Últimas Páginas (1912)/Santo Onofre/VII

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Ora uma tarde, ao anoitecer, depois d’um dia estéril em que nada recolhera para os pobres, nem achara trabalho, por mais vil, que lhe desse salário, errando assim junto das muralhas, perdido nestas dôres, e a chamar por Deus — ouviu de repente, ao fundo d’uma viela, um pranto dolorido e agudo, como é o dos funerais. Correu, n’uma grande compaixão. A’ porta d’um casebre d’adobe, onde ainda ardia o lume pobre da ceia, estava estirado um homem, com a face escondida n'um panno, e os dous braços nús e moles, cobertos de sangue negro. De joelhos, deante d’elle, uma mulher, esguedelhada, gritava, com longos ais maguados e lentos. Tres creancinhas juntas abriam grandes olhos aterrados. Outras mulheres, dos casebres visinhos, apinhadas em roda, batiam na face, soltando também longos ais! E os camaradas, que o tinham trazido, contavam ainda a um soldado barbudo e louro, da Legião Germanica, que acordára aos gritos — como uma grande pedra, caindo dum guindaste, nas obras das muralhas, esmigalhara os dous braços ao miserável, e o abatera como morto.

Onofre, através das lágrimas que o turvavam, recordava aquele casebre pintado às listas pretas, aquelas crianças quase fluas, de grandes olhos famintos. Já ali decerto trouxera consolação e pão... E ajoelhando, arredou devagar os panos da face do homem, que jazia inanimado. Então reconheceu um pobre chamado Ozias, escravo de um homem cruel, um empreiteiro de obras. Oh pobre Ozias! Desde longos meses tinha aquela mulher, doente e definhando, e mal podia, com o salário da servidão, ter pão bastante para os seus três filhinhos, arrolados já como escravos. Quem o ganharia agora, aos três desgraçadinhos, o pão incerto? Oh dor! oh dor! E então, nesse instante, o pobre homem abriu lentamente os olhos, de onde duas lágrimas correram, pesadas, e lentamente murmurou num sopro débil, de infinda dor:

– Ai! os meus filhos.., os meus pobres filhinhos!

Então Onofre, desesperadamente, todo a tremer, atirou para o Céu:

– Oh Deus misericordioso! Oh Jesus, meu Senhor! pelas tuas chagas, e por todas as minhas orações, dá-me a vida deste homem!

Os seus joelhos bateram o chão. E tremendo, tremendo todo, com os ralos cabelos eriçados de terror divino, Onofre arrebatou contra si o corpo inanimado, ergueu-o, e recuou!

Um brado ressoou de pavor e prodígio. O homem estava de pé, com um sangue novo na face, retesando fortemente os braços brancos, reverdecidos – e sãos! Milagre! milagre! Todas as mulheres se arremessaram para dentro do casebre, gritando, numa ânsia de palpar, sentir a pele refeita e quente daqueles braços de milagre. O soldado barbudo da Legião Germânica fugira, espavorido.

E Ozias, como tonto, com lágrimas que lhe corriam sobre o riso da face, abandonava os braços, repelia as mulheres, experimentava a força recuperada agarrando os filhos, considerava com espanto os músculos refeitos, balbuciava e gritava:

– Estou são! Estou são!

Com o grande rumor, já vizinhos abriam os loquetes das portas, erguiam ao alto lâmpadas de barro. E o clamor erguido pelos dois camaradas de Ozias, engrossava, rolava:

– Milagre! Prodígio! Foi Onofre! Vinde ver!...

Mas Onofre desaparecera! Como levado por um vento largo, sem sentir os passos trôpegos, atravessara a Praça dos Obeliscos, transpusera a muralha derrocada, e caminhava junto ao rio, sob o silêncio das estrelas.

E ia num deslumbramento! Por vezes estacava, alargava os braços, murmurava: «Fiz um milagre! Fiz um milagre!» Onofre, o mais humilde e rude servo do Senhor na Igreja de Bubastes, fizera um milagre! E não desses tão fáceis, e nascidos da ilusão, como os sabem fazer os discípulos de Simão, o Mágico! Mas um milagre profundo, que tornara a Morte em Vida, como só os tinham feito os homens apostólicos, depois do Senhor. Por quê? Por que lhe era concedido um tão divino poder?

