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Últimas Páginas (1912)/Santo Onofre/VI

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O primeiro que encontrou junto a uma aldeia que aparecia num alto, toda escura, e de adobe, foi um velho, muito alquebrado, vergado sob um feixe de lenha, e conduzindo um jumento ruço, muito velho também, já manco, que carregava um saco de grão. E, um atrás do outro, o velho em farrapos, o jumento com chagas no lombo magro, iam arquejando, e mancando, por uma calçada íngreme, sob o sol e as moscas, entre piteiras poeirentas.

Humildemente, Onofre abeirou-se do velho e lembrou que, sendo mais forte, melhor conduziria pela subida a lenha e o grão. E, sem esperar o consentimento do velho, que mal compreendera, vago e senil – tomou sobre o ombro o molho de lenha, sobre o outro o saco de grão, e atrás do seu homem, e do seu jumento, assim aliviado de todo o fardo, foi marchando contente e cantando os louvores do Senhor.

O velho era o servo de uma viúva, pobre, entrevada – que só o tinha a ele, e àquele jumento, e uma horta mal tratada de poucas ervas. Onofre nessa tarde amassou a farinha, rachou a lenha, acarretou água do poço, cavou o talhão de cebola, tirou os espinhos dos pés do servo, lavou as velhas chagas do burro, e junto do catre da viúva, que era cristã, para a consolar, contou a paixão do Senhor. E assim começou Onofre a sua obra entre os homens.

Mas bem depressa deixou a aldeia, que, rodeada de terras férteis, com poços abundantes, sob um ar muito doce, não abrigava, nos seus casebres, nem indigência, nem males. A simplicidade dessa vida não oferecia acção a um coração sedento de humildade.

A dois estádios, porém, da aldeia, havia a velha cidade de Bubastes, entre as águas Pelusíacás e o canal de Nécio, onde cada ano vinha de todo o Egipto a festiva peregrinação ao velho templo de Ftás, então dedicado a Artemis Grega.

Bubastes era rica em obeliscos e termas. As suas muralhas formidáveis estavam cobertas de estátuas. E nas longas avenidas, ao comprido das águas, sob os sicômoros e as palmeiras, todo o dia as tabernas e as casas esguias das cortesãs ressoavam dos cantos e dos folgares pagãos.

O pretor romano era aí doce aos Cristãos; – mas a heresia dilacerava a Igreja já considerável e activa, de que era bispo Alexandre, homem austero e rude, que guardara cabras na Galácia. Onofre foi habitar Bubastes. Como as suas longas barbas inspiravam respeito, e alguns fiéis o saudavam nas ruas, cortou as barbas – e trocou o seu surrão de Solitário por um saião de escravo. Ele logo, na verdade, se tornara o escravo dos pobres. Junto ao muro, ricamente ornado de esculturas, que cercava o templo e os bosques sagrados, costumavam, desde o romper da alva, juntar-se doentes e mendigos. E aí, desde alva também, depois da noite velada em orações, Onofre trabalhava no serviço dos miseráveis, arranjando leitos de folhas para os velhos, lavando os trapos à beira do canal, cobrindo de fios as chagas, catando a vérmina nos cabelos intonsos. Depois ia mendigar para os seus pobres, por toda a cidade, desde as casas mais ricas, onde os cães lhe ladravam, até às tabernas dos canais, ou às cubatas das prostitutas, de onde trazia sempre no saco algumas côdeas de pão, restos de peixe, ou uma maquia de lentilha: – e não duvidava mesmo entrar no templo de Artemis, ou, ao fim da larga avenida, no templo de Hermes, e esmolar dos deuses pagãos, pela mão dos seus sacerdotes, um pouco de óleo, para amaciar os membros doridos dos seus enfermos. Outras vezes alugava o seu pobre corpo descarnado aos mais duros serviços – e puxava à sirga os barcos nos canais, acarretava pedras para a reparação das muralhas, rachava na caserna romana a lenha da coorte: – e as moedas de cobre, que lhe atiravam à palma da mão, vinha trazê-las, correndo, a algum casebre onde conhecia crianças sem pão. De noite, com uma tocha, alumiava os tresnoitados – ou impedia que os ébrios, saindo das tabernas dos canais, rolassem à água escura. Como recompensa, recebia ultrajes. Ele replicava com bênçãos.

