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Então começou este moço gentil a amar grandemente as armas. Mas, por elas, não esquecia a linda Solena roubada: – e até, se agora se empenhava em ser um forte e destro cavaleiro, é que, sonhando uma noite com ela, a vira, no fundo de uma torre, com os cabelos soltos e grilhões nas mãos, que lhe dizia através de lágrimas: «Se não pudeste socorrer-me, a mim, pobre pastora, que só te tinha a ti no mundo, dedica-te, por amor e lembrança de mim, a socorrer todas as fraquezas, amparar todos os desamparos».

Depois, a torre e Solena tinham-se sumido –e ele vira Jesus Nosso Senhor, de repente, que, sorrindo, lhe oferecia uma grande espada, mais clara que um diamante. Então, começou a pensar em correr mundo, como paladino errante, para socorrer todos os fracos: – e agora, que aprofundava aquela ideia, nenhuma existência lhe parecia mais nobre e mais bela. O mundo vira já muitos desses cavaleiros famosos. Mudos, cobertos de ferro, seguidos de um só escudeiro com a Lança, eles percorriam os remos da Terra, protegendo os pobres e os mesteirais, libertando damas encerradas em torres, derrotando os gigantes daninhos, derrubando os príncipes dos tronos usurpados, remindo povos cativos, destruindo as feras que assolam as searas, e, a caminho de conquistar um reino, parando a consolar uma criança que chorava num horto. Um anjo voava por trás deles com as asas abertas: – e as suas façanhas não provinham da irresistibilidade da sua força, mas da evidência da sua justiça. Uma tal vida deslumbrava D. Gil – e a sua possibilidade era clara, pois que, sem procurar aventuras, só porque sete lanças o seguiam, ele, libertando O recoveiro no pinhal, fizera obra de Paladino.

Então todos os seus pensamentos foram dados a esta empresa. Todos os dias se adestrava em jogar a espada com qualquer mão, em disparar bestas, em vibrar o montante – e o velho D. Rui, do balcão da sala de armas, aplaudia estes exercícios, que tanto convêm a um fidalgo que preza Deus, a honra e a linhagem. Por sua ordem, o intendente comprou o melhor alazão de guerra, que nesses tempos apareceu na grande feira de S. João, em Viseu: todos os homens de armas foram providos com lorigas novas, ascumas de largo cutelo, cascos que reluziam como espelhos: – e a armadura de Gil, que a mãe com o dinheiro das suas arras lhe quis dar, era tão bela, que esteve, durante todo um domingo, exposta na capela do solar.

Pêro Malho constantemente acompanhava D. Gil nestas ocupações de cavaleiro. Era ele quem polia as armas, dava a ração ao ginete, cuidava dos galgos favoritos de D. Gil, tudo dispunha para os exercícios de armas: – e mesmo, como a idade e os achaques iam tornando mais trôpego o aio de D. Gil, era Pêro quem dormia, atravessado à porta do seu aposento, e lhe batia as roupas com um junco, e, à mesa, lhe enchia o pichel de vinho. D. Gil começava a ganhar grande afeição a este escudeiro.

Era Pêro um mocetão, mais moreno que um mouro, esperto, destro e destemido, de uma alegria que Lhe trazia sempre descobertos os dentes magníficos, grande sabedor de histórias e rifões, lindo bailador em festas de adro, e tão rijo, que podia passar dois dias de jornada, sem sono, sem ração, bebendo apenas nas fontes um golo de água, pela borda do sombreiro. Sabia tudo quanto compete à caça e à guerra – e D. Gil tanto se ia afeiçoando a este moço, que já decidira levá-lo por escudeiro, se jamais partisse a correr mundo, como cavaleiro andante.

O seu desejo, agora que era destro em todos os exercícios das armas, era ser armado cavaleiro. E como D. Rui lhe prometera essa honra para quando tivesse vinte anos, e apenas faltavam duas semanas de Agosto, logo se começou a preparar a grande festa – e se armaram arcos de buxo desde o solar até à igreja do mosteiro, onde D. Gil devia velar as armas. Nessa noite por toda a aldeia, junto do velho solar e no terreno do convento, se acenderam pipas de alcatrão e fogueiras, onde o povo dançou, em grande ruído, ao som de violas e doçainas.

