Últimas Páginas (1912)/Santo Onofre/II

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Mas como o Solitário ia entrando na perfeição – o Demónio, inquieto com o Santo novo que surgia, correu ao ermo: – e desde então começaram na alma de Onofre os sustos, as surpresas, os ruídos, os combates de uma cidadela cercada. O cenobita com quem ele ao princípio habitara no deserto de Cétis, o velho Apolónio, que transpusera um cento de anos, e só conseguia caminhar com as mãos no chão, muito Longamente o instruíra sobre as artes múltiplas e ondeantes de Satanás, que invade os corações, menos pela força e despedaçando, que por uma penetração de horrenda, abominável doçura. E, todavia, tão serenos e seguros foram os seus primeiros tempos no Deserto, que Onofre, como uma sentinela que vê em torno a planície só coberta de espigas e luz, e se encosta

à lança e adormece, deixara o Inimigo penetrar no seu ser, com a facilidade de uma cobra que escorrega entre as tábuas mal juntas de uma cabana. Ainda ele, cada dia, ao escurecer, repousando à borda do seu eirado, com os olhos afogados nas estrelas, agradecia ao Senhor aquela doce misericórdia que caía na sua alma como uma fonte de leite – e já a Serpente bebia desse leite. O arbusto dá o perfume da sua flor, e não sente o verme: – Onofre não sentia o Demónio deteriorando a raiz da sua perfeição. Era então apenas nele, a essa hora de silêncio, de estrelas, uma recordação tão doce da cidade de Afrodite e da taberna de seu pai, que a cabeça lhe pendia contra a rocha e cerrava as pálpebras para reter, mais perto da alma, essas imagens, inesperadamente belas, de arvoredos, e casas alvejando entre os arvoredos, e alegres rumores humanos.

A taberna de seu pai era no bairro grego de Afrodite, junto à Porta das Areias, à orla de um bosque de mimosas e sicômoros que, por sobre uma colina mais alta que as muralhas, se estendia até um pequeno santuário de Esculápio.

Por aquele lindo bosque acompanhava ele sua mãe – que era grega, das ilhas Egeias – quando ela, já pálida, consumida pelos ardores do Egipto, ia suplicar a saúde ao deus helénico, o claro ídolo de barbas douradas, e derramar sobre a sua ara o puro azeite da Ática, que ele levava na mão numa infusa pintada. Era sempre de madrugada, quando, nos vergéis do Santuário, cantavam os galos votados a Esculápio.

Do lado das muralhas, onde se aquartelava a Legião Germânica, vinha o som áspero e grave das tubas, que o faziam pensar em marchas triunfantes por países bárbaros e altas cidades cercadas. E sua pobre mãe parava cansada, com a mão transparente contra um tronco de árvore, respirando o aroma esparso de violetas entre a relva, que lhe lembravam a doçura da sua pátria.

Por aquele bosque também todas as tardes, com a sua infusa de greda sob o manto de linho, descia, a buscar à taberna cerveja da Cilícia, ou vinho mareótico, o velho Amónio, o arquivista do Santuário, que lhe ensinava as letras, os números, certos ditames da música, as divisões do Império Romano, e mesmo, sobre uma esfera feita de verga fina, o caminhar das estrelas. Bom Amónio, que sempre o amara, lhe admirava tanto a inteligência, e mesmo aconselhava a seu pai que o mandasse estudar, às escolas de Alexandria, a Gramática e a Retórica!

Nem todos os pagãos, decerto, pertencem ao Inferno. Aquele era simples, doce, humano – e esfarelava sempre, na taberna, sobre o chão areado, um pouco do seu pão para as andorinhas e os íbis...

Assim Onofre cismava e recordava, à porta da sua caverna, entre as rochas, envolto pelo Deserto. E como hóspedes bem acolhidos em casa aberta e farta, que voltam contentes, trazendo outros camaradas – estes pensamentos invadiam cada noite a alma do Solitário, arrastando outros, mais ligeiros, mais cheios de rumor e da alegria do mundo que ele abandonara. Todos vinham sempre daquela taberna do Galo, tão clara e fresca entre os sicômoros. Como ela era asseada e bem regulada! Junto da porta estava pendurado o longo azorrague para os servos que não estendessem, bem finamente, pelos pátios, a areia vermelha entre as sebes de rosas – ou que não esponjassem cada madrugada, sobre os muros caiados de amarelo, o sulco fumarento das lâmpadas; mas, na verdade, só sobre o açoite se amontoava o pó, tanta era a diligência e a ordem. Nenhum pão se amassava em Afrodite mais ligeiro, e branco, e doce, que o do Galo! E para comer as ostras de Canópia, que todos os dias chegavam pelos barcos do Nilo, em grossas caixas forradas de limo, vinham lá mercadores ricos, e até sacerdotes – porque os que servem os Ídolos são sempre vorazes. Também os gregos, naquele bairro novo, escolhiam sempre o Galo para rematar, à noite, com danças, as horrendas festas dionisíacas. Quantas vezes, antes que a Verdade o penetrasse, ele ajudara culpadamente a pendurar lanternas no largo, espalhando sicômoro, que assombreava o pátio, do lado das muralhas. Ao escurecer, os místicos apareciam, em bando, moços e raparigas, de volta do templo, coroados de hera e choupo, disfarçados com máscaras, embrulhados em peles de bode, cantando os hinos de Iacos. Os servos subiam logo da adega, segurando pelas asas um vasto cântaro de vinho novo. Caraças e peles eram arremessa-das para junto das mesas, armadas sob o velário de esparto, cobertas de azeitonas, de bolos de mel, de frutas em cestas, e de gelo que rebrilhava. Todos corriam a refrescar as faces, esbraseadas e cheias de pó, na larga piscina ao lado do alpendre dos dromedários. Dois moços dos mais ágeis, então, dançavam a pírrica, erguendo vasos à maneira de escudos, e brandindo, como lanças num combate, os tirsos de mirto e rosas. Depois o cântaro enorme de vinho era arrastado para o meio do terreiro, coroado de flores – e todos, de mãos dadas, rapazes alternando com as moças, a força entremeada à graça, bailavam, ao som triunfal das flautas e dos crótalos, a coreia sagrada, gritando: «Iacos! sê connosco!» Delírios abomináveis! Mas, no dançar daquelas pagãs, votadas aos fogos do Inferno, mais brancas que mármores, e com formas impuras de deusas, quanta arte perversa, e quanta beleza!

