Últimas Páginas (1912)/Santo Onofre/IV

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Então, para que esses pensamentos da sua vida entre os homens não lhe turbassem a alma, Onofre, na curta hora de repouso, ao escurecer, forçava os olhos a contemplar, uma a uma, as aparências do seu Deserto. Imóvel, à beira do seu eirado, considerava longamente as formas e as semelhanças das rochas – umas escarpadas, lisas, como muros de cidadelas, outras agudas, avançando na sombra crepuscular como proas de galeras encalhadas, outras redondas, em montão, de um alvor fúnebre, como crânios que restassem de uma antiga, esquecida matança. Meditava as serras que se estendem para o sul, a sua aspereza e nudez, os antros que decerto as escavavam, e os fundos barrancos, mudos, abafados em treva. Mais longe seguia a infindável lividez do areal, ondeando à maneira de um sudário onde o vento fez pregas, até às orlas de um mar bravio, que não se avistava... E para além das areias, e das rochas, e dos montes, havia ainda outros montes, e penedias, e dunas, e pântanos, e solidões, que o separavam dos homens.

Então, lentamente, foi nele nascendo o espanto, depois o terror da sua solidão. Arrepiado, ele recordava as histórias outrora ouvidas no Galo a Amés, a velhos cameleiros das caravanas entre Berenice e a Líbia, sobre as gentes medonhas, as feras que povoam aquela região, a mais bravia de toda a terra. Pelas bordas do mar, erram as horrendas tribos troglodíticas, que não têm deuses, nem leis, se nutrem de peixe cru e das cobras dos rochedos, bebem sangue, possuem em comum as fêmeas felpudas, e saem de rastos dos seus covis de lama, para uivar à Lua. Ali, naqueles descampados, vive a mais pavorosa das feras, o touro-sarcófago, que come a carne humana, é cor de fogo, expele um bafo que resseca as plantas, e, alternadamente, deixa pender os cornos como membranas moles, ou os enrista para o ataque, tão agudos, e longos, e duros como dardos de ferro! Mas, terríveis entre todas as feras. eram essas serpentes do Deserto Arábico, tão compridas e grossas, que em repouso, e quando fartas, fazem na planície como uma colina de roscas e escamas, onde luzem no cimo, e se avistam de longe, as duas brasas dos seus olhos... E era no meio de serranias, povoadas por estes monstros, que ele vivia, desamparado.

Então, desvairado pelo medo, começou a fortificar, como na véspera de um assalto, o largo eirado, onde se abria a sua caverna. Em longos dias de suado trabalho, conseguiu rolar um penedo para defronte dos rudes degraus, que desciam para o vale e para o horto. E apenas reconheceu a inanidade da sua obra! Selvagens e feras podiam descer sobre ele dos cumes do monte, que do lado do sul se ligava, por um dorso fácil, a outras serras, aos areais. Recomeçou: arquejando e gemendo, acarretou grossas pedras para a boca da sua cova, onde todas as noites erguia laboriosamente um muro que, cada madrugada, desfazia. Mas, assim emurado, ainda não sossegava. Constantemente, silvos, mugidos, o rojar de pedras sob patas moles, sacudiam, sobressaltavam o seu dormir ansiado. Certo bater de asas, sobretudo, semelhante a grossos tapetes que se sacodem, tornava agora a cada instante sonoro aquele ar tão mudo e limpo do seu Deserto: – e ele não duvidava que fossem essas horrendas aves, de face humana, que assaltam os viajantes solitários, os embrulham nas asas felpudas, lhes chupam o sangue. Quantas vezes ele ouvira contar a Amés como dois soldados da Coorte, estacionada em Fulacon, para escoltar as caravanas da Líbia, tinham sido devorados por estes vampiros!

