Ás Mulheres Portuguêsas/II — A mulher casada perante o codigo civil
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OCASAMENTO perante a lei e o casamento como de facto é perante a sociedade, são duas coisas por tal fórma contradictorias, que não se dirá á primeira vista que um corresponde ao outro, ou que um e outro não são mais do que o mesmo contracto bi-lateral constituido para a formação da familia legal.
Perante a lei, a mulher casada deixa de ser uma criatura livre, deixa de ser a senhora do seu destino e das suas ações, porque: — tem que prestar obediencia ao marido (art. 1185.º do Cod. Civ.)
— Deixa de ser a administradora dos seus bens, porque: — qualquer que seja a fórma porque se realise o contracto matrimonial, a administração pertence ao marido e só na falta ou impedimento delle a mulher tomará o seu logar, (art. 1189.º do Cod. Civ.)
— Á mulher é negado o direito de alienar ou adquirir quaisquer bens, tanto moveis, como imoveis, emquanto que o marido póde adquirir quaisquer, sem auctorisação da esposa, e alienar os mobiliarios, (art.os 1191.º e 1193.º do Cod. Civ.) Á mulher é totalmente prohibido fazer dividas, sem auctorisação do marido, emquanto que o homem póde, segundo o art.º 1114.º do Cod. Civ. §§ 1.º e 2.º, contrahir, só por si, dividas pelas quais respondem os bens do casal, no todo ou em parte.
— A mulher não póde ser a educadora dos filhos, pois que os filhos pertencem ao pai, que os rege, protege e administra, constituindo assim o poder paternal, segundo o art.º 137.º do Cod. Civ.
Embora o art.º 138.º proclame que a mãe comparticipa do poder paternal, e deverá ser ouvida em tudo que respeita os interesses dos filhos, tal não póde suceder, porque o pai é o unico representante do poder paternal, e contra elle a opinião e a vontade materna nada valem.
— Póde o pai requerer a prisão do filho desobediente e interná-lo em uma casa de correcção, que, embora a mãe queira sustêr esse acto da vontade paterna, a sua opinião não tem força, a sua voz não será escutada, nem a sua vontade terá valôr, por mais injusta ou violenta que lhe pareça a medida.
— Tratando-se do casamento do menor, é perfeitamente inutil a licença materna, porque em caso de dissentimento entre os pais, prevalece a opinião do homem, bastando o seu consentimento para se realisar o matrimonio, como preceitúa o art. 1061.° do Cod. Civ. E nunca o consentimento materno, só por si, póde prevalecer, por mais vantagens que a mulher encontre no casamento do filho menor.
— Viuvo, o homem administra e usufruirá os bens dos filhos menores, podendo contrahir segundas nupcias sem que lhe seja tirada a administração e o usufructo.
— Viuva, a mulher terá que dar contas da sua administração ao conselheiro que o defunto tenha deixado nomeado, se elle ainda depois da morte tiver reservado o poder de dirigir a esposa, sob pena de lhe ser tirada a administração (art.º 161.º).
Caso venha a contrahir segundas nupcias, a mulher perde imediatamente a administração e o usufructo da fortuna dos filhos menores, (art.º 162.º), o que seria justo se o homem no mesmo caso não continuasse a gosar os privilegios que lhe negam a ella.
O filho pode ser emancipado antes da idade legal pelo simples consentimento paterno; pelo consentimento da mãe só quando, viuva, tenha assumido o poder paternal (art.º 304 § 2.º)
Até para a tutela dos menores se prefere quasi sempre a linha paterna (art. 200.º § 5.º)
Portanto, legalmente, a mãe representa nada ou quasi nada na vida dos filhos, que, segundo o velho direito romano, pertencem á absoluta autoridade do pater-familiæ.
Quantos abusos e injustiças pode acarretar sobre as pobres criaturas humanas, que a lei ainda não considera emancipadas, um poder assim discricionario, é facil imaginar.
A lei é feita sobre a base de que todo o homem é justo, ama os filhos e só para o seu bem deseja concorrer; mas a vida dá-nos muitos e muitos exemplos do contrario e a lei podia temperar tão grande absurdo dando á mãe igual poder sobre o filho, que pertence aos dois, com o juiz ou o conselho de familia para decidir em caso de grande dissimilhança de opinião.
A mulher casada não póde negociar, exercer uma industria ou uma profissão, inclusivamente escrever para público e publicar os seus livros, sem auctorisação do marido. É o art.º 1187.º do Cod. Civ. que o manda.
