirindo conhecimentos, desenvolvendo a inteligencia.
O trabalho que se faz no seu espirito é lento , mas é seguro. Homens e mulheres feitos, não deixarão de amar as mães — quem o duvída? — Mas com esse amôr protector que se tem a uma boa e delicada ama que nos acalentou e amimalhou na infancia, o amôr deprimente que se tem pelos inferiores; não o sagrado afecto do filho, que o é, triplicemente, pelo sangue, pela amamentação e pela inteligencia desabrochada ao calôr do ensinamento materno.
O convencionalismo, a mentira social, encobre com falsos sentimentos verdades que julga crimes, mas que a natureza, na sua rudesa primitiva, não considera tais. Assim, quando a uma criatura em evidencia, pela sua nova posição social, se descobre uma quasi vergonha que as faz esconder a inferioridade dos pais, todos se indignam e lh'o lançam em cara como sangrento insulto.
Parece-nos um crime contra a natureza, mas na realidade é um sentimento bem humano e desculpavel nessas criaturas, roídas de ambições, na ânsia de fruir gosos inéditos para os nados e criados na pobresa.
Quanta superioridade de ânimo lhes seria precisa para fugir ao mesquinho ponto de vista duma sociedade, que, se por um lado exproba esses sentimentos como um crime, por outro lado ri impiedosa dos ridiculos familiares de que o individuo não é culpado. Quanta vaidade, quanto orgulho amachucado, curtirão esses que querem aparentar grandesa é se vêem acorrentados á ironia dos seus inimigos por uma longa série de criaturas inferiores que irremediavelmente os prendem á mediocridade!... É das mais tragicas e ao mesmo tempo das mais comicas situações que a civilisação democratica dos nossos dias trouxe á babugem das suas ondas, de envolta com os parvenus, tão invejados por uns como despresados por outros...
Podemos considerar uma inferioridade de espirito esse sentimento de vergonha pelos seus? Certamente.
Mas não é nobre e alto do coração quem o quer ser. Nós todos, com os nossos assomos de independencia, não somos mais do que o producto do meio em que vivemos e nos criámos, os productos duma bem ou mal orientada educação, um conjuncto de convenções e mentiras numa sociedade construida sobre aparencias e falsidades.
Não condemnemos pois o filho que no seu intimo despresa intelectualmente a mãe, que no entanto estima e até julga respeitar.
A mulher tem bastante intuição, mesmo quando é ignorante, para comprehender o sentimento que inspira aos filhos. Embora se resigne dôcemente, no seu apático papel de tutelada, essa convicção deve-lhe ser amargurosa.
Para seu bem, e, mais ainda, para bem da sociedade que não póde já dispensar-lhe o concurso, preciso se torna que a mulher sáia desta situação que a inferiorisa, e a inutilisa como factor importante da civilisação.
Comprehendendo a vida pelo estudo da grande mestra Natureza, é preciso que a mulher se convença de que se não é bôa mãe só porque se deu vida a uma criança, que no seu seio se gerou e completou e com o proprio leite se nutriu, rodeada de mimos e cuidados durante a infancia.
É preciso que a essa maternidade puramente material se alie a nobre maternidade do espirito e da educação — unica que lhe dará a garantia de possuir o respeito e o afecto confiado dos filhos, que sempre encontrarão nella avisado conselho.
Procurando nos animais o exemplo que nos oriente, vemos que todos elles desconhecem a mãe (porque o pai lhe é quasi sempre um estranho) desde que a criança se tornou forte e dispensou o ensinamento e a guia que nos primeiros passos lhe eram indispensaveis.
O mesmo succede ao homem, que se vai distanciando intelectualmente da mãe desde que deixa de lhe ser conselho e auxilio dos tenros annos.
Todo o falado amôr poetico pela mãe, é apenas o producto duma convenção sentimental adquirido pelo homem á medida que se foi civilisando.
Talvez até uma simples questão de moda trazida pelo romantismo, como os nefelibatas e simbolistas nos déram ultimamente nos seus lirismos as velhas criadas e as boas amas...
Durante o naturalismo forte da Renascença, a mãe é completamente esquecida pelos poetas e prosadores. Nas proprias telas a mãe glorifiada pelo pincel dos mestres é a Virgem, a mãe fóra da humanidade!
Como reação ao culto da mulher amante, soberba da sua belleza e da sua força, veio o culto, bem mais postiço, da mulher, só porque o acaso a fez mãe.
A mulher póde e deve obstar, pelo esforço da sua energica vontade, á grande amargura que a espera quando a alminha radiosa do seu filho vai fugindo ao convivio do seu pobre espirito inculto para se lhe tornar quasi um estranho.
A mulher, na classe a que me tenho referido nestas paginas, pode educar-se a si mesma, que não lhe faltam meios para o fazer.
Se o não fizer abdica dos seus direitos, exactamente quando mais alegrias compensadoras lhe trariam.
Agora que o homem começa a olhá-la como sua igual e companheira, toda a responsabilidade lhe cabe no despreso intimo, embora inconfessado, que a sua ignorancia lhe merece.