Um velho parente, D. Soeiro, Senhor de Tondela, que comandava trinta lanças, e tinha voz em três castelos, veio, com linda comitiva, dar a pranchada em D. Gil.

No terreiro do solar, duas vacas inteiras assavam em espetos maiores que lanças. Das pipas, juntas em cima dos carros e toldadas de louros, o vinho corria como de fontes públicas. O clangor das longas festivas misturava-se aos cantos dos jograis. E quando pela tarde se baixou a levadiça, e D. Gil, todo armado, seguido de homens de armas, de escudeiros, de moços de monte, saiu ao terreiro, e empinando o ginete, brandiu três vezes a lança – todos os sinos repicaram, bandos de pombas soltas branquearam o espaço, punhados de rosas voltearam no ar, e uma chuva de moedas de prata e de cobre caiu sobre o povo, como no advento de um rei.

Depois, de novo o solar caiu em quietação e em silêncio. E D. Gil, que abandonara os livros, e não tinha já quem encontrar na solidão do bosque, e se saciara do exercício das armas, começou a achar os dias pesados e longos. As correrias pelos campos, com os seus homens de armas, agora bem armados e bem montados, não tinham motivo, nem destino: – e depois de galoparem nalguma planície, atravessarem alguma herdade, fazendo latir os cães e fugir as galinhas, descansarem à sombra de um arvoredo, e atroarem os vales com toques de buzina à mourisca, nada mais lhes restava que recolherem, pelo fim da tarde, cobertos de poeira, cansados, e sem aventura para contar à ceia.

Para seguir então, mais fielmente, a vida dos paladinos, como a aprendera nos livros, saía só com o seu escudeiro Pêro, que vestia um saio azul e branco (que eram as cores dos Valadares), trazia duas longas plumas brancas e azuis no gorro, e levava o montante e o broquei do seu amo. Ia então, para esperar aventuras, postar-se, como Roldão, no encontro de dois caminhos, ou, como D. Clarimundo, à entrada das pontes. Mas só encontrava algum almocreve, que o saudava humildemente, ou um frade mendicante que lhe dava uma relíquia a beijar, algum pobre menestrel, que, a troco de um maravedi, lhe cantava um vilancete, ou a gente dos arredores, lavradores e mesteirais, que todos o conheciam e lhe diziam, com agrado: «Deus salve o Senhor D. Gil». E bem depressa abandonou estas cavalgadas solitárias – passando os dias no solar, pela quinta, com um látego inútil na mão, a visitar as cavalariças, o telheiro, onde os falcões engordavam entorpecidos, o lagar ou a eira. Na grande sala, D. Rui, que ia embranquecendo, dormitava, já muito gordo e pesado, na sua alta cadeira de carvalho, com os pés numa grande almofada, as mãos cruzadas e escondidas, como as de um padre, nas mangas da sua simarra. D. Tareja, com o cabelo todo branco, sentada numa esteira rio chão, trabalhava entre as aias; – e todas as noites Frei Múnio recomeçava a batalha de Dano, ou os milagres de Santa Úrsula.

Às vezes, seguido só do seu alão, D. Gil descia através da aldeia a uma pequena casa, junto do rio, onde Mestre Porcalho, muito velho também, enriquecido pelos dons de D. Rui, se retirara a repousar, cultivando o seu horto.

Encontrava sempre o douto velho, com os seus longos cabelos brancos, muito compridos, soltos sobre a garnacha negra, cuidando do cebolinho, do feijoal – ou à mesa da cozinha, coberta de plantas secas, dispondo folhas entre as páginas de um in-fólio.

D. Gil amava este douto prático – e gostava de o interrogar sobre os segredos do corpo humano, a sua estrutura, os seus humores, e as influências que o regem. Mas agora, que já não exercia a sua ciência, o bom Porcalho, franzindo as grossas sobrancelhas brancas sobre os olhos cavos e muito luzidios, declarava nada saber, menos que um porco – porque só havia três ciências de curar. Uma, a dos monges, por meio de peregrinações, milagres, e contactos de relíquias, e era esta falsa, porque o ilustre físico árabe Rhazei provara que Deus não se intromete com a saúde das criaturas. A outra, a do Povo, feita toda de feitiços, esconjuros e sortilégios, era ilusória porque vem do Diabo, e o Espírito do Mal não pode promover o bem humano. E a terceira, a verdadeira, a eficaz, essa ainda não chegara a estes remos de Portugal, e estava toda em França, terra de grandes escolas.