Decerto ele fora abundante em obras! Longos anos gemera no Deserto, longos anos servira com humildade os homens. Mas Alexandre vivera no ermo, confessara a fé nos tormentos, ganhara almas inumeráveis para o Senhor, era Bispo e era Santo – e todavia nunca fizera um milagre! E Palemo, abade de Tebane, e Panúcio, abade de Antínoo, que governavam comunidades na Tebaida, e recebiam de noite, de Jesus, a suma da Regra Monástica, não faziam milagres! Porque o escolhera o Senhor a ele – escravo que mendigava entre os escravos? Sem dúvida porque a sua vida, as suas longas penitências, a sua oração, tinham, mais que as de nenhum outro, em cidade ou ermo, satisfeito o Senhor! Ele, pois, realizara a obra sublime de contentar Deus – e tão bem limpara a sua vontade de toda a culpa, e tão transparente e brilhante de pureza a tornara, que Deus, desde já, lhe confiava, na Terra, um poder transcendente... Mas então – era um Santo! Presa ainda com a cinta vil da carne, a sua alma já recebera do Senhor a sua santificação. Brevemente libertado da carne, e da sua miséria, ascenderia fácil e naturalmente àquele céu, salpicado de estrelas. Entre esses divinos lumes habitaria, enterrando os pés nus no azul macio, vendo a face do Senhor sorrir, no resplendor inefável. Da terra subiriam para ele, Onofre, longos rolos de orações: – e os restos da sua argila mortal, os seus ossos, receberiam também a veneração dos homens, guardados em sacrários – entre lâmpadas e flores. Oh maravilha!

Mas aquele poder do Milagre seria perdurável, constante, enquanto vivesse Poderia ele agora, com segurança, curar todas as feridas, e sanar todas as misérias?

E uma inquietação apertava o coração de Onofre. Se aquele milagre tivesse sido isolado e único! Se amanhã, ante uma verdadeira e profunda dor, semelhante à de Maria, irmã de Lázaro, ele se encontrasse de novo impotente para a desfazer, como antes da sua penitência no Deserto? Fora ele, pela sua vontade, que curara os braços esmagados de Ozias – ou fora a vontade de Deus que operara, passando apenas através da sua alma, como o sol através de um vidro? Se experimentasse?... Se experimentasse ali mesmo, sob o testemunho das estrelas? Além, o rio alagara hortas humildes, empobrecera colonos. Se ele marchasse para o rio, lhe gritasse: «Volta ao teu leito, abandona esses campos que assolas!?»

E já caminhava para a água, espalhada em largas poças, que reluziam, como discos de aço. Mais longe, a inundação invadira casais – de que se viam os colmos, ou os terraços de adobe, quase esboroados, e as pontas dos tamarindos, que outrora delimitavam os campos. Um grande sulco de Lua tremia na água imóvel: – e havia uma longa mudez de abandono e ruína.

Onofre olhou em silêncio, apoiado ao seu bordão. Longe, uma fila branca de cegonhas dormia, rente da água, coberta de nenúfares. Se, à sua intimação, aquelas águas recolhessem ao seu leito, deixando enxutos os casais, e mais adubadas as leiras – certo estava então estabelecido o seu poder sobre as coisas. E na ansiedade de uma certeza, ergueu devagar o braço, bradou, arrepiado de emoção e temor:

– Rio, recolhe ao teu leito!

A água toda tremeu. As poças que rebrilhavam, bruscamente se sumiram, deixando um limo grosso e rico: – e além os casebres, os tamarindos, os papiros, emergiam lentamente da água, pingando, e reluzindo à Lua. O rio obedecera a Onofre – e um frémito corria sobre a terra e o ar, como o de um terror submisso ante uma presença divina.

