Últimas Páginas (1912)/S. Frei Gil/I

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O solar de D. Rui de Valadares, Senhor de Mortágua e Gonfalim, era a duas léguas duras de Vouzela, numa colina, por onde descia, espalhada até ao rio, entre olivais e vinhedos, a aldeia de Gonfalim. Um fosso, uma muralha delgada e simples como um muro de herdade, uma torre construída em tempos da Senhora Rainha D. Tareja, defendiam a casa térrea, a capela, os celeiros, o forno, o pátio bem lajeado, onde dois chorões davam frescura e sombra a uma fonte de bronze. Para além um alto silvado, coberto de amoras pelo S. João, envolvia a abegoaria, a eira clara, o redil, um pomar bem regado, e o campo de tavolagem: – e depois, por todo o outro pendor do outeiro, lento e suave, verdejavam os pastios de gado.

No fundo do vale, o ribeiro, frio e límpido, toldado de arvoredo, saltava e espumava entre grossas pedras claras: um mosteiro rico de Domínicos ocupava toda a colina fronteira a Gonfalim, com a sua vasta, frondosa cerca: – e as duas margens eram ligadas por uma velha ponte romana de um só arco, onde o bom Senhor, para purificar a obra e a pedra pagã, mandara erguer um cruzeiro.

Desde muito, naquelas terras, os anos tinham sido de paz; as correntes da ponte levadiça, que se não levantava, estavam perras e cobertas de ferrugem; as ervas bravas cresciam nos fossos secos; na velha torre de onde se retirara, até o besteiro, que lá costumava dormitar, havia agora um pombal: – e o bom Senhor D. Rui engordara tanto, que nem saía à serra com os seus falcões, nem mesmo cavalgava o seu bom ginete, por nome Almançor, muito gordo também, e para sempre ocioso diante da manjedoura cheia.

D. Rui desposara a neta de mestre Ariberto, cancelário do Senhor Rei D. Sancho; e não havia, em toda a Beira, dona de melhor diligência e ordem no governo de sua casa. Trigueira, de olhos pestanudos e meigos, com um buço, e um peito de rola farta, D. Tareja, logo desde a alvorada, fazendo tilintar o seu grosso molho de chaves, distribuía a tarefa às aias, visitava a despensa e a capoeira, vigiava a fornada do pão, escolhia a fruta no pomar – e mesmo, arrastando o seu longo vestido sobre a terra ainda húmida, ia procurar as ervas salutares, para compor os unguentos domésticos. Todo o solar, por isso, resplandecia de gravidade e asseio. Nas lajes do pátio não crescia uma erva. No rebordo de cada janela havia um manjericão bem regado e fresco. Bem esfregados a carqueja, os soalhos pareciam sempre de madeira nova. Das arcas, cheias de roupa de linho, saía um bom cheiro de alfazema. Os pratos e os pichéis de estanho, sobre os bufetes, reflectiam, como espelhos, os lavores das altas cadeiras de espaldar, as listas vistosas das cortinas, ou os ramalhetes de açucenas e rosas, trasbordando dos vasos de barro vidrado.

Ocioso e risonho, com uma larga simarra de pano orlada de peles de raposa, que lhe descia até aos sapatos de couro vermelho, o bom Senhor D. Rui cofiava a sua barba, através do seu solar, gozando esta paz e esta ordem. Os seus dias corriam retirados e doces, como num mosteiro rico – e raramente tomava o seu bastão de cabo de prata, para transpor a velha ponte levadiça. Pelos tempos chuvosos, o bom Senhor, de janela em janela, contemplava o vale, o arvoredo molhado, as duas torres do mosteiro; ou aquecia pacientemente as mãos ao braseiro; ou abria o cofre de ferro, pregado no chão aos pés do seu leito, e contava o seu dinheiro; ou ia observar no bocal de vidro se as sanguessugas, subindo à flor da água, anunciavam o norte e o bom tempo. Nos dias de sol percorria devagar a sua horta, pelas ruas orladas de alfazema; visitava os seus galgos, que, ociosos e gordos também, dormitavam pesadamente; descia ao lagar, depois à eira, sorrindo paternalmente aos servos, que dobravam o joelho; e terminava por descansar, num caramanchão de rosas, escutando o murmúrio lento das águas de rega.