— Tem obrigação de acompanhar o marido para onde o capricho deste entender que a deve levar, a dentro das fronteiras do reino. É o que reza o art.º 1186.º do Cod. Civ.
— Não póde abandonar o marido, embora sofra todas as tiranias dum genio diferente do seu, duma educação que seja o contrario da sua, dum caracter imcompativel com o seu proprio caracter, — salvo em casos muito especiaes previstos pela lei, e que, por bem conhecidos, o homem sabe evitar.
Caso fuja do lar conjugal, por lhe ser impossivel a existencia em comum, o marido póde mandá-la prender como a qualquer malfeitor e obrigá-la a retomar imediatamente, no seu lar odiado, o papel de mulher, sem que ao espirito revoltado, nem ao seu orgulho ferido, se dê o tempo de amortecer a violencia da dôr ou o impeto da revolta.
Só poderá gritar a sua indignação e pedir um pouco de liberdade, se o marido lhe dér, com público escandalo, as poucas coisas previstas pelo Codigo civil: — adulterio no domicilio conjugal ou com escandalo publico, desamparo completo, cevicias, ofensas graves, (art.º 1204.º)
— O homem que cometeu o adulterio, embora nas condições indicadas, tem a ridicula pena de três mêses a três annos de multa, conforme o art.º 404.º do Cod. Penal. Sobre a mulher cái toda a ira, todo o selvagem ciume do legislador, que defende nos maridos o direito do macho que não tolera o despreso da femea, chegando á ferocidade de tirar á mulher adúltera os proprios bens della, que serão entregues ao marido, arbitrando-lhe uma triste mesada que será o que o capricho do conselho de familia e o juiz quizerem ou entenderem. É doutrina do § unico do art.º 1210.° e outros do Cod. Civ.
Vemos portanto que, segundo a lei, a mulher, casando, perde todos os seus direitos e alforrias — póde considerar-se, legalmente, a tutelada do homem.
Mas se passarmos do dominio abstrato da lei para o campo da realidade, o contraste é completo.
Ao contrario do que se poderia supôr, sob a pressão de taes disposições legaes, a mulher em Portugal, como em quasi todos os paizes latinos, casa para ser livre! A sua liberdade não é legal, não é responsavel, mas é um facto filho da tolerancia masculina e, mais, dos costumes que se fôram adoçando e civilisando, sem embargo das leis continuarem persistindo na sua rigidez... de cadaveres.
A mulher solteira, a rapariga portuguêsa, como todas as suas collegas latinas, é mal preparada, mal educada para entrar na lucta da vida quotidiana.
Não anda só, não trabalha, não estuda, não sabe pensar por si, não vive independente e altiva, como qualquer rapariga inglêsa ou americana no seu quarto de estudante, lendo e estudando, cuidando da sua roupa e arrumando-a pelas suas proprias mãos, nas largas gavetas dos singelos moveis inglêses, com essas mãos que já fizeram a cama, passaram o panno humedecido no chão encerado, limparam o pó da mesa de trabalho onde colocaram uma jarra com flôres; essas mãos habeis e lestas que dahi a pouco prepararão no gabinete de fisica uma experiencia meticulosa e que á tarde saberão guiar com firmêsa a bicicleta ou segurar as redeas dum cavallo, bater com serenidade os remos do barquinho de recreio em qualquer lago dos arredores ou jogar qualquer jogo de fôrça e destrêsa.
A rapariga portuguêsa não tem opiniões, para não ser pedante; não lê, para não ser doutora e não ver fugir espavoridos os noivos, que por acaso a procurassem.
Não frequenta um passeio, não visita uma exposição, não assiste a um espectaculo ou á uma conferencia sem que a siga a familia toda, numa desconfiança de policias secretas.
Não lhe é permitido conversar com um homem sem levantar no espirito de quem a vê a suspeita dum interesse amoroso...
A rapariga que chega aos vinte annos, asfixiada sob esta amoravel tutela, que nem por ser amoravel e carinhosa deixa de ser opressiva, encontra no casamento uma relativa liberdade.
Liberdade que, as mais das vezes, é uma temeridade conceder á pobre criatura que durante tantos annos foi conservada e guardada, com o unico fito de ser entregue ao homem materialmente pura.
Guardar uma criatura é tirar-lhe a responsabilidade moral.
A criança habituada a ter uma pessoa que olhe por ella e lhe evite as temeridades e loucuras, se um dia a mandam brincar, entregue a si propria, pergunta sobresaltada: — quem me guarda?
