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Ás Mulheres Portuguêsas/III — A mulher solteira perante o codigo civil

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III
A MULHER SOLTEIRA
PERANTE O CODIGO CIVIL


DISSEMOS atrás — que não são as leis portuguêsas das mais intolerantes e agravantes da situação da mulher adentro da sociedade e da familia. Demonstraremos esta opinião, em ligeiras observações que nos fôrem ocorrendo — que não em estudo comparativo dos codigos estrangeiros, por nos falecer competencia para tanto.

É certo que encontrâmos no codigo português graves desigualdades e injustiças para com a mulher, não como é de facto, pela educação e pela tradição, no nosso paiz, mas como deveria ser.

Não obstante, a mulher, tal como se conserva em terras portuguêsas, não tem direito a reclamar maiores garantias legais, porque até agora nem sequer se tem utilisado das regalias e igualdades que o proprio codigo lhe confere, e são ainda hôje, em paizes mais adiantados do que o nosso, outros tantos reductos a conquistar.

Vemos na França, por exemplo, a mulher perder o seu nome com o casamento; deixar — pelo simples motivo de se ligar a um homem legalmente — de sêr a pessoa tal, com o nome da familia em que nasceu e a que pertence pelo sangue e pela educação (e á qual não poderá nunca deixar em absoluto de pertencer, por defeitos e qualidades de que é inconsciente herdeira) para se tornar em madame... do nome do marido.

Isso mesmo deixará de ser se, viuva, tornar a casar; ou, divorciada, mudar, como quem muda um vestido usado, de nome e de marido conjunctamente.

A tradição conservou na livre e intelectual França esse costume, fixou-o mesmo como lei, e, afinal, onde essa lei tinha menos razão de ser era precisamente nesse paiz, onde o divorcio já está promulgado e usado largamente. Havemos de concordar que é em extremo absurda a coexistencia desses dois usos.

Para a mulher francêsa é tão natural este costume, que só raramente a faz indignar; que as maiores servidões, se a ellas nos afazêmos pela educação e pelo habito, tal nos não parecem, senão por um esforço de raciocinio que nem sempre chegamos a formular.

Nada mais ridiculo, na verdade, do que essa lei, resto, ao que se me afigura, do velho direito romano, que fazia da mulher a pertença do homem. Fosse o pai, absoluto senhor cujas decisões se aceitavam sem protesto; ou o marido, que recebia a esposa como um festivo presente, um objecto, ou uma femea que se compra; fosse o irmão, o proprio filho ou cunhado.... todos, sucessivamente, tinham direitos e poderes sobre a criatura humana, só porque o acaso de um utero, a fatalidade germinativa, a fizéra mulher.

Nas antigas civilisações a mulher era sempre a escrava que o homem comprava ou roubava , consoante o regimen de guerra ou de paz em que vivia. Quantas coisas fazemos e usâmos, que, sem o presentir, recordam apenas cerimonias e distinctivos da nossa servidão, desde as joias com que nos adornâmos: pulseiras, aneis, colares, brincos, cintos e outros enfeites, que apenas são o resto das cadeias que prendiam a escrava ao senhor, fisica e moralmente, até ás usanças e cerimonias do casamento; tudo nos mostra que a tradição tem trazido, através dos seculos, os restos barbaros das civilisações ídas, apesar mesmo das leis que se reformaram e mordernisaram, seguindo as novas orientações sociaes.

Quem nos dirá, ao vêr lindos braceletes constelados de pedrarias enroscando-se cariciosamente no braço duma mulher formosa, que essas joias representam as algêmas e pulseiras das antigas escravas, vincando-lhes os pulsos como um traço de fogo a lembrar-lhes a sua miserrima dependencia?

Quem nos dirá, vendo fortunas condensadas em solitarios, suspensos como gotas de agua irisantes do lobulo da orelha feminina, que o brinco era ainda o signal da servidão, como o era a argola no nariz e no beiço, cahidas em desuso, assim como as algêmas dos artelhos, por mero capricho da moda, tão inconsciente neste abandono como na conservação dos primeiros!?

Assim, tambem, o que no casamento moderno e civilisado nos parece apenas fórmulas de cortezia, não é mais do que o éco quasi extincto dos tempos em que a mulher era a propriedade, vendida, dada, ou raptada, que passava por esses meios, todos brutais, do poder absoluto do pai para o não menos absoluto poder do marido.

O que significa o pedido do casamento, o que é hôje legalmente esse costume? Nada mais do que uma deferencia das filhas e dos noivos.

Perante a lei, a mulher maior de vinte e um annos não deve ser pedida a ninguem, visto que se pertence sómente a si propria.

