Últimas Páginas (1912)/S. Frei Gil/VI
No solar o velho D. Rui estranhava a nova existência de Gil – que, agora, das suas caminhadas solitárias, sem galgo, sem escudeiro, voltava carregado de ervas, como um aprendiz de ervanário. Mas quando soube que ele andava aprendendo a arte de curar, a sua admiração por aquele filho excelente cresceu, e não duvidou que ele viesse um dia a ter fama, em todo o reino, pelo seu saber maravilhoso: – e uma tarde, montando com custo na sua mula, foi ao mosteiro levar ao D. Abade a notícia desta empresa nova, a que se lançara o grande espírito do seu doce Gil.
Era no tempo dos figos – e tendo demasiadamente comido desta fruta, o bom abade fora atacado de um duro mal. Na sua cela, onde recebeu afavelmente o seu vizinho, as relíquias do convento estavam expostas, sobre um pequeno altar, para dar saúde ao bom abade.
Um frade rezava junto ao vasto leito de carvalho. Outro pisava uma massa dentro de um almofariz – e dois noviços, com ramos de louro, sacudiam as moscas da face venerável, que o mal empalidecera.
D. Rui lamentou o bom abade – e, sentado num escano aos pés do leito, contou logo como, justamente o seu Gil, começara agora com o grande desejo de saber a arte de curar aquele e outros males.
– Pois mandai-o estudar a França!... – acudiu logo o D. Abade, estendendo a mão fora da roupa, com um gemido. Não sei que haja mais útil saber. Mas nós, aqui neste reino, nem uma dor sabemos calmar... Não o digo pelos doutos padres desta casa!... Mas já desde domingo, que foi a merenda, estou aqui em trabalhos... Estamos em grande atraso. Mandai-o estudar a França.
E, pregando os olhos nas santas relíquias, ficou mudo.
Só quando D. Rui lhe beijou o anel da mão, caída sobre a colcha de seda, tomou a voltar o rosto, a murmurar:
– Mandai-o estudar a França.
D. Rui recolheu ao solar melancolicamente. Deus, decerto, pela voz do D. Abade, que sofria cercado de relíquias, lhe indicava aquele dever de mandar o seu filho a França, para se ilustrar no saber. Mas a ideia de o ver partir e ele já tão velho, cortava o seu coração.
Quase desejava que seu filho fosse um moço de espírito simples, contente em caçar, e justar as armas no pátio do seu solar. E nem contou a D. Tareja esta visita ao mosteiro, o conselho penoso que lá fora escutar.
E era então com mágoa que via agora o seu filho cada dia mais devotado aos livros. Tendo começado por estudar a arte dos Simples e das Drogas, como complemento da sua educação de cavaleiro, ele começava agora a amar esse saber, como o fim supremo da vida.
Como um peregrino que percorre um templo, e a quem a beleza ou raridade de uma capela inspira o desejo devoto de percorrer as que além, na sombra, fazem cintilar os seus ouros, este gentil cavaleiro, de cada estreita região do saber em que penetrava, recebia a nobre tentação de invadir outras, que ao longe faziam cintilar a maravilha dos seus segredos.
As secas plantas, com que Mestre Porcalho lhe ensinara a fazer emplastros para curar humores, lhe tinham dado o desejo de conhecer toda a vasta natureza que cobre a terra, e a estrutura dessa terra, onde se escondem os metais e o fogo: a terra, ela mesma, lhe fizera sentir o desejo de conhecer tudo o que a cerca, os ventos que a sacodem, as nuvens que sobre ela formam um todo de multicor beleza, os astros pequem-nos e grandes que sobre ela derramam o seu brilho fulgurante ou meigo. Do Homem, de quem o velho físico lhe explicara os ossos, ele bem depressa quis conhecer a alma, e as leis múltiplas e maravilhosas que a regem... Por que aspirava ele ao bem? Por que sentia uma resistência ao mal? De onde nascia o amor? Por que pensava, e em que parte íntima do homem brotava a fonte imperecível do pensar? Depois era ainda a curiosidade de saber o que o Homem, desde tão longas idades criado, tinha feito na terra, e as cidades que fundara, e as grandes guerras que travara, e as Leis que criara para se conservar manso e sociável... E, do Homem, a sua curiosidade ascendia ao Deus que o criara. Qual era a sua essência, onde habitava, que cuidado tinha ele pela humanidade que criara? – E assim, este moço gentil, a quem a barba mal nascera, aspirava a percorrer todas as ciências, a compreender todo o ser. Mas entre as velhas muralhas daquele solar, naquela quieta aldeia, adormecida sob o olivedo e a vinha, como poderia adquirir todo esse saber, que ocupa, para ser codificado e aclarado, monges de tantos mosteiros, escolares de tantas escolas! Todos os trinta e três livros, que formavam a rica livraria do convento Beneditino, lhe tinham sido emprestados, por supremo favor, e em todos, confusamente e tumultuosamente, aprendera milagres de santos, leis visigóticas, batalhas da antiguidade, receitas de drogas e notícias dos países que estão para o Oriente: –mas eram como curtas fendas, num tecto de maciças traves, por onde entrevia pontos vivos de luz, aqui e além, e tudo o resto era escuro, e a luz completa estava por trás, sem a alcançar.