E nunca como então gozara uma paz tão perfeita. No deserto, os seus rudes labores de enxada e rega, para combater a esterilidade das areias e concorrer para a realização da divina promessa, não lhe davam alegria: – e a fadiga com que deles saía, era inquieta e melancólica. Na oração, que aí perenemente enviava para o Céu, a sua alma não se desafogava, nem por ela obtinha do Céu o dom da apetecida misericórdia: – e havia apenas uma alma mais turva diante de um céu mais mudo. Agora, ao contrário, o cansaço naqueles longos dias de caridade era cheio, era feliz e repassado de doçura: – e a mais curta oração, balbuciada à pressa, fazia descer das alturas sobre o seu coração, como uma longa e vaga carícia que o refrescava deliciosamente. Mas o melhor bem logrado era a libertação do Demónio. Não voltara mais, o Pai das Imposturas, nas suas formas variáveis de sedução e terror: – e a terra toda estava para ele como limpa e vazia de Satanás, como um altar lavado de fresco.

Nas ruínas de um templo muito antigo, junto das muralhas, e onde escolhera, para se abrigar, o túmulo de um faraó, sob a terra, havia, pintadas e entalhadas sobre o resto dos muros, figuras execrandas: – e era um lugar temido dos cristãos, porque de noite todas essas imagens se despegavam da pedra, reviviam, e celebravam, sob a lividez da Lua, ritos abomináveis. Mas, para ele, só houvera naquelas ruínas solidão e sossego: – e até mesmo, desde que as habitava, na estação das chuvas, tinham nascido nas fendas das pedras flores silvestres, que se alargavam, trepavam, e punham em redor dele, e das suas longas orações, um perfume casto e grave de capela em festa.

Mas, ao fim de um ano que ali vivia, aquele terreno foi escolhido pelo pretor para a edificação de uma larga cisterna; Onofre, desalojado, dormia então nos currais: – e se os servos o repeliam, ia estender-se contente entre o lixo das ruas. Tão descarnado se lhe tornara o corpo, que as crianças, brincando na rua, nos bairros pobres, lhe chamavam o Pai da Morte. Muitas vezes lhe atiravam pedras ou lama. Ele parava, sorrindo, a receber aqueles ultrajes como carícias.

Uma noite que Onofre orava, sob as árvores do canal, passou sobre a cidade, no céu, de oriente para ocidente, uma grande tocha fumarenta. As sentinelas, sobre as muralhas, soltavam sons de buzina, como num alarme: e nos terraços das casas surgiam figuras espantadas, que batiam desesperadamente na face, para conjurar o presságio.

Logo no outro dia, rompeu um incêndio no bairro remoto e miserável, onde viviam os embalsamadores de cadáveres – e em breve foi por todo o casario, até ao templo de Hermes, uma imensa labareda. Onofre correu para as chamas com a multidão que acudia, no terror de que fossem consumidos os corpos de parentes, de amigos, confiados aos embalsamadores.

Já uma fila de escravos, de cidadãos, misturados, se formara pela rua até aos canais, para o carreto da água. Onofre, repelindo o balde de couro, que soldados distribuíam, penetrou nas chamas, onde os gritos eram mais dolorosos. Em breve reapareceu logo, com fagulhas no pêlo da túnica, trazendo um velho às costas: – e remergulhou seis vezes no braseiro tumultuoso, trazendo através das traves abrasadas, dos tectos que abatiam, crianças, uma mulher aleijada, outro velho, até mesmo um anho, que lhe balava entre os braços. Todo o cabelo lhe ficara crestado das queimaduras; das pernas ficou para sempre coxeando.

Depois do seu espanto, o povo acusou do incêndio os judeus e os cristãos. Os mais pobres, que não pagavam ao templo de Artemis um tributo secreto, para evitar as perseguições, foram carregados de algemas, arremessados aos ergástulos; Onofre, que por miserável não fora perseguido, percorreu as prisões consolando os irmãos, ajoelhando através das grades: – e na manhã em que eles foram açoitados defronte dos pórticos da Basílica, ele, meio nu, em face aos flageladores, não cessou de cantar hinos, vergastando o seu corpo miserável, e ainda cheio de queimaduras, com disciplinas de ferro.

Impelidos pelo velho gramático Flaco, alguns mais furiosos assaltavam com pedras Onofre, que injuriava a majestade da Lei. E decerto ia ser lapidado e martirizado, junto a uma casa em obras, onde se refugiara – quando uma grande chuva, tempestuosa e brusca, dispersou a turba praguejadora. Foi a água do céu que lavou as feridas de Onofre.