No entanto ele, Porcalho, fizera importantes achados! Era incontestável que a pedra de ágata facilitava as dores da maternidade, como ele provara com a Senhora D. Tareja; que a sangria de Março devia ser feita nas veias do peito; e que a hipocondria era produzida por um vento funesto, que vinha da Lua e que inchava o fígado! De resto, descobrira alguns simples maravilhosos –e a ele, não a outro, se devia que em toda a terra do Douro ou das Beiras se reconhecia hoje a excelência da mandrágora! Dizia estas coisas profundas com um grande ar inspirado e sinistro. Em redor, toda a cozinha estava cheia de almofarizes, grossas garrafas com líquidos de cores radiantes, aves empalhadas, molhos de ervas secas pendurados das traves defumadas do tecto: um cheiro doce e triste perturbava a alma: e nos vastos in-fólios, com fechos de metal, parecia dormir uma ciência imensa e profunda.

D. Gil voltava para o solar, devorado pela curiosidade daquele saber. Nenhum poder humano lhe parecia mais alto do que aquele que suprime as dores, luta com a influência do invisível, e vence a Morte. Quanto bem a derramar pelo mundo, quando se possua aquele divino saber! Se era já belo e grande tomar armas e ir pelo mundo livrar os homens dos males que os homens lhes fazem, quanto maior e mais belo libertar o pobre corpo dos males infinitos que lhe faz a Natureza! E bem compreendia agora aquela regra, tão fundamental, dos livros de boa cavalaria, que todo o bom cavaleiro devia saber a arte de curar as feridas que a lança faz. Não era pois indigno, antes nobremente próprio de um fidalgo, conhecer os simples, as influências, a arte do bem-sarar. Por aquela ciência, como por uma escada sem fim que mergulha nos céus, o homem ascende aos altos segredos! Aquele a quem um mal aflige pode então recorrer a esse alto saber, tão eficazmente como a Deus por meio da prece: – e, na verdade, o bom sabedor da Grande Arte é como um Deus que percorre o mundo distribuindo a vida.

E destes pensamentos, que o conservavam de noite desperto, resultou que o gentil cavaleiro, deixando as armas cobrirem-se outra vez de poeira, se quis preparar, antes de novamente as tomar, com a grande ciência dos simples e das drogas. Começou então a estudar, assiduamente, com Mestre Porcalho, que se orgulhava deste discípulo, tão gentil e tão nobre. O seu dia todo se passava no horto, ao pé do rio. Sentados ambos sob a latada, D. Gil, com um pergaminho no joelho, escrevia todos os preceitos que lhe revelava o velho Mestre, para depois os decorar, passeando até desoras no seu quarto. Já sabia os princípios de Galiano e dos Gregos, as receitas de Rhazei e dos Árabes. E por um caderno mirífico, que Mestre Porcalho obtivera de um judeu, e que continha extractos do Cânon de Avicena, já conhecia vinte doenças, e as suas vinte causas, e os seus vinte remédios. Mas a experiência original e própria do Mestre não era menos valiosa; – e por ela aprendeu D. Gil todas as medicações que se devem aplicar segundo os meses – em Janeiro tomar poção de gengibre, em Fevereiro sangrar na veia do peito, em Março pôr ventosa no fígado...

Por meio de ossos humanos, que o Mestre outrora, com grande risco, roubara num cemitério, e que guardava numa arca sob o leito, conheceu os segredos da estrutura humana: e ao ver uma caveira que nunca vira, e que o fez persignar-se para afastar o mau olhado, pensou, sem saber porquê, em Solena, no brilho do seu olhar, na sua pele tão macia e doce. Depois, diante dele, Mestre Porcalho uma noite matou um bácoro, e Gil conheceu as veias, os tendões, e o saco do estômago, onde «o ar penetrando decompõe os alimentos».