A mulher solteira, que desde criança foi habituada a trabalhar, a andar só, a estudar e amar a santa natureza e a conhecer as mentiras sociais, sem se deixar deslumbrar pelas suas grandêsas nem desanimar pelas suas miserias, que fala naturalmente com os rapases, seus colegas no estudo e no trabalho; não pensará tanto em namorados como as nossas pobres flôres de estufa, que nada mais têm que as preocupe. Chegada a hora de casar aceitará com naturalidade uma mudança de vida que lhe exige fisiologicamente a natureza, mas que a vem sobrecarregar com responsabilidades e deveres muito mais sérios e graves.
A mulher no nosso paiz, embora a lei seja dura para ella, como vimos, encontra no casamento uma relativa alforria á sua vida de crisálida. Os guardas, que a não desamparavam um instante, desapareceram e ella sente-se livre alfim! É senhora de si e dos seus caprichos, que toma como manifestações da sua vontade. A casa pertence-lhe, pode dispô-la ao seu gosto, não tem ninguem que a contrarie — nem o marido, nesse primeiro tempo de casada. Na rua pode andar só, sem que ninguem repare. E que reparasse, o marido autorisa-a tacitamente a fazê-lo, porque homem nenhum iria hôje dar á sua propria esposa um diploma de incapacidade, fazendo-a guardar.
E a mulher, hontem ainda vigiada como uma criança, sente um certo orgulho em poder dizer comsigo: — sáio se quizer sahir!
E sai, as mais das vezes para nada — porque é ainda rara a mulher portuguêsa que sai por exigencias de trabalho profissional — para mostrar a si mesma que é livre.
Diz a lei que a esposa deve obediencia ao marido, mas que importa, se ella faz, geralmente, mais a propria vontade do que a delle ?
Que importa que a administração pertença ao marido, se não é raro que seja a mulher com assentimento delle, é claro, quem administra e guarda o dinheiro do casal?
Que importa que legalmente não possa comprar nem vender bens moveis nem imoveis, se é raro o esposo que vá interferir nas compras que a mulher faça, principalmente de bens moveis?
Embora não possa contrahir dividas sem licença do marido, não ha negociante que lhas exija para fiar a sua fazenda, certo que só em caso extremo o homem deixará de pagar as dividas contrahidas pela espôsa.
Embora não lhe assista o direito de se ingerir na educação dos filhos, a sua influencia sobre elles é bem mais decisiva do que a dos pais; e qual seria hôje o marido brutal que se atreveria a arrostar com a reprovação geral, arrancando violentamente um filho á tutela educativa da mãe?!
Embora não possa negociar, ter uma profissão ou industria, ou escrever para público, qual o homem que arcaria com a gargalhada geral que a sua tirania ridicula despertasse?!
Embora tenha obrigação de acompanhar o marido, para onde elle a quizer levar, dentro do reino, quantos exemplos vemos do contrario sujeitando-se mais vezes o homem á vontade e ao gosto da mulher?!...
Qual o marido, tirano de comedia, que obrigasse a mulher, que o não quer aturar, a voltar violentamente para o lar conjugal?
O proprio caso de adulterio em que o orgulho masculino mais sofre e menos póde atender os conselhos de bondade e perdão, nem mesmo esse já se desenlaça, senão muito raramente, entre gente civilisada, na carnificina e no rubro da tragedia antiga.
A dôr concentra-se na alma, e a tragedia, — que a ha sempre onde se despedaçam violentamente laços de sangue e de coração — fica silenciosa e respeitavel, na sua grande simplicidade. A mulher não é assassinada, mas o homem não é como dantes ridicularisado por uma falta de que só ella é a responsavel e a victima.
Por estas ligeiras observações parece-me ter mostrado bastantemente quanto é verdadeira a teoria já expendida aqui: — de que os costumes precedem as leis, que se modificam, mais dia menos dia, segundo a vontade e os habitos da sociedade que as reclama.
Não seria pois mais logico e mais sério educar desde já a mulher solteira para a sua alta responsabilidade de esposa e de mãe, modificando as leis que governam a familia, como se transformaram os costumes, tornando o casamento a união legal e respeitavel de duas criaturas que se juntam por sua livre vontade para constituirem a familia, tomando sobre si iguais encargos com iguais direitos?
Pois não é preferivel tirar á criatura que soube insinuar-se e apoderar-se da egualdade de facto, a irresponsabilidade que lhe garante a lei, dando-lhe os deveres e as vantagens?
Tanto mais que o maior perigo está ainda — em que a lei só cai, com todo o seu peso, sobre a mulher de caracter probo que não sabe dobrar-se nem mentir, conquistando com blandicias e hipocrisias, apoiada na fraquêsa masculina, o que legalmente lhe é defêso.