Últimas Páginas (1912)/Santo Onofre/III

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Como uma sentinela desconfiada, à porta d’um castelo, ele vigiou então severamente os pensamentos que se lhe apresentavam vindos do seu passado, e só recebeu aqueles que traziam a marca luminosa da Graça.

O mais doce desses, era o do bom Amés, um escravo núbio, que seu pai comprara a um bando de sarracenos nómadas, e que, tendo percorrido a Arábia, e a Mauritânia, e a África até ao país dos Garamantes, lhe contava, na sua infância, maravilhosas histórias de guerras, de leões, de povos temerosos, e de tesouros escondidos em cavernas. Seu pai, desde que findara a perseguição de Diocleciano, costumava alugar dromedários aos cristãos de Alexandria e do Delta, que subiam o Nilo até Afrodite, em peregrinação aos mosteiros da Baixa Tebaida. Amés que conduzia, como cameleiro, essas caravanas piedosas, adorara muitos deuses, porque servira muitos amos. Mas, desde essas primeiras jornadas à Tebaida, reconheceu, e compreendeu o Deus verdadeiro, através da bondade e da caridade, tão novas para ele, desses doces cristãos, pacientes e piedosos, que lhe ajudavam a arrear os dromedários, lhe tiravam dos pés os espinhos ou as lascas de conchas, partilhavam com ele das suas porções de lentilha e de azeite, e, sob a tenda, diante das fogueiras, ou pelas sestas, à beira dos poços, o chamavam, lhe abriam lugar, como a um semelhante e a um irmão. As águas inestimáveis do Baptismo tinham, enfim, banhado resgatadoramente o seu miserável corpo de escravo, mais lustroso que o ébano e todo coberto das cicatrizes do açoite e dos ferros.

O bom Amés, desde então, resplandecia de contentamento e paz. E fora esse pobre servo, resgatado na alma, que lhe contou desse Deus novo que nascera humildemente num curral, errava pelos caminhos da terra com os pés nus, e cercado de pobres, ensinava a Caridade, e a Bondade, e a Humildade, parava à porta dos casais a beijar as criancinhas, e quisera morrer, por amor dos escravos, numa cruz, como um escravo.

Era sempre de noite no cubículo em que ele dormia, sob o alpendre dos dromedários, que o bom Amés, agachado numa esteira, com os olhos a reluzir como estrelas, lhe desenrolava esta história maravilhosa – a daquele grande Reino celeste, além das nuvens, para onde todos aqueles que amassem Jesus e cumprissem a sua doce lei, iriam, logo depois da morte, sem demora, começar uma vida incomparável, toda feita de delícias, entre vergéis de cristal e ouro.

E ele, a estas revelações de Amés, sentia na sua alma um rumor, um brilho de claridades, e a frescura de um ar mais puro, como se ela fosse uma casa muito tempo fechada e abafada, onde alguém, bruscamente, e uma a uma, abrisse as janelas à brisa e ao sol da manhã.

Que alvoroço, então, quando aparecia na taberna, conduzida pelo gordo Basílio, diácono da igreja de Afrodite, alguma pequena companhia de cristãos, que desembarcava e vinha apreçar dromedários! Até esse dia sempre se afastara deles, num vago susto, uma desconfiança que lhe ficara do tempo em que sua mãe lhe contava que os Cristãos «comiam criancinhas embrulhadas em farinha» e para lhe abafar os choros e as perrices, murmurava apontando para a porta: «Cala, filho, cala, senão vêm os Cristãos que te comem!»

Mas depois! Mal eles apareciam, corria, mais reverente que nenhum servo, para os aliviar das trouxas e das bagagens, e acarretava alegremente a água para as abluções, e estendia tapetes sob os pés dos mais velhos, atento aos seus menores movimentos como a actos consideráveis de santidade. Quando seu pai, tomando as lâminas de chumbo, e o estilete, começava a somar as despesas, ele corava, tremendo da sua cupidez. À Porta das Areias, esperava longas horas, entre os publicanos, o regresso das caravanas. E se ao chegarem, algum dos peregrinos cristãos, poeirento e tisnado dos sóis, o reconhecia, lhe acenava logo, sorrindo do alto do seu dromedário – o seu coração batia de alegria e de orgulho.