O toque de Trindades anunciava a ceia. Na sala, separada da cozinha por um arco de cantaria, as grossas malgas de caldo fumegavam sobre o carvalho nu da távola, entre pães de sêmea, e fortes pichéis de vinho. O bom Senhor, tendo lavado as mãos na água perfumada de vinagre, que o servo entornava de um grande jarro de cobre, ocupava a sua cadeira senhorial. O capelão defronte dizia o benedicite: – e D. Tareja tirava todos os seus anéis, para deitar dentro da sua malga a côdea escura do pão. O bom Senhor comia com lentidão e silêncio. O vinho do seu pichel era renovado pelo intendente que, a cada instante, se erguia com a boca cheia e ia encher o pichel senhorial ao pipo pousado a um canto, sobre barrotes de madeira. Depois do porco assado, vinha uma ave, galinha ou pato, que D. Rui partia com os dedos, limpando-os aos pêlos do lebréu, sentado a seu lado, à espera dos ossos. Nas tardes de Verão, o maioral dos gados vinha junto da janela da sala, tocar na flauta de barro. E quando o servo retirava as frutas, apinhadas em seiras de esparto, e outro punha sobre a mesa vazia dois candis, o capelão ia buscar um grosso in-fólio, que abria, e lentamente, emperrando nas letras, lia a vida de um santo, ou uma batalha do Tesouro das Batalhas, que conta todas as grandes guerras, desde a que os anjos maus travaram com os anjos bons. D. Tareja tomava a sua roca e fiava, ou dava alguns pontos no frontal, que havia dez anos andava bordando para a igreja do convento. O bom Senhor, com as mãos sobre o estômago, dormitava. E quando o capelão parava, a beber um golo de água, ouvia-se ranger o cata-vento de ferro – ou, nas noites de Verão, o canto triste dos sapos nas relvas.

Mas, com um gesto, D. Tareja detinha o santo homem, que fazia uma dobra na página do seu fólio. O intendente, à porta da cozinha, batia as palmas, todos os servos entravam, mesmo o pastor com o seu surrão. E era o bom Senhor que de pé, e ainda sonolento, rezava a primeira ave-maria do Terço. Depois D. Tareja fechava os bufetes, tomava um candil, um pichel de vinho preparado com mel e canela, e subia com o seu Senhor para o quarto, a repousar no vasto leito de carvalho, que tinha três varas de largo.

Assim a existência corria, igual e serena, no solar de Gonfalim. Às vezes algum rico-homem dos arredores, parente de D. Rui, vinha, com os seus cães e escudeiros, desmontar no pátio tranquilo. D. Tareja corria ao portal, trazendo uma toalha bordada, um jarro de água, que derramava sobre as mãos do hóspede. Atirava-se à pressa lenha na lareira, para assar, nos espetos de azinheiro, um cabrito, ou um leitão: das arcas saía um tapete do Oriente, que se estendia sobre as lajes do quarto de honra, onde as maçãs, apilhadas sobre os armários, davam um cheiro doce e acre: as tochas de cera ardiam na sala até tarde – e os Senhores conversavam de parentes, de colheitas, de algum novo milagre, das honras devassadas pelos corregedores de el-rei, e dos maus tempos que corriam para os homens fidalgos. Outras vezes eram menestréis errantes que passavam, pediam agasalho – e depois da ceia, tangendo o violino ou a frauta, cantavam as cantigas novas, diziam histórias maravilhosas de paladinos de França – ou repetiam as histórias que tinham ouvido, nas estalagens, ou nas lareiras de outros solares, sobre as guerras que o Senhor Rei fazia aos mouros, para além do Tejo. Mas o que mais agradava a D. Tareja era a passagem dos monges mendicantes: esses sabiam os milagres novos, os casamentos fidalgos de Viseu e de Lamego, receitas de doces ou de unguentos, e histórias de peregrinos que tinham afrontado os mares, e visto o vero túmulo do Senhor Jesus Cristo, ainda tinto do seu sangue fresco.

Estas eram as distracções destes Senhores excelentes. Pelo Natal havia um presépio na capela, com missa cantada pelos frades do convento e uma ceia em que se comia o porco novo. Nos anos de D. Rui, arrombava-se uma pipa de vinho, no campo da tavolagem, e os moços de Gonfalim faziam grandes jogos de bola, e lutas. E não havia naqueles arredores mais alegre fogueira, do que a que se acendia, entre danças e cantos, no terreiro, em frente da ponte levadiça, por noite de S. João.

Assim os anos tinham corrido, no solar de Gonfalim, quietos e iguais, quando D. Tareja sentiu, alvoroçada, em si, um começo de maternidade.

Foi um pasmo, uma magnífica alegria. Longos anos eles tinham desejado, esperado com ardor, um filho; – e para o obter D. Tareja fizera promessas, invocara todos os padroeiros da fecundidade, acendera durante trinta dias trinta velas a Santa Margarida, bebera água de sagna-canina, trouxera muito tempo sobre a cinta uma pele de coelha. Mas a doce esperança não se encarnava; e o bom Senhor D. Rui, resignado, decidira deixar o seu senhorio, e o dinheiro das suas arcas, a um afilhado de sua mulher, moço lido em livros, e que era provedor de el-rei em Lamego. Muitas vezes, porém, suspirava, vendo, diante de um casebre, um vilão que, com o filho sobre os joelhos, construía uma armadilha para os pássaros – ou um velho que sorria, amparado nos seus passos trôpegos por um moço forte, e cheio de respeito. Agora, porém, chegava o bem de que desesperara. O bom Senhor, repentinamente remoçado, com a face toda risonha e dilatada no orgulho da sua paternidade, começou, por todos os arredores, a anunciar a nova esplêndida – até a um sórdido ermitão que vivia numa cova no fundo do vale, até ao tosquiador que viera à tosquia dos gados. Um recoveiro partiu logo para Lamego, a encomendar ao mestre entalhador um berço de grande riqueza. Todas as aias, tirando das arcas os linhos mais finos, trabalhavam no enxoval: – e D. Tareja, ao fim do primeiro mês, fora comungar ao mosteiro, para que a Hóstia divina fosse o primeiro ali-mento do menino bem-desejado.