Uma noite sentiu desabar, com estrondo, o muro que fechava a sua caverna. Até que a madrugada clareasse, não cessou de tremer, agachado num recanto, com os cabelos eriçados, e o rolo do Evangelho aberto diante do peito, como um escudo. Que valiam, com efeito, pedras, mal postas sobre pedras? Só do Senhor devia esperar a defesa que nenhuma força derruba.

E não tornou a erguer aquela vã e frágil parede. Diante da caverna, plantou a cruz de madeira. Mas o deserto parecia agora cheio de rumores e de formas. Cada hora de escuridão se tornou um imenso pavor.

Com que inquietação ele via descer, ao longe, sobre os desertos da Líbia, o Sol, que era a sua protecção! Não se sente mais desamparada uma criancinha que a mãe abandona numa estrada escura. Apenas a sombra se estabelecia nas quebradas, e toda a cor se apagava sobre as rochas, começava, em torno do Solitário, o mover e rumorejar de uma vida tenebrosa e disforme. Bafos mornos e fétidos passavam logo sobre a sua face: tropéis de patas, o duro entrechocar de cornos, roncos ásperos, estalidos de galhos que se partem, não cessavam na treva densa: longe, no areal, corriam, volteavam, clarões de fachos, guedelhas sacudidas no ar, e panos lívidos como sudários; – e até lhe parecia que os montes se mexiam, como dorsos cansados que se estiram. Debruçado da sua esplanada, ele distinguia então o lento ondular de alguma serpente, cujas escamas raspavam as rochas: mais grossa que um tronco de cedro, ela avançava, silvando, colava a cabeça à alta escarpa do seu monte, e lentamente, viscosamente, subia, crescia tão perto, que as duas brasas dos seus olhos lançavam sulcos escarlates no rochedo. Com um grito, Onofre recuava, para se esconder na sua caverna –e surpreendia então alguma anca negra, uma cauda felpuda, desaparecendo pela abertura baixa. Cercado de monstros, caía no chão, a arquejar, esperando a morte, numa derradeira oração ao Senhor: – e quando erguia a face, tudo reentrara em imobilidade e mudez, e uma estrela luzia no céu, com serenidade. Mas o seu repouso não durava; outras visões surdiam logo da sombra inesgotável.

À beira da escarpada rocha onde se abria a caverna, no alto, começou, durante longas noites, um silencioso e confuso mover de larvas que se recortavam, nas suas formas diferentes, com uma cor lívida, sobre a negrura do céu. Eram gordas massas rastejantes, esguias figuras semelhantes a obeliscos, pescoços que se torciam no ar como fitas ao vento, tendo na extremidade uma cabeça guedelhuda... Em baixo, no meio do eirado, Onofre tremia, esperando a cada instante que elas se precipitassem, se abatessem sobre o seu corpo misérrimo. Mas nenhuma se descolava da borda da rocha, no seu perpassar incessante e mudo: apenas por vezes um longo braço mole escorregava, pendia, raspando a pedra com garras ásperas; ou uma longa asa se espreguiçava por sobre a cabeça do Solitário, muito no alto; ou uma face horrenda se debruçava, a espreitar, com a língua pendente e cor de fogo. Se ele se refugiava na caverna, sentia por cima, como se a densa massa de rocha fosse apenas um soalho ténue, o pesado tropel de patas moles – e pelas rachas da abóbada, de repente, caía uma ponta de rabo que se torcia, ou descia um dedo com uma longa unha de ferro. Todo o monte parecia fervilhar de vidas monstruosas. Debaixo dos seus pés nus, a pedra tinha o calor, a moleza viscosa de um ventre. A própria abertura da sua cova, ora se alargava, ora se cerrava, como uma boca que espera a presa.

De madrugada, o seu cansaço era tão grande, que mal podia segurar a enxada para cavar o seu horto: – e, muitas vezes, adormecia exausto sobre as folhas abertas do Evangelho. Para espantar os monstros, imaginou acumular galhos e ervas secas, na sua esplanada, e acender de noite uma fogueira.