Uma sobretudo, Glicéria, que era filha de um gravador de pedras finas, e morava tão perto do Galo que ele a sentia cantar, fiando, sentada à beira do seu eirado, ou pendurando nos ramos do limoeiro as roupas do irmão pequenino! Muitas vezes, passando pela sua porta, de madrugada, vira sobre ela, traçados com gesso, louvores à sua formosura, e à graça do seu andar: – Glicéria, por ser a mais bela, inquieta Vénus! – Os teus pés, oh Glicéria! correriam sobre lírios sem lhes macular a pureza! – E ele corava indignado, como se surpreendesse um ultraje. Tinha então quinze anos – ela vinte: e quando a avistava à beira do terraço, ligeira e branca, com o irmãozinho no colo, uma melancolia sem razão, doce como o crepúsculo, descia sobre o seu coração. A última vez que a encontrara fora nessa manhã, em que ele subira ao templo de Esculápio, para se despedir do velho arquivista, seu mestre.

Era à hora da sesta – e em torno do Santuário, branco e lustroso, o bosque sagrado repousava no esplendor do sol de Agosto, sem um murmúrio de ramagem, abrigando aqui e além, na sombra fresca, alguma nudez de estátua, que rebrilhava.

E no silêncio, o gotejar dormente das águas lustrais sobre as bacias de pórfiro, o arrulhar fugitivo de uma rola, eram ainda como rumores religiosos, cheios de gravidade e doçura.

O vasto Esculápio, sobre o seu altar, no alto das escadarias de mármore cor-de-rosa, sorria beneficamente na sua barba dourada, encostado ao seu bastão onde se enroscava uma cobra de bronze. Numa gaiola de cedro as duas serpentes rituais, gordas, mosqueadas de amarelo, dormiam com beatitude, enroscadas sobre fofas lãs de Mileto. A um canto, na sua cadeira de marfim, o sacerdote de serviço dormia também, com as mãos, resplandecentes de anéis, pousadas sobre o ventre, e uma ponta do manto de linho estendida sobre a face, suada e nédia. E na ara de bronze, coberta de brasa, um fumo leve, e lento, e direito, e perfumado, subia como uma prece contínua e serena. À espera do seu mestre, ele passeava na frescura dos pórticos, entre as colunas de mármore, cobertas de estelas votivas, e de cachos de mimosas, abafando, sobre as lajes bem lavadas, o ruído das suas sandálias–quando ela apareceu na longa avenida de palmeiras. Lenta, pensativa, com as mãos embrulhadas no véu leve cor de açafrão, que lhe pendia dos cabelos, ela veio caminhando, pela tira de sombra, até à escadaria de mármore, que os seus joelhos tocaram, levemente. E os seus olhos, que ergueu vagarosamente para o Deus, e onde uma lágrima bailava, eram como duas pedras preciosas refulgindo sob água. Depois, com a mão que desembrulhara do véu, deixou cair na ara um punhado de incenso. Contemplou um instante o fumo aromático que envolveu a face do ídolo – e desceu a avenida, com passos lentos, e pesados de cuidado, sob a sombra estreita das palmeiras. Ela resplandecia de saúde e viço. Para que ser bem-amado viera pois implorar o seu Deus? Longe, sob as árvores, o seu véu, colhido num raio de Sol, reluziu como ouro. E ele não a vira, nunca mais...

Ora uma noite que assim cismava, com a cabeça encostada às rochas, sentiu perto como um rumor de sandálias, e um aroma lento de incensos. Abriu os olhos, num espanto – e no sítio da sua negra caverna alvejavam os mármores do templo, Esculápio sorria nas suas barbas douradas, a ara fumegava docemente, e Glicéria, sem véus, estendia os braços! Mas era para ele, não para o Deus, que estendia os braços suplicantes e nus. Sob a túnica, mal franzida, o seu seio arfava, como num desejo que anseia e se retém. Toda ela sorria, com as pálpebras pesadas. E o calor do seu corpo radiava através dos tecidos leves.

Tão viva e real era aquela presença que Onofre, a tremer, murmurou: «Que queres?» E já se erguia, as suas mãos mergulhavam naquelas brancuras de carne e mármore – quando tudo subitamente desapareceu, como sorvido pela boca negra da caverna. Onofre, então, com imensa tristeza, reconheceu que o Demónio penetrara enfim na sua solidão. Aquelas recordações dos antigos dias, que julgara mandadas por Deus, para que ele agora, vivendo nas delícias da verdade, as contemplasse com o salutar horror com que o homem, um momento transviado, considera as nódoas de vinho na túnica que de si arrojou – eram trazidas pelo Demónio, que as embelezava, para que o que nele restava ainda de humano e carnal se prendesse à sua doçura.

E com efeito ele estremecera, suspirara... A sua alma, pois, que fechara toda dentro de Deus, não estava ainda bem segura!

Rojado nas lajes, com os braços lançados em torno da cruz, Onofre toda a longa noite implorou, ao Senhor, fortaleza.