Então uma alegria sobre-humana trasbordou no coração de Onofre! Era dele, era dele, e permanente, o Dom do Milagre! Oh! quanto bem faria aos homens! E, no seu deslumbramento, corria através dos campos, com os braços abertos, como para acolher, estreitar, o Universo sofredor. Onde havia aí agora chaga que ele não sarasse? Onde havia mãe debulhada em lágrimas, sobre um esquife, a quem ele não restituísse o filho? Escravo que ele não remisse? Terra estéril de onde não fizesse brotar a lentilha e o vinho? – «Oh meus irmãos, meus irmãos, não receeis mais, Onofre pode, e está convosco!»

Ah! como Deus o amava! Mas também que obras! Cinquenta anos ele padecera pelos homens. Por cada dia de fome que ele arrostara no Deserto, o Senhor dava-lhe agora o poder de saciar a fome de um lar. E porque ele se abaixara a tanta humildade, ascendia agora a tanto poder! Um poder insondável e magnífico, que descia até aos remos escuros da Morte! César não tinha mais poder. Com os seus prefeitos, os seus lictores, e legiões mais bastas que as aves do ar, e máquinas de guerra rolando através da terra, César seria impotente para deter uma gota de água, caindo de uma nuvem. E ele, Onofre, escravo de escravos, só com estender o braço, recuava as correntes do Nilo, o grande rio que desce do Paraíso... Se ele era mais poderoso que César – deveria, pela manifestação desse poder transcendente, forçar César a reconhecer a Verdade!

Nem Paulo, nem Marcos, nem Barnabé, tinham suficientemente deslumbrado os gentílicos! Intimações, orações nos Forum, epístolas arguciosas – que importavam? Os pagãos tinham uru saber sólido, e retóricos mais facundos. Só pelo Milagre se poderia triunfalmente provar Jesus! Pois bem: ele, Onofre, iria a Roma! Se as ondas cruéis assaltassem a proa da sua galera, amansaria as ondas: – e espalharia os prodígios, ao comprido da estrada que o levasse à cidade! Nos átrios de César, ante aquela face que assusta e enche de sombra o mundo, ele diria com simplicidade: «Adora o Senhor!» E quebraria, como galhos secos, as espadas que se erguessem contra o seu peito! Com um sopro derrubaria os ídolos do bronze mais eterno! E se contra ele se erguessem, no Pretório, filósofos ou gramáticos – ele imediatamente lhes secaria as línguas impuras nas bocas impuras, ou os faria ladrar como cães contra a Lua. Roma tremeria toda sob os seus prodígios, como uma cabana ao vento. E quando César, vencido, rojando a púrpura no pó do seu átrio, lhe perguntasse: «Que queres?» – ele diria então com simplicidade: «O mundo, para o restituir a Deus!» E a Deus daria, com efeito, as cidades, os homens. Por que não? Em verdade, ele seria César!

E com a face erguida, no seu imenso sonho de orgulho, Onofre riu largamente. Era César!

Então, larga e áspera, uma outra risada soou por trás dele na solidão. Num terror, Onofre olhou em redor, ansiosamente. «Quem ri?» exclamou. Aqui, além, através do ar tão sereno e repassado de luz, a risada áspera e lenta, saltava, estalava. E já os joelhos de Onofre, tremendo, desciam para a terra – quando longos dedos moles o repuxaram, e uma voz acudiu, mais dura e seca que o rolar de calhaus:

– Oh Onofre! Oh César que tudo podes! Olha o rio! Olha o rio! Do alto do teu orgulho, oh meu irmão, olha o rio!...

Diante de Onofre, até às colinas, até aos muros derrocados de Bubastes, o Nilo subira, mais largo, mais devastador. A Lua brilhava sobre as águas. As cegonhas fugiam, no silêncio. E uma onda fria, que marulhava encrespada, batia já aos pés do velho. Tentou recuar, mas todo se sentiu enlaçado naqueles dedos moles, que se alongavam, se enroscavam, como serpentes frias em ramos de árvore. Então compreendeu: – o seu milagre fora uma ilusão do Demónio! Um longo grito rompeu da sua alma: «Jesus!» E caiu por terra, coberto de um suor tão frio, que ele pensou ser a água que o devorava.