Mesmo por vezes lera um grande tomo, de Aristóteles ou de Séneca – mas sentia que o seu espírito solitário, sem um guia, ia através daquele saber, como um homem perdido de noite numa montanha desconhecida.
A sua alma então, nessa grande sede que não podia ser saciada, porque estava tão longe de toda a fonte, caiu numa melancolia. Abandonou os grossos in-fólios onde já nada novo podia aprender – e não o atraía a companhia de homens que nada lhe podiam ensinar. Só, com um galgo, partia de manhã, penetrava nos campos, procurava a solidão das quebradas e dos vales: e aí, caminhando devagar, ao comprido de um ribeiro, ou deitado à sombra de uma árvore, ele pensava na inutilidade da vida...
Aquilo, pois, era viver–esta monótona sequência dos actos instintivos: acordar, comer, caminhar entre as árvores, voltar à mesa onde as malgas fumegam, e, quando a luz finda, adormecer? Assim vivia qualquer bicho no mato! Mas de todas as ocupações humanas qual era verdadeiramente digna de que o homem nela pusesse a sua alma inteira, e a tomasse o fim do seu esforço na Terra? Não decerto vestir as armas, seguir um pendão, rasgar as carnes de outros homens, gritar no estridor das batalhas, para que o Senhor Rei possua mais um castelo, ou alargue, para além de um rio, as fronteiras do seu reino! Não decerto juntar maravedis, com eles comprar mais terras e mais servos, engrossar rendas, atulhar as arcas de sacos de ouro! Não decerto andar de solar em solar, com plumas no gorro, e um falcão em punho, galanteando as damas, conversando de Linhagens, justando nos pátios, e escutando os jograis que cantam ao serão!...
O quê então? E o seu espírito recaía naquela ambição vaga que o torturava, a ambição de tudo saber, de se elevar, pela posse dessa ciência, acima dos homens, e exercer essa supremacia toda em favor e bem dos homens. Quereria ter um saber que lhe permitisse fazer as leis mais justas, curar todos os males do corpo, enriquecer as multidões, estabelecer a paz entre os Estados, e guiar todos os seres vivos pela larga estrada do Céu. Para tal fim, só para ele valeria a pena viver. E, para o conseguir, não haveria trabalho a que se não sujeitasse, fadiga que não afrontasse. Veria, sem dor, o seu corpo penar, comeria as ervas dos campos, vestiria os trapos mais sujos, serviria nos misteres mais rudes – contanto que a alma se fosse enchendo desse grande saber, cada vez mais alto, mais belo, dominando todas as almas pela abundância de verdade que possuísse, e pela eficácia do bem que espalhasse. Mas esta ambição, como a realizar? Onde, como, adquirir esse saber benéfico? E quando o tivesse adquirido, de que modo fazer que ele aproveitasse aos homens, para se tornarem melhores, e serem aliviados dos males da vida?
Seria um grande físico, que fosse pelo mundo curar os males da carne? Seria um grande Teólogo derramando a paz nas almas? E mesmo que melhorasse algumas almas, ou sarasse alguns corpos, quantos ainda por todo o vasto mundo ficariam sem remissão e bem-estar? Qual era o meio de fazer o bem, simultaneamente, a grandes multidões?
Assim pensava D. Gil na solidão dos vales. Este moço tão gentil tinha então vinte e dois anos – e era tão belo e airoso, que a gente se voltava nos caminhos, e o ficava a olhar, com doçura.
Os seus longos cabelos, de um louro escuro, caíam em anéis como os de um arcanjo. Nada havia mais doce e luminoso que o olhar dos seus olhos escuros. Um buço, apenas nascente, dava uma sombra de virilidade à sua pele ebúrnea, como a de uma virgem: – e no seu andar havia uma graça altiva, como a de um príncipe em plena felicidade. Os seus modos eram tão doces e corteses, que logo prendiam as almas.
Nenhuma pessoa, por mais humilde, o saudava, sem que ele gravemente erguesse o seu gorro de fidalgo: e nos caminhos estreitos encostava-se às sebes, para deixar passar os velhos, ainda que fossem mendigos. Ainda que naquela farta e quieta aldeia não havia pobreza, a sua escarcela saía cheia, e voltava sempre vazia. Amava todos os animais –e as crianças faziam-no parar, sorrindo, enternecido.
Com esta cordura de monge, tinha todas as prendas de um cavaleiro. Ninguém justava, jogava o tavolado, domava um potro bravo, erguia uma barra de ferro, com mais força e primor.
Nada temia – nem os homens, por mais fortes, nem as feras por mais bravias, nem os duendes por mais malignos. Mas na casa de seu pai era obediente como uma criança – e era ele quem servia o velho, o ajudava a erguer da sua cadeira, e mesmo lhe penteava os seus cabelos brancos. Um olhar de sua mãe era para ele como um man-damento divino – e com tanta devoção lhe beijava a mão, que outra maior não tinha com a Mãe do Céu.