De que cuidados cercava o bom Senhor aquela dona excelente, cujo ventre lhe parecia precioso como um sacrário!

Inquieto, constantemente lhe tirava das mãos com brandura as chaves da despensa, para que ela se não fatigasse nos governos do solar. Ele, só ele, preparava o vinho reconfortante, com canela, mel, ervas aromáticas, que lhe devia dar forças e valor: – e sem cessar, quando ela caminhava, estendia os braços, receando todos os degraus, qualquer pedra, uma prega do vestido em que ela tropeçasse.

Era então Inverno, um Inverno muito duro, que todas as manhãs branqueava de neve os prados, e os tectos dos casebres: e D. Rui e D. Tareja, sentados ao braseiro, infindavelmente conversavam sobre o «seu menino». Ele tinha já o seu destino tão claro e marcado, como se um letrado o tivesse escrito num códice. O seu nome seria Gil Mendo: os melhores ledores do mosteiro vizinho e amigo lhe ensinariam as letras, a escrita, e a arte de contar: escudeiros hábeis viriam adestrá-lo na arte de cavalgar, no manejo das armas, e tudo o que pertence à caça: depois ele, D. Rui, o levaria aos bispados de Lamego, do Porto, de Coimbra, para conhecer as cidades, e tratar com os ricos-homens. Depois casaria com uma dama virtuosa, de rica linhagem, e governaria, em tranquilidade, o seu senhorio – porque nenhum deles desejava que o seu filho afrontasse os perigos das guerras, ou se partisse para terras estranhas.

E quando assim conversavam, a ambos vinha uma inquietação que não diziam – porque certas palavras, quando soltas, são apanhadas pelos espíritos maus, que as condensam e delas fazem coisas reais e vivas. Se Gil nascesse torto ou mudo?... Então

D. Tareja ia escondidamente à capela fazer promessas à Senhora da Boa Saúde – e D.

Rui reclamava do capelão que mais uma vez percorresse o Tombo do seu solar, para ver se jamais, varão da sua raça, nascera com algum defeito. Mas a certeza que todos os seus avoengos, desde os godos, eram robustos, e de belo porte, não calmava a sua inquietação: – e tendo uma manhã avistado uma gralha que pousara no rebordo do seu aposento, o que poderia tornar o menino gago – de tanta angústia se tomou, que os maus humores se lhe extravasaram, e amarelo como uma cidra, jazeu uma semana no seu vasto leito, entregue às drogas do Mestre Álvaro Porcalho, ó bom físico que viera à pressa de Viseu, montado na sua mula. Por conselho dele, D. Tareja nunca mais tocou água fria, e só bebeu caldos de cobra. Mas uma ansiedade maior entrou na alma do bom Senhor – porque Mestre Porcalho, depois de bem examinar o interior das pálpebras de D. Tareja, e certas sardas que tinha na testa, abanava a cabeça, gravemente, e não podia afirmar que a criança fosse um varão! Decerto o bom Senhor amaria uma menina que viesse, com as suas frágeis graças, e a sua doçura, alegrar a severidade fria da sua vivenda. Mas com quanto mais amor, e orgulho, e tranquilidade juntamente, ele receberia um varão, para continuar a sua casa, reger os seus bens! Mandou então chamar um astrólogo famoso, Mestre Leonardo, que vivia numa velha ruína do tempo do Conde Ordonho, junto aos muros de Lamego. Bem provido, com um cântaro de vinho e um empadão, o douto homem passou a noite, uma clara noite de Março, com astros bem claros e fáceis de ler, na torre de menagem, de onde espantara as pombas, a preparar o seu horóscopo: – e D. Rui teve a dita de ouvir que seu filho seria varão, venceria os infiéis, entraria nos conselhos de el-rei, e desposaria a filha de um rico-homem poderoso, que tinha três castelos, e vassalagem de três vilas. Senhorialmente pago, Mestre Leonardo recavalgou a sua mula, e deixava o solar, quando, junto da ponte levadiça, indo o Sol já alto, encontrou Mestre Porcalho que, com a sua caixa de simples a tiracolo, a seringa de estanho dentro de um saco, recolhia de visitar o armeiro de Gonfalim. Imediatamente os dois sábios, do alto das suas muares, trocaram duros sarcasmos, depois injúrias: – e ambos saltando abaixo das cavalgaduras, com as suas longas garnachas, se arremessaram corpo a corpo, tão ferinamente, que ambos rolaram no fundo dos fossos.