Quando se ergueu – com tantas, tão densas lágrimas, que mal podia, através da sua névoa, achar o bordão a que se arrimava – foi para considerar o pecado insondável em que se despenhara. Como outrora, na sua cova do Ermo, caíra pelo Orgulho! Na sua alma tão bem defendida, o orgulho abrira à traição uma fenda – e por ela entrara todo o Inferno. Oh miséria incomparável! Tão longos e ardentes anos trabalhara para limpar a sua alma, que a julgava toda transparente, e branca, e rebrilhante, como uma água muito pura num cristal muito polido. Não suspeitava, que, escondido no fundo, ainda restava um pouco de lodo primitivo – e eis que o Demónio a invade, e nela se debate furiosamente, e agita o lodo fundamental, e a torna tão turva e fétida como um charco espezinhado e fossado por um bando de porcos. Oh miséria, oh dor! Como ele toda essa noite, sob o testemunho dos lumes divinos, ofendera audazmente o Senhor! E de que modos afrontosos e diversos ele o ofendera – tomando como uma força da sua virtude o que era apenas uma graça caída da misericórdia de Deus! Longe de se regozijar com o pobre pedreiro, e com ele ficar, em humildade, louvando o Senhor – correra para longe, a saciar-se voluptuosamente, na solidão, de sonhos ardentes de soberba e glória. E em vez de aproveitar aquele prodígio, tão doce e tão humano, para o derramamento da Verdade entre os gentílicos, só sofregamente o considerara como proveito da sua ambição transcendente. Oh quanto ofendera o Senhor! Num momento estragara uma longa vida de penitência – e todo se tornara de novo, da cabeça à sola dos pés, uma crosta fétida de pecado. Onde havia na terra monstro bastante imundo, para ser congénere do seu corpo, e da alma imunda que dentro dele apodrecia? E agora, tão velho, como poderia ainda, através da penitência, alcançar a purificação! A morte já se avizinhava, e a alma que tinha para restituir a Deus, estava coberta toda da lepra do mal. E sem tempo para a limpar, pela oração e pela humildade – era o Inferno, o Inferno iniludível! Oh miséria!

Seguro com aquela infinita paz, em que deliciosamente se movia, como no inefável ar do Paraíso – ele esquecera o Demónio. Mas, pacientemente, o Inimigo do homem rondava em torno dele, subtil e mudo, como um vento de pestilência. E ele respirava tão profundamente esse vento pestilento, que cada um dos seus pensamentos fora então como uma chaga que supura. Com os pés enterrados na lama, ele considerava o Céu como já seu, ousando pensar que era um Santo! E entre aquelas estrelas marcara o seu lugar de beatitude! Horrendamente desvanecido, calculava, como um conquistador que conta as suas coroas triunfais, as lâmpadas e as flores, e as oferendas, que cercariam o altar onde pousassem os seus ossos! E, certo da divinização, ante-gostara as orações, que por ele se elevariam da terra! E como se lhe não bastasse no Céu a beatitude, apetecera desde já, na Terra, o Império. Sonhara com Roma – e queria César, vencido e humilde, oferecendo-lhe o mundo como um fruto maduro. Sete vezes insensato! Que, enquanto assim medrava horrendamente em soberba, e se divinizava em Terra e Céu, o Demónio estava em torno dele, e dentro dele, ocupando, saturando cada recanto do seu ser, como a água faz a uma esponja.

Que lhe restava? Só a penitência – só a penitência, feita na solidão, longe, muito longe de todas as suspeitas dos homens, para que nunca ela pudesse ser estragada pelos louvores humanos. Longe, muito longe dos homens – porque toda a virtude que entre eles se manifesta, logo que lhes arranca uma admiração, é mais cheia de perigos que um aroma muito sensual, ou um canto muito amoroso. A mais humilde esmola, a chaga de um mendigo que se lava, uma simples consolação, desde que se mencionem, são perigos terríveis para a alma, porque a persuadem da sua caridade e excelência. Pelo bem que semeamos nos outros, só colhemos dentro em nós orgulho – e cada obra da nossa caridade desmancha a obra da nossa humildade.

Só lhe restava procurar uma cova bem funda – e, aí, tão profundamente humilhar a sua alma, que ela, só pelos olhos de Deus, pudesse ser diferençada do lodo ou das imundícies.