Últimas Páginas (1912)/S. Frei Gil/VII
Gil recolheu ao solar, pensativamente. Aquele moço pobre partia, sem temer as misérias do caminho, pronto a esmolar o seu pão pelos mosteiros – só para adquirir, longe, nas grandes escolas, o saber a que aspirava. E ele, rico, que poderia partir, com bolsa farta, escudeiros e bagagens, hesitava em partir, para satisfazer as justas e nobres ambições do seu espírito! Se Deus lhe pusera na alma aquele ideal elevado, era por acaso para que ele o deixasse morrer insatisfeito e inútil? Dava-lhe Deus uma luz clara, para ele alumiar os outros, e em vez de a tornar mais viva e clara, tão alto, quanto alta possa ser uma luz da Terra, ele deixaria, por timidez e enleio da vontade, que ela esmorecesse e perecesse entre as abóbadas de um velho solar? Não, decerto! E como, pensando assim, avistasse à beira do caminho um cruzeiro – tirou o seu barrete, e jurou pela cruz que nessa noite falaria a seu pai, e lhe pediria para ir estudar a França.
E foi num caramanchão, no pomar, que ele revelou a D. Rui e a D. Tareja este grande desejo do seu coração. A ambos pedira para o acompanharem ao pomar, que tinha grande nova a dar a quem tanto amava... E sentado num rude banco de pedra, sob um caramanchão, onde se entrelaçavam rosas e madressilvas, tendo numa das mãos presa a mão do seu pai, na outra a da boa dona, lhes disse quanto lhe penava o passar os anos naquele solar, sem proveito para si, e utilidade para os outros homens, seus irmãos: – tinha a ambição da glória, de honrar o seu nome, e de espalhar o bem pelo mundo: mas o serviço das armas, se lhe poderia dar glória, não o atraía, porque na guerra não havia senão miséria e mal: – e depois de muito cogitar, decidira que o seu desejo se satisfaria indo estudar às escolas de França, para voltar ao reino, como um grande escolar em medicina, que era um saber próprio de nobres.
Apenas um ou dois anos por lá passaria. Daria de si novas constantes – e ainda eles não teriam começado a sentir a longura da separação, já ele estaria de volta, licenciado no grande saber, para espalhar o bem em todo o reino, e ser bendito dos homens.
– Isto vos peço, pelas chagas de Cristo, que me não negueis este desejo, que é para bem dos homens, e por Jesus inspirado.
As lágrimas caíam pelas faces dos dois velhos. E elas e o seu silêncio, bem mostravam quanto eles julgavam nobre o desejo do seu Gil, inspirado pelo Céu, e difícil de ser recusado.
Mas dois anos de separação – e eles já velhos, e a França tão longe!
Como se ele já partisse, e ela o quisesse reter, a mãe abraçava o filho e murmurava:
– Em tanto mimo criado... E partires só para essas terras! E tão grandes os perigos e as tentações! Nós, sós, sem ti, como viveremos!
Mas o velho, mais forte, recalcando a emoção, exclamou:
– Tão nobre desejo não pode ser negado. O nosso filho tem altos espíritos... Não é nesta aldeia, neste velho solar, que ele pode ganhar fama e servir o reino. Não seria o amor de pai que, para não sofrer um ano, deixasse aqui neste ermo apagar-se, sem serventia, luz de tamanha promessa. Não te pese que choremos... Cumpre tu o teu dever de homem bom. Deus te leva, Deus te trará.
Gil murmurou:
– Deus decerto me trará.
Ficaram um instante todos os três abraçados – depois, em silêncio, foram à igreja, onde muito tempo rezaram.
Sem outras lágrimas, ainda que com grave melancolia, foram feitos os aprestos da longa jornada. Duas possantes mulas de caminho, uma para Gil, outra para o seu escudeiro Pêro, vieram da Feira da Covilhã, com os seus arreios novos. Os alforges de couro foram atulhados de roupas novas: – e o ovençal de D. Rui reuniu quinhentos maravedis de ouro. O bom abade dos beneditinos deu cartas de boa acolhida para os conventos de Espanha e de Provença, e um monge, que fizera a jornada, marcou num grande pergaminho o roteiro que, através de Castela e de Leão, levava à cidade de Paris. Na véspera da jornada, a capela do solar e a igreja de Gonfalim estiveram toda a noite alumiadas, com capelães e os solarengos rezando, para que o Senhor guardasse o fidalgo que partia. D. Tareja lançou ao pescoço do filho uma relíquia, um pedaço do manto da Virgem, dentro de um escapulário. Nessa madrugada Gil ouviu missa – e o velho Frei Múnio deu a bênção a tudo que ele levava, armas, alforges, o grande lebréu e a mula. Pelas horas de matinas, estando todas as aias e serviçais reunidos no pátio – D. Gil apareceu, entre o pai e a mãe, pálido, com o seu grande feltro de jornada, um brial escuro, e grandes botas de couro cru, onde brilhavam acicates de ouro. De joelhos, recebeu a bênção do pai, longamente esteve fechado nos braços da mãe. Todos os sinos então repicaram. Os solarengos, erguendo os sombreiros, bradaram: «Boa ida, boa volta!» E, com os olhos vermelhos, mais pálido que uma cera, o Senhor D. Gil, a galope, transpôs a levadiça do solar.
Amparados um ao outro, os dois velhos subiram à torre de atalaia. E quando viram as duas mulas desaparecer, ao fundo da azinhaga, caíram de joelhos nas lajes duras, tremendo, chorando, murmurando o padre-nosso.
À entrada da ponte, um velho de cabelos brancos, sobre a sua garnacha negra, deteve D. Gil que trotava, soluçando. Era Mestre Porcalho, que lhe vinha dizer o adeus da partida. O fidalgo e o velho físico longamente se abraçaram.
– Lede Galeno – murmurava o prático entre lágrimas mal reprimidas.
E quando Gil de novo trotava sobre as lajes sonoras da velha ponte romana, ainda o físico lhe bradou, com a mão descarnada no ar:
– Lede-me sempre Aristóteles!