Imediatamente, nas contorções da chama, apareceu um medonho basilisco, serpente cor de brasa, que tem dois cornos – e o fumo formava longos fantasmas cinzentos, que se enrodilhavam no pescoço do Solitário, e o esganavam.

Certo então da sua destruição próxima, pois que toda a Natureza arrojava contra ele os seus monstros, desde os mais pesados aos mais subtis, Onofre aceitou com submissão o destino que lhe marcava o Senhor: – e, uma noite, ajoelhou diante da caverna, cruzou firmemente os braços, e não se moveu, esperando, quase apetecendo, o remate dos longos tormentos. Imediatamente, uma avantesma monstruosa e estranha apareceu, e, sem um rumor, sem que um dos vastos membros se movesse, ficou diante dele na rigidez e a inércia pesada de um monte. Todo o seu vasto corpo se perdia na sombra, para além da esplanada – e Onofre apenas lhe avistava o gordo e enorme focinho, alongado em tromba, e dois olhinhos, meio cerrados, perdidos na gordura, de uma imensa, intolerável estupidez e tristeza. Era essa certamente a alimária suprema que o vinha devorar: – e tapou a face, com as mãos trémulas e frias, murmurando a oração derradeira.

Quando de novo olhou, o monstro lá permanecia, imóvel e mudo. Um pêlo ralo, e nojento, cobria todo o imenso focinho, onde reluzia, como supurado da sua gordura, um óleo grosso, e em bolhas. A abertura das ventas desaparecia sob o monco que nelas coalhara. E os seus dois olhos pequeninos, baços, não se desviavam de Onofre, tão medonhamente estúpidos, e de uma tristeza tão crassa e densa, que ele fugiu, para os não suportar, rolou para o fundo da caverna, soluçando de desespero. Longas, intermináveis horas passaram: voltou de rastos, a espreitar; a avantesma lá jazia, imóvel, luzidia de gordura, mais estúpida e triste. Furioso, o Solitário agarrou uma pedra, que lhe arremessou contra a tromba. A pedra não deu som: – o monstro, impassível, olhava estupidamente, tristemente o Solitário.

Gritou, com um grande gesto de excomunhão, o nome de Jesus Cristo: – e apenas o som da invocação santa morreu no ar mudo, a avantesma lá estava, maciça, crassa, gordurosa, soturna, olhando o Solitário com a sua tristeza estúpida. E assim foi durante intermináveis, angustiosas noites. Ou Onofre orasse, ou corresse aflito pela esplanada, ou se encolhesse a um canto da caverna com a face nas mãos – o monstro lá estava, na sua pavorosa imobilidade, tão lúgubre, tão estúpido, tão gorduroso, que parecia comunicar às rochas em redor, aos montes, aos céus, às nuvens, a sua gordura, a sua estupidez, a sua imensa tristeza. Onofre passava as noites chorando, gritando, de fastio e de horror.

Um momento chegou, mais desesperado, em que Onofre decidiu abandonar aquele Deserto. Tomou o seu rolo da Escritura, a cruz que fora de S. Nilo, e um dia, antes do declinar do Sol, começou a caminhar para ocidente, para as serras do mosteiro de Cétis.

Estava à orla da grande planície arenosa, quando a escuridão o colheu. Para comer o punhado de tâmaras que trouxera, e beber da sua cabaça, descansou numa rocha – e imediatamente viu diante a alimária disforme, que, sentada, sem que as patas se distinguissem do corpo, jazia como um monte sobre a areia, com a vasta tromba pendente, e cravados nele os olhos, de estúpida e horrenda tristeza. O desgraçado Onofre fugiu para trás, para o seu rochedo, onde ao menos a sua caverna o escondia. E quando de novo, alta noite, alagado em suor, arquejando, pisou as lajes costumadas – o monstro lá estava, com a sua tromba, a sua tristeza, a sua estupidez.