Depois, nessas noites, no seu cubículo, não se fartava de escutar o bom Amés, contando as marchas e os repousos, e os mosteiros florindo no Deserto, e as novas façanhas dos grandes Solitários – Múcio, para que os seus discípulos se abrigassem, fazendo reverdecer uma acácia seca, ou Pacómio, para atravessar o Nilo, acenando a um crocodilo e montando sobre o seu dorso! O desejo de acompanhar também as caravanas, e testemunhar tão doces maravilhas, foi então, na sua alma, mais imperioso e ardente que uma longa sede num areal deserto. Mas essa sede, de que sofria, com quanta pressa e misericórdia lhe contentaria o Senhor?!

Dois monges da Síria, Germano e Cassiano, tinham então, depois de uma longa peregrinação pela Nítria e Deserto Líbico, chegado a Afroditopólis para tomarem dromedários, e visitar os mosteiros da Baixa Tebaida, até Colzim e o mar Vermelho. E seu pai que desejava então contratar com os abades desses mosteiros o fornecimento de trigo, e óleos, e lãs, determinou, de repente, que ele partisse nessa caravana dos dois monges sírios, levando cartas de Arquébio, bispo de Pafenísia. Que surpresa, que alvoroço! João Cassiano e o seu companheiro eram do país dos Citas, mas polidos por uma longa residência na Ásia Menor, e ambos homens de grande saber e doçura. E quando naquela primeira noite, em que acamparam junto às grandes serras de onde se tira o mármore vermelho, ele, tremendo, suplicou a João Cassiano que tomasse a sua alma para a conduzir à Verdade, foi como se, pela primeira vez, soubesse o que era a ternura de um pai. O incomparável jornada, em que cada passo, mais gostoso que o de um triunfo, o avizinhava do Céu!

Então conheceu inteira, e mais verdadeira do que lha soubera ensinar o bom Amés na sua simplicidade, a Lei de Jesus: – e a fé penetrou no seu coração, com a certeza e o fulgor de uma espada. O céu não era mais luminoso do que a sua esperança, naquela madrugada em que avistaram o mosteiro de Cétis – e as três palmeiras que estão à entrada, tendo cada uma, pendente dos ramos baixos, disciplinas de corda, de couro e de ferro, porque a sua regra é austera. A buzina do velador, que observa as estrelas na torre da igreja, acorda de noite, de hora em hora, os monges para que eles rezem, de pé, nas suas cabanas, estreitas como esquifes, sem porta, apenas guarnecidas de uma grade baixa contra os escorpiões. De dia cada um permanece isolado na sua cabana, encruzado sobre um montão de folhas de papiro, que lhes serve de leito, a rezar sem repouso, a trabalhar sem repouso – tecendo esteiras, copiando evangelhos, cosendo odres, polindo ágatas. Ao declinar do Sol, o despenseiro vem colocar silenciosamente, a cada porta, um pão duro. Então, no ar mais fresco, passa o lento, longo suspiro daqueles penitentes, que enfim descansam. No curto crepúsculo, com os braços ociosos, eles contemplam, da abertura avara das celas, os altos montes que cercam o mosteiro, e o Céu que é o cuidado das suas almas. À noite, os chacais uivam nas quebradas. Na escuridão de cada cela há gemidos, e o silvar dos azorragues. Depois tudo emudece: – e dois monges dos mais velhos, sumidos nos seus capuzes, rondam através do mosteiro adormecido, com lâmpadas e grandes cruzes, para afugentar os Demónios, que sob formas horrendas ou formosas, àquela hora invadem o ermo. Oh! a regra é dura – mas como ela dá contentamento e paz infinita a todas aquelas almas, por sentirem tão certo e vizinho o Paraíso!

Por isso ele, depois de receber o Baptismo, em dia de Páscoa, e ter comido o bolo de mel, e revestido a túnica de inocência, suplicara, em lágrimas, ao velho abade Serapião, que lhe concedesse uma cela para viver entre os seus monges, no trabalho perpétuo, na perpétua oração... Mas o bom abade não consentira – porque a sua fé era recente, o que um sopro levanta um sopro o abate, e só almas experimentadas em maior aspereza e solidão podiam recolher, nas doçuras espirituais daquele mosteiro ilustre, o preço da sua fortaleza.