A Assembleia dos Fiéis era junto ao Mercado do Peixe, num terceiro andar de uma casa velha, ao fundo de um terraço de onde não passavam os catecúmenos, ainda não iniciados no Mistério dos Sacramentos, ou que estavam cumprindo penitência por culpas confessadas em segredo ao bispo. Para além da porta santa, guardada pelo porteiro, encruzado no chão, com os tabulários que continham o rol dos fiéis, só havia uma sala vasta, nua, mal caiada, onde ardiam doze lâmpadas. Na sexta-feira que se seguiu à flagelação dos Irmãos, quando Onofre, como sempre descalço, com o rolo da Escritura metido no seio da túnica, aí penetrou e se colocou, humildemente, num canto – todos o saudaram, com o cântico que se deve aos mártires. Um diácono correu, murmurando: Sanctum! Sanctum! para o conduzir junto da mesa coberta de linho branco, que servia de ara: – e até o bispo Alexandre se ergueu, apoiado ao báculo, para o beijar nas duas faces. Onofre permanecia mudo, assustado com a veneração e os louvores. E apenas, findas as preces, os Irmãos trocaram o ósculo ritual, ele correu, cosido com os muros, como um culpado, até ao templo de Artemis, para junto dos seus mendigos e dos seus estropiados – e deliciosamente reentrou na sua humildade.

Mas a fama da caridade de Onofre era já grande entre os Irmãos: – e uma diácona, senhora de muitas terras e de muitos gados, a quem a velhice, a doença, impedia os exercícios santos, chamou Onofre a sua casa, e apontando para um cofre de cedro, disse: «Aqueles bens eram para os pobres, e para os pobres tos entrego... Leva, tira, até que eu depressa fique pobre também». Onofre, com a voracidade de um avaro, mergulhou as mãos no cofre – e abalou, rindo, deslumbrado, com as pregas do saião pesadas de ouro.

Foi então, por Bubastes, o grande bodo dos miseráveis. Logo à alvorada estava no Mercado, atulhando de provisões, de legumes uma carriola, a que ele se atrelava como um animal, e que arrastava pelos bairros mais pobres, deixando em cada morada o bendito pão de cada dia. Às viúvas dava dinheiro, beijando-lhes a orla da túnica. Vestia todas as crianças. E comprara mesmo um campo, onde andava erguendo um barracão para abrigar todas as velhices e todas as enfermidades.

Não cuidava só dos corpos, mas também das almas – a ponto de empregar três copistas, pobres e que inclinavam para a fé, em preparar cópias das Santas Escrituras, que ele distribuía aos mesteirais à hora da sesta, aos que descansavam sob os plátanos no pátio das Termas, e mesmo aos viandantes que chegavam, com fardos, pela porta Pelúsica. Àqueles a quem saciava a fome, contava sempre, docemente, do Reino de Deus, onde todas as fomes são saciadas: – e aos que nessa cidade de César eram, por condição, os mais ínfimos, afiançava no céu, naquele céu azul e tão sereno que os cobria, uma outra cidade, verdadeira e eterna, a cidade de Deus, onde eles seriam os supremos, e teriam mais alegria que nunca tiveram ricos senadores, abundantes em escravos e terras.

Mas aos gentílicos, oferecia a Verdade, de leve, e sem intransigência – porque o homem, por mais sedento, repele com cólera a água que mãos brutais e autoritárias lhe queiram introduzir por entre os lábios ressequidos. Não injuriava os deuses, nem os ritos. E o seu ensino era todo para o coração, contando a Vida do Senhor, e a sua humildade, e as suas visitas aos casais e aos lugares, e a sua morte, tão triste como a de um pobre escravo. Jesus só queria que os homens se amassem uns aos outros! Para ele tanto vale um oleiro como um procônsul, e no seu Reino não haverá nem escravos, nem tormentos. Para que ele se alegrasse, o rico devia partilhar com o pobre. Que era a vida, aqui, senão uma caminhada breve e trabalhosa que vai de rua a rua? Mas a vida além, no Céu, ao seu lado, era a verdadeira, e nela os que trabalharam repousarão, os que padeceram folgarão, e os que obedeceram mandarão. E se fordes bons – dizia – vós que de alvorada à noite trabalhais, tereis glória, e sereis imortais, e bebereis o vinho do Senhor: – e talvez o mesmo não suceda a César!

Assim ele ensinava nas ruas pobres, à hora em que os escravos despegam do trabalho, sentado a uma porta amiga, com crianças sobre os joelhos. E quando Onofre, beijando os homens na face, ou na mão, humildemente, tomava o seu cajado e se afastava – sempre algum dos que escutavam, obreiro, escravo, ou mesmo homem livre e senhor de bens, o seguia, e lhe ia puxar, a uma esquina, pela ponta da túnica rota, e muito baixo perguntava: «Onofre, como se faz para pertencer a esse Deus, que é tão bom?» Mesmo um dia, Simeão, um avarento, correra atrás dele, apertando uma bolsa, e balbuciara, com a inquietação de uma alma tentada fortemente: «Onofre, quanto se paga, para se ser acolhido por esse teu Deus?» Onofre rira, com um sincero e grande riso. Mas Simeão, desde então, deu largas esmolas.