Então o Solitário sentiu um intolerável horror à vida – e os seus olhos devoravam ansiosamente a borda daquele alto rochedo, de onde podia cair para sempre na paz e na insensibilidade. Não se matara Saul? Não procurara e se dera a si mesma a morte Pulquéria de Antioquia, que toda a Igreja louvava? O que era a confissão da Verdade, perante os pretores romanos, senão a voluntária entrada na morte?

E quando assim pensava–eis que, de repente, a tromba do monstro se abre com lentidão, e aparece, sangrenta e profunda, a sua imensa goela. Decerto Deus determinara que aquele fosse o seu fim sobre a Terra. E ele, com arrebatada gratidão, o aceitava, pois que seria assim mais portentoso que o de todos os confessores nos martírios! Ah! não estarem ali multidões para testemunhar a heroicidade da sua fé, e a sua confiança no Senhor!

Encarou, erguendo bem a cabeça (pois que decerto os anjos o contemplavam) aquela goela, horrenda mais que todos os horrores, e que esperava escancarada para o tragar. Mais vasta que um antro, com dois renques de presas, de onde gotejava um sangue espesso, a sua profundidade desaparecia sob uma névoa e um vapor cor de sangue. E não se movia, com a indiferença de um abismo natural, certa de o devorar. Então Onofre alargou os braços, entoou furiosamente um cântico alegre, e marchou para o monstro, e para a morte. Subitamente tudo desapareceu, como uma sombra numa parede.

Imóvel, à beira do eirado, Onofre esfregava os olhos, espantado, como quem emerge de um sonho sinistro. E sentia um cansaço tão pesado, que ali mesmo se deitou sobre as lajes, e todo o seu ser se dissolveu num sono benéfico e calmo. A madrugada que o despertou era a mais fresca, e rósea, e doce, que ele experimentara no Ermo. Quando desceu ao seu horto, a encher a bilha, encontrou a mimosa toda em flor e aroma.

Chegara pois a estação, doce entre todas no Egipto, Shá, a Estação dos Renovos. Já, a essa hora, na negra Etiópia, o divino Nilo estremecia, e recolhendo a boa terra negra, como um esmoler que enche os sacos, começava a sua marcha magnífica para o norte, e para os vales... E nessa noite a Lua, a que perpetuamente morre e perpetuamente renasce, surgiu sobre o Deserto, redonda e cheia como um seio, derramando a sua luz como um leite carinhoso.

Toda a noite, sentado à porta da sua caverna, Onofre embebeu os olhos na Lua, e recordava, a seu pesar, vagamente, uma cantiga da sua ama, uma escrava de raça cananeia, em que se celebrava a Lua, e a sua influência que faz fermentar os vinhos e governa o amor das mulheres.

A Lua parara sobre o mar; Onofre sentia a carícia da sua luz macia: – e todo o Deserto, com os seus rochedos e dunas, parecia voltado para ela, para se mirar no seu brilho, como num espelho suspenso.

Doces noites, então, assim passou, num imenso repouso, estirado nas lajes, e bebendo a espaços a água fresca da sua cabaça – porque a Estação dos Renovos é quente e sem orvalhos. Todo o deserto jazia em redor, alumiado, limpo inteiramente de fantasmas e monstros, numa larga inocência, e mais seguro que um templo. O Senhor, na sua misericórdia, varrera para longe, com mão forte, o tropel disforme e roncante dos fantasmas e dos monstros. A névoa, onde se formavam os terrores, fora dissipada – e a Natureza reaparecia na sua inocência real e magnífica. E tão limpo e purificado estava todo o ar, que o canto fino da fonte subia até ele, misturado ao perfume das flores das acácias.

Como era doce, assim, a solidão!

Até as rochas perdiam, naquela suavidade da Primavera, a sua rigidez – e nem eram proas de galeras naufragadas, nem montões de crânios alvejando. Na sua brancura havia agora um calor de vida: redondas, emergindo da encosta negra, lembravam a curva macia de um ombro nu, se a túnica, cor de jacinto, escorregou; altas e lisas eram como os claros muros de uma cidade bem acolhedora, onde o viajante, que atravessou desertos, encontrou a frescura das Termas, e o alegre bulício das ruas, que cheiram a sândalo e mirra...