Nunca sua alma, branca como a água mais pura, fora toldada pela passagem de um pensamento injusto ou impuro. A Justiça era para ele tão necessária como a luz: – e se testemunhava uma injustiça, sofria, como se um guante alheio lhe tivesse batido a face, sentindo-se ofendido na ofensa que via fazer aos outros. Adorava a Verdade, logo abaixo da Virgem Maria: – e todo o olhar que não fosse franco, toda a palavra que não fosse livre, lhe davam o horror de uma coisa suja.
Queria que todos os solarengos lhe falassem sem submissão: – e, amando todos os homens como iguais, a servidão parecia-lhe uma ofensa ao seu amor.
Assim o Senhor D. Gil era, nesses anos ainda curtos, uma das almas melhores da cristandade.
Um dia, tendo despertado com o cantar das calhandras, e sentindo a alma mais triste, partiu só, com um grande lebréu, e levado pelos seus pensamentos, foi dar ao alto de uma colina, que era a mais alta naqueles sítios, e se chamava a serra do Bruxo. Dali via, mais baixas, a vasta colina onde negrejava o seu solar, a aldeia de Gonfalim, espalhada entre a verdura, o branco Convento dos Beneditinos, o rio, luzindo entre as margens altas, e a ondulação dos cabeços, até ao extremo azul: – e de pé, envolto no vento largo que soprava, Gil começou a considerar quanto era estreito aquele horizonte, e quanto seria impossível, na verdade, que dentro dele se realizassem sonhos que abrangiam o mundo todo. Que havia ali, naquele círculo de colinas? Os muros do seu solar, um convento de velhos frades, uma aldeia de pobres colonos, e para além, terras bravias, matos, colinas, que o tojo vestia! Como poderia jamais ser ali o homem que desejava, o homem de grande saber, de grande acção? E quando, por um dom divino, assim se tornasse, onde havia ali uma humanidade múltipla e larga, para ele exercer a acção da sua alma? Mas para além havia outras terras, grandes remos, cidades ricas, grandes escolas, mosteiros de alto saber, e multidões inumeráveis, sobre quem uma alma forte e bem provida podia exercer uma supremacia que valesse a pena conquistar. Se ele deixasse o seu lar estreito! se ele partisse!
Um alvoroço encheu o seu coração – e quase imediatamente sentiu ao lado, entre umas fragas, uma voz moça e fresca que cantava:
Pelo mundo vou,
Onde chegarei?
E o que procuro
Onde encontrarei?
E um moço apareceu, ligeiro e magro, pobremente vestido, que trazia uma sacola de mendicante a tiracolo, um forte bordão ao ombro, e duas grandes penas de galo no seu gorro remendado.
Uma alegria, franca e livre, alumiava a sua face magra. Todo ele parecia respirar com delícia o ar áspero e livre da serra: – e os seus olhos refulgiam, com um grande fulgor risonho.
Diante de Gil, parou, batendo com o bastão na rocha.
– Como se chama esta serra e onde leva este caminho?
Gil tirou o seu gorro, com cortesia.
– Esta serra não tem nome, e este caminho só leva a outras serras... Para onde ides?
O moço limpou lentamente o suor, que lhe alagava a testa:
– Vou procurando terras de França...
– Assim, para tão longe, a pé!
O moço riu alegremente:
– É que o Senhor Rei, quando distribuiu as terras e os solares, esqueceu-se de me dar uma, e uma mula para jornadear custa bom ouro. Mas as pernas são rijas e mais rijo o coração. E ele que me Leva, neste desejo de ir a França, para entrar nas escolas, e saber o grande saber, e vir a ser Físico-mor no paço de um rei, ou ensinar decretais num conselho. Na herdade em que nasci só havia um livro, que era o missal da capela. E como em todo o mosteiro há uma côdea de pão para um mendigo, e nos ribeiros não falta água, aqui me vou, com o meu cajado, cantando por estes caminhos da terra.
Os seus olhos fulguravam como duas chamas – e do cajado que ele assentara, rindo, sobre uma pedra, chisparam longas faíscas. E continuou:
– Só me falta um companheiro. Moço sois, forte pareceis; em França as mulheres são lindas; nas grandes escolas aprende-se o segredo das coisas; e as guerras não faltam a quem apetece a glória. Vinde também comigo, e seremos dois a cantar.
Gil respondeu gravemente, mostrando Gonfalim e o paço acastelado:
– Acolá fica a casa de meu pai.
Então o moço tirou o seu gorro:
– Rico sois! Ajudai um pobre estudante.
Gil abriu a escarcela, e, corando, tirou uma moeda de prata que pôs na mão do estudante. E, sem saber porquê, sentia uma atracção para ele, como um desejo estranho de se juntar àquele destino errante. Mas o moço, atirando o cajado para as costas, dando um jeito à sacola, partiu. E de novo cantava:
Dia e noite caminho,
Para onde irei?
E o saber que procuro,
Onde encontrarei?
A meio da encosta ainda se voltou, acenou com a mão a Gil – e subitamente desapareceu. No chão, em que os seus pés se tinham pousado, a erva secara toda.