Esta santa popularidade, que o trazia por vezes seguido de gente, pelas ruas – suscitou, todavia, desconfiança entre os diáconos, zelosos da autoridade espiritual. E os judeus mais velhos da Assembleia viam com cólera que ele distribuíra as esmolas de Petronila fora dos bairros dos judeus, e mesmo entre obreiros pagãos. Então, na Assembleia, surdiram murmúrios – e Onofre foi acusado de receber esmolas das cortesãs, de aceitar óleos medicinais dos arúspices, de frequentar os pagãos e mesmo de tender para as doutrinas de Marcos, o Herético.

O bispo Alexandre chamou o velho à casa pobre em que vivia, e onde fabricava esteiras para viver do seu trabalho, e asperamente censurou a sua humanidade indiscreta. Onofre beijou, chorando, a orla da túnica de Alexandre; – e desde esse dia, não transpôs mais a porta da Assembleia, ficando fora, no terraço, entre os penitentes, com a cabeça sobre as lajes, que ele regava de lágrimas, como na expiação de um sombrio pecado. Por esse tempo, a velha Petronila morreu, e os seus herdeiros, avidamente, invadiram a casa, com escribas do Pretório, que selavam as arcas, arrolavam os bens. Secara a larga fonte de caridade, que através dele refrescara tanta miséria! E os seus Irmãos em Jesus não o amavam! Onofre tinha então setenta anos.

Começou então pela cidade a mendigar para os seus pobres. Pensou mesmo em se vender como escravo – e ser apregoado, no bazar, com a cabeça rapada, um rótulo no peito, e os pés pintados de branco. Mas que valia aquele seu pobre corpo, descarnado e vergado, com as mãos todas trémulas? Cinquenta dracmas? E amarrado a uma servidão, não poderia velar pelos velhos, pelos enfermos, que dependiam da sua caridade. Ele conhecia agora todas as misérias da cidade – e o seu amor crescia cada instante por aqueles miseráveis, que já não podia socorrer, e de quem, um por um, sabia as fomes, as chagas, as dores e a solidão. De noite, aflito, nos terrenos vagos, nas ruínas, para onde ia orar, erguia os braços para o Céu mudo, gritava: «Socorro, meu Senhor, socorro!»

Mas como o socorro não descia do Céu, cada manhã ele recomeçava desesperadamente, pela cidade, as suas súplicas lamentáveis, com uma velha panela atada ao pescoço por duas cordas, as mãos sempre estendidas. Assim estacionava nas praças, ou onde os canais se cruzavam, gritando: «Pão para os pobres! Pão para os pobres!»

Era então a estação das grandes chuvas: –e aquele velho, imóvel sob as grossas cordas de água, com os cabelos brancos empastados nas covas da face, e puxando a pobre túnica colada aos ossos que lhe tremiam, causava piedade: as esmolas caíam ressoando na panela de barro. Por isso Onofre temia os céus alegres e o ar doce, que aligeirando as almas, as desviam da compaixão...

Por vezes, passavam longos dias sem que tivesse alcançado esmola, ou um trabalho, por mais vil, que lhe desse um salário. E então ia pelos caminhos, chorando no silêncio da noite. Chorava pelas fomes que não podia fartar, por todos os males que não podia sarar. A sua miséria própria, a sua nudez, a sua fome, eram as únicas consolações – porque ao menos o tornavam igual, pela miséria, àqueles que amava. Esse amor infinito e insondável, era tudo o que podia dar aos pobres, seus irmãos. Mas ele saía do seu coração tão intenso e ardente, que Onofre, por vezes, pensava que poderia, mesmo de longe, e invisível, consolar e dar esperanças, como o Sol, centro de calor, aquece e faz reviver. Quantas vezes ele alargava os braços na solidão, com um desejo desesperado de poder apertar neles, contra o seu seio, todos os que sofrem – e com eles morrer, deixar este mundo impiedoso. Atormentava então o Céu com orações ansiosas. Com os olhos postos nas alturas, a mão estendida como se visse Deus de perto, e lhe falasse, revelava, lembrava a Deus, como a um pai distraído, certas misérias em certas moradas: – e murmurava: «Meu Senhor, Senhor do meu coração, há na Rua das Lojas uma pobre viúva com três filhinhos, sem amparo, sem pão; volta para lá os teus olhos piedosos!» E esperava com os braços estendidos a esmola de Deus – até que os braços lhe caíam cansados, e cansadas lhe caíam as lágrimas.