Um cansaço doce e lânguido oprimia o Solitário; e do seu peito, que se levantava como uma onda, saía, por vezes, sem razão, um suspiro soluçado.

Na sua caverna, não encontrava, como outrora, um sono fácil e sereno: a abóbada negra, o duro chão da rocha, exalavam um calor macio, tocado de aroma, como se um frasco de essência se tivesse entornado, e em torno pendessem estofos e peles; e sobre o seu montão de papiros secos, ele torcia os braços, sufocado, num espreguiçamento que lhe fazia estalar os ossos fortes.

Saía ao eirado, para respirar, ocupar a vigília com a oração: – mas o nome mesmo do Senhor lhe morria nos lábios, distraído por sons estranhos, certos cheiros estranhos, que vinham de longe, da sombra. Era por vezes um riso esquivo, fino, de mulher, que se perdia entre as ramagens do horto; um bafo de forno, com um bom aroma de pão quente, trazido por uma aragem; um véu amarelo que se abria devagar, arrastava sobre as rochas. Debruçado da muralha, com o coração batendo fortemente, Onofre espreitava, escutava: – e por vezes toda a noite ali ficava, sem se mover, com os olhos cravados na escuridão, à espera, como se alguma coisa devesse chegar, deliciosa, e que ele ansiosamente apetecia, e de que não suspeitava nem o nome, nem a forma.

O dia, o radiante Sol, não lhe afugentavam estas imaginações. E cavando a terra, empedrando os canais de rega no seu vergel, ele parava, colhido vivamente pela lembrança do riso esquivo e lânguido, ou pelo cheiro do pão ao sair do forno. Ao chegar de manhã à fonte, lavava os braços nus, as pernas, acamava o cabelo que lhe caía revoltamente sobre a túnica de pele de cabra: esmagava sobre as mãos certas plantas que tinham um bom aroma: – e tinha gosto, considerando os seus músculos, em pensar que era forte e airoso. A chegada da noite já o não assustava – antes a apetecia, pelo seu mistério e por aquela sua vasta sombra, que é como uma cor. tina que tudo esconde. Mas como ela era solitária e vazia! Se, ao menos, tivesse, como alguns cenobitas, um companheiro moço, com quem pudesse passear, naquelas veredas do monte, passando o braço sobre o seu ombro!

Juntos cantariam os hinos santos – e murmurariam, um ao outro, para se fortalecerem, as tristezas dos seus corações. Oh! se algum desses monges, que erram de mosteiro em mosteiro, ou dos que percorrem, para se instruir, os retiros dos Solitários, ali passasse, naquelas serranias!

As palmeiras do seu horto bastariam para sustentar dois ou três irmãos – e na sua caverna havia espaço para abrigar outros sonos...

Com uma esperança, sem razão, ficava então espreitando longas horas, debruçado do seu eirado; e ante os seus olhos, cravados na penumbra, fatigados de esperar, surgiam, então, imagens estranhas: – um canto de rua, com flores pendentes de um terraço; um pátio, com uma mesa cheia de taças, de pedaços de gelo, abrigadas por um velário; uma cortina que se descerrava, deixava entrever uma mulher, derramando um perfume sobre os braços nus... Onofre estremecia, como despertando, e reentrava na caverna, atribuindo aquelas visões à debilidade, aos longos jejuns. Ah! se ele pudesse um dia comer uma carne forte, beber um longo trago de vinho – mais longas podiam ser as suas orações, e na sua doçura salutar se desfaria toda a inquietação da sua alma.

