Últimas Páginas (1912)/S. Frei Gil/II

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Mas Mestre Leonardo acertara – e foi um varão! E mesmo a comadre e as aias afirmavam que, pela força com que chorara, e sacudira os pezinhos roxos, ao penetrar na vida, o Senhor D. Gil seria homem de grande valentia e acção. O que a todos, porém, espantava, debruçados sobre o seu berço, era a sua perfeita beleza e inteligência. Gordo, todo redondo, branco como os linhos finos do seu lençol, com uma boquinha que parecia uma folhinha de rosa, e dois grandes olhos negros resplandecendo sob a testa muito clara – ele parecia ter já uma alma e compreender. Duas aias constantemente o velavam, sentadas em esteiras, baloiçando um leque de penas, para preservar das moscas a frescura do seu sono, ou cantando, para o embalar, Dormi, dormi, senhor meu: – e um mês passara, já os arcos de buxo erguidos nas alegres festas do Nascimento estavam murchos, já D. Tareja, purificada e de novo corada e ágil, fazia tilintar as suas chaves pelo corredor do solar – e ainda Gil não chorara. Uma gota de leite do peito cheio da ama, bastava para o adormecer docemente: – e acordado, os seus olhos negros, largos, rutilantes, constantemente procuravam, seguiam, ou as réstias de sol, ou o brilho de um jarro de estanho, ou as cores mais vivas de um véu. Vindo a cada instante em pontas de pés entreabrir as cortinas do berço, o bom Senhor não esquecia nenhuma das práticas que concorrem a tornar a criança perfeita. Para que ele tivesse uma voz forte e bela, esfregava-lhe a boquinha com uma velha moeda de ouro. Ele mesmo desfizera sal virgem em água tirada da fonte ao nascer do Sol, que faz com que o cabelo das crianças nasça encaracolado e basto. Para que ele tivesse força, trouxe uma antiga espada do seu avô D. Fruias, e pousou-a entre as mãozinhas de Gil: – e para que, à força do corpo, se juntasse a força da alma, três domingos a seguir o capelão veio ler sobre o berço o Evangelho dos três Reis.

Pelo baptizado foram celebradas grandes festas. O padrinho foi D. Mendo, um parente de Mortágua – a madrinha Nossa Senhora da Saúde: e no caminho para a igreja, juncado de rosas e erva-doce, ao lado de D. Mendo, magnífico, com as suas barbas de neve sobre o saio de escarlate, caminhava, no seu andor, aos ombros de quatro cavaleiros peões de Gonfalim, a Senhora Madrinha, coroada de ouro, com um manto novo, onde as estrelas de ouro, sobre o azul do veludo, faziam como um céu de Verão. Para maior honra (e para que o menino não fosse surdo), foi D. Mendo, o padrinho, que puxou a corda do sino, deu os primeiros repiques festivos. Toda a pedra da igreja desaparecia sob as colgaduras de veludo branco. E quando a ponta de uma faixa de seda que se prendia, pela outra ponta, às mãos da Senhora, veio tocar a penugem fina e loura da cabeça de Gil, nuzinho e quieto, nos braços do padre, sobre a pia – todos observaram, com espanto, que o menino sorria às luzes das tochas, e as pontas dos palmitos se agitaram, e alguma coisa de branco, como o sulco de uma asa, passou na penumbra do Baptistério.

Depois um enorme festim, tumultuoso e voraz, reuniu a rude aldeia. No terreiro três vitelas inteiras assavam, em fogueiras claras. O vinho, correndo sem cessar das pipas enfeitadas de louro, fazia poças roxas, onde as crianças se rolavam. A cada instante os alaúdes e violas dos menestréis chamavam os moços e as raparigas, afogueados, com a boca cheia, e toucados de rosas, a longas danças estonteadas sobre a relva pisada. Um empadão imenso trazido numa padiola, e precedido por dois anões que cabriolavam, apareceu ao fim da tarde, entre aclamações: tirando a espada, um cavaleiro-peão fendeu-lhe a tampa, maior que um tecto de cabana: – e de dentro fugiu um bando de pombas, que batiam no ar, com esforço, as asas pesadas de gordura, perseguidas pelos moços, que as apedrejavam com pedaços de terra, com grossos pães de sêmea e com os pratos de estanho.

Mas de repente, junto da ponte levadiça, surgiu uma bandeira: – e ao lado de D. Mendo, e seguido do capelão, do intendente, e das aias, com altas toucas de renda, apareceu o bom Senhor D. Rui, pálido de alegria, de orgulho, que trazia nos braços, todo coberto de rendas, para o mostrar ao povo, o seu filho, o seu herdeiro. Raparigas correram com cestos cheios de folhas de rosa que lhe atiravam: – e, da mesa de honra onde estava o meirinho de el-rei, dois velhos vieram, um com um prato cheio de sal, que simboliza a Agudeza de Espírito, outro trazendo um ovo que significa a Duração da Vida, para oferecerem ao menino, como votos tangíveis. E foi um espanto, um longo murmúrio maravilhado, quando Gil, debatendo-se entre as rendas, estendeu um bracinho para o sal, e outro para o ovo. Os velhos, muito graves, reconheceram que o menino era um eleito de Deus – e ninguém duvidou que ele chegaria à extrema velhice, através da extrema sapiência.