Então, por conselho de Serapião, ele penetrara mais longe, no Deserto, para além da Planura dos Carros, nas agrestes serranias que se alongam até Colzim. E aí fora servir um velhíssimo Solitário, a quem o derradeiro discípulo fugira, com um bando de sarracenos, para remergulhar no Pecado. Nilo era o nome desse Solitário espantoso, que tinha cento e vinte e três anos, e já não podia caminhar senão de rastos com as mãos sobre as pedras.

Tão longa e alta fora a sua penitência, naquela solidão, durante um século, que não temia Deus, nem orava – e, como um obreiro que findou a obra, apenas se contentava em olhar o céu, silenciosamente, à espera do seu salário. Durante três anos que servira aquele Santo terrível, nunca dele recebera um sorriso, uma consolação, um amparo – porque de tanto viver na solidão arenosa e pedregosa, aquela alma ganhara a secura das areias e a rigidez das serranias. Mas se ele, entre duas longas orações, estendia mais o seu repouso, ou se retardava à beira do poço salobre que lhe dava a água – logo os olhos do Solitário, aqueles seus olhos pequeninos e rebrilhantes entre densas pestanas brancas, o traspassavam numa repreensão muda e dura. Ah! ele nunca decerto compreendera aquela virtude medonha!... A fama da sua velhice, da sua santidade, invadira todo o Egipto. Dos montes e das cidades acudiam monges, acudiam mesmo pagãos, para o visitar, uns na admiração de tão espantosa penitência, outros na esperança de serem por ele curados de feridas e males. O terrível velho, porém, nem sequer consentia que eles se aproximassem da sua caverna: – e um dia mesmo tentou arremessar contra um mais ousado, que lhe queria tocar o corpo ou a túnica de pele, uma pedra que o seu braço já não pôde erguer. Era de longe que os peregrinos o contemplavam – enquanto, sentado no chão, com os olhos baixos ou perdidos no céu, e tão alheio àqueles homens como se fossem as pedras do seu Deserto, bocejava com lentidão, ou metia a mão por entre a túnica para coçar sobre o peito, e sobre os rins, as feridas incuráveis que lhe deixara o cilício. Enfim uma madrugada, indo ele junto do monte de folhas secas que lhe servia de leito para o ajudar a erguer, encontrou o Solitário morto! Morto, como adormecido, na postura de uma criancinha, com a mão sob a face, os joelhos junto do peito, tão pequenino, que as ervas secas do leito eram mais longas: – e a sua face, tornada cor-de-rosa, sorria com serenidade.

Por suas mãos o enterrara na areia, junto da grande cisterna: – e quando a cova ficou bem coberta com pedras por causa das feras, ele sentiu penetrar na sua alma o heroísmo penitente do velho Solitário. Era como se tivesse herdado aquela alma formidável, que se reunira à sua e lhe comunicava a sua fortaleza invencível. Trans-portado numa imensa esperança, apeteceu ansiosamente, também, uns cem anos de Deserto, e de oração, e de mortificação, e o seu nome espalhado por todo o Egipto cristão, e uma morte igual, com a mão sob a face, sorrindo, e tão pequenino que coubesse nos braços de um anjo! Recolheu então a túnica de pele que usava Nilo, e o seu rolo da Escritura, e o seu bordão, e a sua cabaça, e avançara pelo Deserto, para o lado do oriente e do mar. O seu sustento todo fora um pão trazido da caverna do velho: para evitar que um bando de nómadas o levasse como escravo, estivera uma noite inteira agachado, enterrado nos lodos fétidos de uma lagoa: lutara, às pedradas, contra as hienas; uma planície de sais, grossos e cortantes, retalhara-lhe os pés; marchando sob o sol, chorava de sede, contente de chorar porque bebia as lágrimas... E sob estas angústias e terrores da carne, a sua alma resplandecia, certa de que cada sofrimento era um degrau subido na longa escadaria do Céu. Por fim, uma madrugada, avistara aquelas palmeiras ramalhando ao vento, e a mimosa em flor, e no alto, aberta, como se o esperasse, a caverna.