O que significa essa tresloucada fuga, depois da solemnidade consorcial, para hoteis e casas estranhas, — que os jornaes anunciam pomposamente como a ultima palavra do bom tom — senão o rapto da mulher primitiva, senão o abandono da familia e da tribu em que nasceu pela nova familia, nova tribu, nova patria, que tudo seria para o futuro a que o marido lhe désse? Já na Grecia e em Roma este costume pertencia á tradição, e a noiva não transpunha pelo seu pé o limiar da porta da nova casa e sim era levada nos braços do marido, como significando bem claramente a posse do esposo sobre a mulher, recordando-lhe que fora dada, vendida ou trocada por algumas cabeças de gado, como ainda hôje sucede em tribus selvagens da Africa.

Tudo nos mostra a tradição, revivendo através das idades e das gerações, numa teimosia de força inconsciente, a que só o estudo aturado e o raciocinio fórte podem pôr um dique.

Longe me levou, afinal, a observação sobre a lei e uma usança, que nem sequer são do nosso paiz como do nosso codigo.

Em Portugal, a verdade é que nem a tradição nem as leis nos impõem tal costume. Uma mostra-nos as familias usarem indistinctamente o nome dos pais ou das mães, mais tarde aliando-os numa simpatica e logica união.

Dizem-nos as outras como a ausencia da lei sálica faz transmitir reinos, titulos e morgadíos pela linha feminina, na falta da masculina, sem desdouro para ninguem.

A mulher portuguêsa, quando casada, não perdeu nunca o seu nome, ou, melhor dizendo, o seu apelido de familia. Só o perdia quando vinha do anonimato do povo ou da inferioridade da classe média para a grandêsa da fidalguia brazonada.

Quando muito, ajunta hôje, por galanteria, ao seu nome individual o nome do esposo.

Nos ultimos tempos é que a móda, na sua fatuidade, tem querido trazer para a nossa terra o ridiculo costume da França, Belgica e outros paizes — exactamente quando por lá já se trabalha para o modificar.

É o defeito de quem imita, sem discernir, o que é bom e o que é máu...

Mas continuemos abordando alguns exemplos que nos fôr sugerindo o folhear do codigo, muito por alto, sem a responsabilidade do profissional.

A mulher solteira é quasi livre, equiparada ao homem perante o codigo. Mas nesse quasi, que imenso abismo ainda a transpôr!

Depois dos vinte e um annos póde livremente ganhar a sua vida exercendo a profissão para que se julga habilitada. É um individuo autónomo. Poderá ser professora, medica, proprietaria, industrial e comerciante.

Será senhora absoluta do que é seu como da sua vontade; pagará rendas de casa e contribuições para o estado; será util, será um factor importante na sociedade; mas, como os doidos, os menores, os surdos, os cegos, não poderá ser testemunha em actos públicos e solénes da vida do homem, como não é aceite o seu testemunho em qualquer acto civil, não é aceite a sua fiança para qualquer transação comercial.

Não poderá ser tutôra dum menor, por melhor educadora e mais habil administradora que seja — a não ser de filhos e netos, e, desses mesmos, com restrições e cautelas vexatorias para a sua dignidade individual — mas, para cúmulo de disparate, póde ser tutôr dos seus sobrinhos o marido, quando o tenha!

A lei não a exclúe de nenhum trabalho; apenas o costume, a tradição e o homem (sempre temeroso da concorrencia das criaturas que diz desprezar e achar inferiores) fazem reparo, a cada nova conquista da tenacidade feminina...

A mulher póde estudar as leis do seu paiz. Poderá — visto que a lei é igual para todos e não faz distinção de pessôas e de sexos, salvo nos casos especialmente declarados no art. 7.º do Cod. Civil — frequentar o curso de direito e tirar a carta de bacharel. Mas essa mesma mulher não poderá estar em juizo como testemunha civel, não poderá apresentar-se com procuração ou mandato, nem requerer justiça, salvo nas proprias questões, nas dos ascendentes ou descendentes e nas do marido, em caso de impedimento deste.

As mulheres são equiparadas pelos codigos aos menores não emancipados — ambos menores perante a lei!

Ora a mulher, que não tem artigo especial na lei que lhe prohiba ser proprietaria, industrial, artista, medica, erudita, comerciante, professora , isto é, que póde ser tudo quanto representa inteligencia, precisão, vontade e estudo; que póde frequentar os cursos superiores onde se instrúe o homem do seu paiz, que em qualquer ramo do saber humano póde ser alguem da estatura intelectual e moral duma Clémence Royer ou duma Luiza Michel; a mulher não tem a faculdade de se ingerir nos negocios publicos! Não é eleitora nem elegivel; não póde averiguar — porque não tem esse direito legal — como é gasto o dinheiro que paga como contribuinte, para onde vai o fructo do seu trabalho.