Ele, com efeito, cada hora crescia em força e beleza. A sua cabecinha redonda bem depressa se cobriu de anéis finos como seda, e cor de ouro: – e todos os dentes lhe vieram, sãos e fáceis, sem lhe custar uma lágrima. Quando não dormia, do seu dormir tão sereno que parecia uma rosa sobre uma almofada, passava horas nos braços das aias ou da mãe deslumbrada, quieto, imóvel, já direito, com os olhos resplandecendo, ,e parecendo pensar em coisas profundas. Um tão raro encanto se exalava daquele corpinho, todo em rugas gordas, brancas e duras como mármore, que as aias se não podiam apartar do seu berço, esquecendo as horas de comer: – e os que um dia passavam no solar, e o viam um momento, ainda depois nas suas moradas, e entre outros cuidados, ficavam pensando, com ternura, naqueles cabelos de ouro puro, e nas duas estrelas dos seus olhos.

No aposento, onde estava o seu berço, não era necessário no Inverno aquecer o braseiro, nem, nas canículas, entreabrir as janelas à aragem – porque havia ali sempre um ar igual, doce, tépido, fresco, e que cheirava bem: – mesmo este aroma ia crescendo, e tanto, sobretudo em volta do seu berço, que Mestre Porcalho, que reprovava as essências derramadas junto dos berços, batia o pé impaciente cada manhã que lá entrava, e dizia, franzindo a venta: <(Mas aqui cheira a jasmim! Mas aqui cheira a rosa!» Mais de uma vez também sucedera que, apagando-se a lâmpada, o quarto continuara alumiado, de uma luz translúcida, vaga, láctea, que era mais ténue junto dos altos muros, mais viva, e como irradiada, em torno do berço: a ama, sentada, erguia o cortinado e encontrava o menino a sorrir no seu sono: – e se então visitava os seus cueirozinhos, mais se assombrava não os reconhecendo como os do rico enxoval, mas diferentes, de um linho mais fino que todos os linhos, alvos como outra alvura não havia, e tão doces e macios à mão, que o seu contacto tinha a doçura de um beijo. O bom Senhor D. Rui ouvia estas maravilhas – e grossas lágrimas de gosto rolavam na sua barba ruiva.

As pombas, que tinham o seu pombal na velha torre de atalaia, começaram então a vir todas as manhãs, em bando, pousar sobre o rebordo da janela do menino: – e mesmo, se encontravam as portas abertas, algumas mais ousadas, por serem mais brancas, voavam em torno do seu berço, de um voo subtil e sem rumor. Gil seguia-as com os seus grandes olhos, ou atirava a mão para as apanhar: – e se tocava em alguma que pousasse nas grades do berço, essa tomava logo o voo, triunfantemente, mergulhava muito alto no azul, e não recolhia ao pombal.

Mas não eram só as pombas que amavam o menino. Borboletas raras, de cores radiantes, vinham bater contra os vidros, aos bandos, como folhas vivas e soltas de flores que não há na Terra. Uma amendoeira que havia em baixo, no pátio, rompeu a crescer, a subir, como se, com as pontas das suas ramagens, tentasse espreitar para dentro do aposento: – e depois cobriu-se de flores em Janeiro; e um rouxinol veio, durante todo o Inverno, cantar sobre ela maravilhosamente. Mas a surpresa maior foi que no canto do pátio lajeado, onde se despejara a água em que D. Gil tomara banho, começaram a crescer por entre as lajes umas florinhas azuis, brancas e cor de ouro, que nenhum jardineiro jamais vira, e que perfumavam todo o ar.

No dia em que o menino fez um ano, estando no colo da mãe, com o seu saiotezinho de brocado branco todo bordado de pérolas, escorregou-lhe subitamente dos braços para o soalho, e deu o seu primeiro passo na Vida. Todos os braços em redor se estenderam, ansiosos, para o amparar: – mas ele ia firmando os pezinhos, redondos e lentos, sem tropeçar, atento e direito a uma réstia de sol que entrava pela janela – com a mãozinha aberta e erguida, como amparada por outra mão que se não via, e que docemente o levava. E assim mergulhou na réstia de sol, onde ficou quieto, com um riso que resplandecia, todo aureolado de ouro. Frei Múnio murmurou: «Neste menino há maravilha!»