Com que felicidade a visitara, e toda a serra de rocha em rocha, e a fonte clara e fria que cantava no vale, e os arbustos que a ensombravam! Oh maravilhosa granja, em que era escravo, para viver sozinho com o seu Senhor! Todo esse dia cantara cânticos de Graça. E desde que ali habitava – já três vezes a mimosa se cobrira de flores!

Assim rememorava Onofre agora, cada dia, o seu passado piedoso. E sempre emergia desta meditação com um contentamento maior, mais vivo, pela sublime obra que empreendera.

Ela era magnífica e rara entre os homens. Os monges de Tebane, de Cétis, da Nítria, do lago Maria, viviam nas doçuras da comunidade, e viam girar, no alto das colinas, os moinhos que lhe moíam a farinha, e se as febres os assaltavam, o irmão sabedor das artes médicas corria com o seu frasco de óleo e o molho de plantas salutares. Os Solitários não se afastavam das cercanias do mosteiro, ou do Nilo, que é a rica, populosa estrada do Egipto. Antão mesmo! O velho túmulo em que se enterrara vinte anos, estava a dois dias de Afrodite, no caminho das caravanas. Mas ele! mais solitário que todos os Solitários, habitava os confins do mundo. A ocidente eram léguas sem fim de areias e rochas; a oriente, o mar estéril: e só ele, naquelas solidões pavorosas, lançando o seu cântico perene para o Céu. Por isso também o olhar de Deus o distinguiria mais claramente, assim destacado e único, naquela imensa extensão de terra.

E depois com que facilidade ele abandonara o mundo, e os homens, e todas as alegrias da humanidade! Um pobre escravo, simples, inculto, conta-lhe um dia desse Deus novo que nascera em Galileia – e eis que ele sacode de si, como uma velha sandália, crenças, e afeições, e as riquezas de seu pai, e as promessas surpreendidas nos olhares das mulheres, e logo se dá inteiramente e para sempre, e parte, e penetra nas solidões, para servir e amar em silêncio esse Deus, ainda mal conhecido e indistinto, como uma estrela entre nuvens! Onde houvera aí fé mais pronta e mais confiada?!

Por isso também Deus, reconhecido, lhe dera aquela serenidade em que ele vivia, já havia três anos, sem saudades que o pungissem, nem terrores que o arrepiassem, seguro naquelas bravias serras, como um rei no seu palácio.

Oh! sem dúvida, o olhar de Deus estava sobre ele, e todo o envolvia no seu esplendor sublime; e o Demónio e o seu sopro mundanal não podiam transpor, nem sequer roçar aquela Graça que o defendia.

Ora uma noite que ele assim pensava, sentiu como o deslumbramento de uma claridade – e erguendo os olhos, viu, entre a treva rasgada como um pano, uma vaga nuvem refulgente, de onde Jesus, debruçado, com a sua cruz entre os braços, espreitava para baixo, para a terra do Egipto.

E, oh dor! não era para ele, único e tão visível, naquela grande solidão, que se voltava e sorria a face do Crucificado – mas para além, para o lado das cidades, para uma multidão que se agitava, miúda, e escura, e ínfima, como um formigueiro, entre searas e muros!

Atirou os braços ao céu, gritou desesperadamente:

– Oh meu Senhor, estou aqui, teu servo no teu Deserto!

Mas, entre as sombrias cortinas que se cerravam, a face do Senhor desapareceu, desatenta, como se para ele não houvesse nem servo, nem deserto! E tudo recaiu em mudez e treva.

Então, com os cabelos eriçados de horror, Onofre compreendeu que aqueles pensamentos em que se comprazia, como se fossem flores da sua Piedade, eram subtis rebentões do seu Orgulho. Numa lacrimosa oração, prometeu ao Senhor repelir da sua alma todos os pensamentos do passado, pois que todos eles, mesmo os da sua doce ascensão para as Verdades, traziam consigo a mácula do mundo, como raízes que, ou sejam de planta salutar ou de flor venenosa, vêm sujas do lodo negro em que mergulharam.

E para maior humildade, selou a sua promessa com o sangue que as disciplinas toda a noite lhe arrancaram do corpo.