Poderá fazer pender a balança eleitoral — mesmo que as eleições fossem o resultado arithmetico das listas verdadeiramente entradas na urna — influindo nos seus caseiros, operarios, e quaisquer dependentes; mas não poderá dar o seu voto, que seria, certamente, mais responsavel e consciencioso do que o dos analfabetos que lhe cultivam as terras e a servem.

Não poderá intervir, senão ilegalmente, pela intriga e pela mentira, nos negocios de que depende o seu socego e fortuna, o destino da Patria, que lhe pertence tanto como aos homens que a governam.

A lei, apesar do artigo 7.º do Cod. Civil que diz ser igual para todos, é bem desigual e vexatoria para a mulher, quando mesmo solteira, senhora dos seus bens, árbitra da sua vida moral como material.

Não posso terminar sem me deter em dois artigos do codigo civil que merecem a nossa atenção mais demorada e tem o seu logar aqui, visto referirem-se ainda á mulher solteira.

— «É prohibida a investigação da paternidade illegitima — diz o artigo 130.º — salvo em casos que entram francamente nos crimes punidos pelo codigo penal».

— «É permittida a investigação da maternidade» — diz a seguir o artigo 131.º

E fica-se a gente a pensar: — que sociedade, que justiça, que lei é esta, que tira aos homens todos os deveres e toda a responsabilidade, em actos de que, se não é o maior culpado, é, pelo menos, tão culpado como a mulher.

O que póde ser um filho ilegitimo na vida de um homem? Um encargo monetario, quando muito. Nenhuma deshonra o fará córar por esse fructo da sua leviandade. Nenhuma criatura, por mais honesta e puritana, deixará de lhe estender a mão e recebê-lo em sua casa como amigo. O proprio filho, dizendo o nome do pai, não sentirá nunca o frio mortal do desprêso que persegue, quasi sempre, o que só pode dizer o nome da sua pobre mãe.

Solteiro, esse homem não terá dificuldade em ser aceite como esposo por qualquer senhora honesta, que, por sua vez, se não deshonrará em se tornar a mãe do filho que é o filho do seu esposo.

Pois o homem, nestas condições sociais, fugiu, pelas leis que fabricou, ao incomodo da investigação da sua paternidade ilegitima, ao passo que lançou para a mãe toda a responsabilidade do seu crime!

Para a mulher que deixa de ser honesta para a sociedade, mostrando um filho que não teve do casamento; para a mulher que só por excepção póde agenciar com o trabalho o quanto baste ao seu sustento; para a mulher que nenhum homem aceitará para esposa, sabida que seja a sua falta; para sobre a mulher toda a responsabilidade, direi mais, toda a durêsa da lei, permitindo ao filho a investigação da maternidade, ao passo que lhe nega a da paternidade!

Quantas lagrimas misteriosas e quantos desesperos e angustias não representam esses pobres seres, vindos como um castigo, numa familia honesta, que a todo o transe quer encobrir o que é a suprema vergonha duma mulher solteira?!

Existencias de dolorosissimo sacrificio, desvendadas para o escarneo e o despreso do mundo, é tudo quanto representa essa disposição legal — só para a mulher!

Se a sociedade não condemnasse com o seu despreso a rapariga que se lhe apresenta com um filho que não tem no registo o nome do pai; se a sociedade garantisse á mulher — por igual trabalho, igual salario — e lhe abrisse largamente novos horisontes de estudo e profissões remuneradoras, que a tornassem monetariamente livre, então o codigo poderia, sem grande injustiça, livrar o homem da responsabilidade a que o filho infeliz e miseravel o vai chamar. Sim, porque só quem é muito desgraçado encontrará satisfação em procurar as criaturas que o trouxeram para a vida e se escondem covardemente atrás do misterio.

O egoismo masculino revelou-se ferozmente nessas duas linhas, que são a maior das cobardias para com a mulher, sua cumplice, e para com o filho, sua victima.

Se a mulher pudesse apresentar com honra os filhos que são sómente seus, porque o pai os não quer legitimar, por certo que não haveria muitas que fugissem a essa responsabilidade, porque a mulher, como todas as fêmeas, tem, em geral, o amôr pelos filhos pequeninos muito mais vehemente do que o homem. É o amôr animal e inconsciente, que só a civilisação, com as suas exigencias avassaladoras, tem atrofiado.

O amôr do pai, pelo contrario, é o sentimento adquirido com a civilisação e que a mesma sociedade tem todo o interesse em proteger e desenvolver para salvação sua.

« Voltariamos ao matriarcado dos tempos primitivos, se a mulher pudesse honradamente apresentar os filhos sem pai; seria a dissolução da familia e da sociedade...»

Sim, seria tudo isso, mas não seria, ainda assim, nada que se comparasse á violencia da injustiça legal dos artigos 130.º e 131.º do cod. civil.