E sempre que assim pensava, logo um prato de argila, cheio de ostras de Canópia, alvejava no chão, ao lado de uma vasilha de vinho, que espumava, ou um cheiro de anho assado e fumegando, se espalhava na treva. Era uma realidade, uma ilusão? Bem podia ser um dom milagroso do Senhor! Não alimentara Ele Elias no Deserto? Não fizera Ele brotar, aos pés de Pacómio, que a sede torturava, um ramo carregado de damascos? E uma noite, que ele viu, ao lado do seu leito de folhas, um pão muito fresco e muito branco, e uma taça larga de vinho onde flutuava gelo – não duvidou da Misericórdia do Senhor, e, rindo de gozo, estendeu a mão trémula. Deu um grito: sentira o ardor de uma brasa! Era pois uma horrenda oferta do Demónio, e no Inferno se amas-sara aquele pão, no Inferno se vindimara aquele vinho! Se ele tivesse morrido nesse momento era a perdição irreparável! Agarrou o açoite – e, despindo a túnica furiosamente, açoitou a carne infectada de gula.

Mas logo os primeiros golpes, em lugar de o ferirem, lhe deram o incompreensível, estranho gosto de uma carícia. Era como se braços nus se colassem ao seu corpo nu. Arrojou de si o azorrague, num imenso terror: –e as negras tiras de couro tomaram, caídas sobre a rocha, a forma redonda e branca de braços cansados, que se estiram. Caiu de joelhos – e de joelhos, diante dele, estava uma figura, uma mulher, cujos olhos muito negros, cujos lábios muito escarlates, transpareciam através do véu que ela apertava contra o seio com os braços redondos, cheios de frescura e de aroma...

Então, longos dias, não comeu, não bebeu – e nunca foi mais dolorosa e furiosa a sua luta com o grande Inimigo. Torturado pela fome, torturado pela sede, a cada instante Onofre encontrava diante de si uma larga mesa, com uma resplandecente toalha de linho, coberta de todas as delícias da cozinha, do pomar e da adega, carnes que fumegavam com um aroma rico, legumes que, de tenros e bem cozidos, se desfaziam dentro do seu molho transparente, montes de frutas cuja polpa suculenta estalava de madura, frascos com vinho cor de ametista e cor de ouro, esfriando entre blocos de gelo que reluziam.

E a tentação era tão deliciosa e forte – que Onofre, diante, tremia todo, com uma espuma na boca ressequida, e grossas lágrimas rolando pelas barbas. Fugia: a mesa reaparecia tão rente do seu peito, que ele sentia a frescura da neve, o fumo da carne, e um aroma de pomar regado, e de flor de romãzeira, e de flor de laranjeira. Dava um brusco empurrão àquelas delícias do Inferno: – as frutas esboroavam-se sobre os seus pés, rachando de maduras, os vinhos entornados faziam regatos cheirosos na areia. Desesperado, torcia os braços, gritava pelo Senhor! «Socorro, meu Deus, socorro!» Tudo desaparecia: – mas logo sobre ele pendiam grossos ramos, carregados de laranjas, de romãs, de cachos de moscatel, de damascos dourados – e do chão rebentava uma chama clara onde um anho, gordo e branco, alourava no espeto... Onofre espedaçava os ramos, Onofre espezinhava o lume. «Socorro, meu Deus, socorro!» E ia cair, quase desmaiado, à porta da sua caverna, escondendo a face na areia quente, que bebia as suas lágrimas.

Um ano inteiro assim combateu – e todos os seus cabelos embranqueceram. Um dia, que ele recolhia exausto do seu trabalho, e se sentara numa rocha, à beira de água, encontrou de repente, no regaço, um pão pequenino, louro e tostado, quente ainda como saído do forno. Então o Solitário começou a rir serenamente. O quê? Tanto se esvaziara o Demónio que, depois de mesas mais ricamente cheias que as do Imperador, só lhe restava agora para o seduzir um pão miserável, de legionário! E com aquele riso, uma paz imensa entrou no seu coração. O Demónio, assim humilhado, abandonou o Deserto.