40 anos no interior do Brasil/Robert Helling, um fascinante personagem
Robert Helling foi um imigrante alemão que viveu por cerca de quarenta anos na região sul do Brasil. Tendo chegado ao país no final do século XIX, trabalhou principalmente em funções relacionadas à construção e operação de Estradas de Ferro nos estados de Santa Catarina e Paraná. Helling deixou suas memórias registradas na presente obra, "40 Jahre im Innern von Brasilien; Erlebnisse eines Eisenbahningenieurs, von Robert Helling".
Por muitos anos a historiografia nacional permaneceu alheia a este importante texto, em parte pela dificuldade de leitura em língua alemã, em parte pela dificuldade de localização da obra, rara em terras brasileiras. Em 2002, o autor Edilberto Trevisan realizou a publicação de três de seus capítulos na obra "Visitantes estrangeiros no Paraná".[3] Contudo, a íntegra da obra permanecia inédita até este momento. Sua importância como documento histórico, memorialístico e sociológico justifica sua tradução completa.
Parte da tradução foi realizada durante o segundo semestre de 2005 por uma equipe de alunos do curso de alemão do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Outras partes foram posteriormente sendo traduzidas, sempre sob a supervisão da professora Dra. Erica Foerthmann Schultz. A equipe de tradução foi composta por Filipe Neckel, Jonas Stocker, Lara Frischenbruder Kengeriski e Thiago Benitez.
A leitura da obra revela o autor, Robert Helling, como um personagem fascinante. Dono de personalidade enérgica e de posições firmes, imprime seu estilo peculiar às preciosas narrativas com que presenteia seus leitores. Algumas observações sobre o processo de tradução são importantes.
Era a costa do Brasil. De toda a América do Sul, os alemães só tem noção de dois países: a Argentina com seu trigo e suas ovelhas e o Brasil com o café e os diamantes. Todos pensam: onde há tanta riqueza, um pouco vai sobrar para mim e meus filhos podermos viver. E sem precisar pagar impostos, sem necessidade de carvão, livre da eterna tutela das autoridades alemãs, como deve ser bom viver por lá, além disso, a enorme fertilidade do solo virgem![4]
Discorrer sobre a tradução de um livro de memórias para um público mais amplo não é tarefa fácil, uma vez que resulta em selecionar aspectos do processo tradutório que possam ser de interesse dos leitores. A escolha de uma citação traduzida do livro foi proposital, por entender-se que a tradução não é uma produção secundária, um mal necessário decorrente do fato que dificilmente podemos conhecer as milhares de línguas existentes no mundo. Um livro traduzido não é mera cópia de um original mais valioso, mas assume uma identidade própria em que convergem a voz do autor, o ponto de vista dos leitores da língua de partida na época em que foi escrito e na atualidade, o viés inevitável do tradutor e sua voz, bem como o ponto de vista dos leitores na língua de chegada; no caso em questão, dos leitores brasileiros do século XXI. A citação acima ilustra os diversos olhares sobre um texto escrito por um alemão rememorando o então já distante ano de 1887, a visão idealizada dos imigrantes alemães sobre um país desconhecido e o olhar crítico que nós brasileiros lançamos a semelhantes descrições.
As memórias de Helling não têm um caráter épico, não enaltecem heróis que desbravaram uma terra incógnita. São antes uma fonte de entretenimento, com elementos de livros de aventuras que fazem lembrar obras de literatura infanto-juvenil. Pode-se observar a ironia com que Helling descreve nossas paragens e tipos humanos da época. Há facetas que podem escapar ao leitor brasileiro e são de difícil transmissão em um texto traduzido. Citemos como exemplo a frase constante na página 16 da obra alemã: "Era no belo mês de maio, mas este mês de encantos é, no planalto do sul do Brasil, um frio dos diabos." Der wunderschöne Monat Mai, mês da primavera no continente europeu, é referência frequente na poesia do Romantismo alemão e a alusão a um poema de Heine é habilmente rompida com seu complemento verdammt kalt (um frio dos diabos). Referências literárias são comuns no texto e sua remissão nem sempre é acessível ao leitor de língua portuguesa, menos familiarizado com a literatura alemã: "Eu involuntariamente precisei me lembrar do poema sobre o 'Mergulhador' de Schiller quando vi estes valentes cavaleiros e escudeiros parados em volta sem coragem de entrar no abismo." [5] Resta aos tradutores o recurso à nota explicativa no rodapé.
Em certos trechos, Helling busca reproduzir variações linguísticas da língua alemã, ou seja, os chamados "dialetos". No primeiro capítulo, são observados momentos de tentativa de transcrição da fala berlinense e da fala da região de Holstein, no norte da Alemanha. Em dialeto berlinense encontramos:
1.Dreckwasser und hinten een bisschen Jejend - p.11
2.Na, Helling, biste de ooch hier? - p. 11
Na fala dos marinheiros, provavelmente em Plattdeutsch ou baixo-alemão, observa-se:
3.Dunnerkiel, gif's em, Georg, ran an den Kirl - p. 9
4.I bin doch a nit ersuffe! - p. 12
5.Der Kaptän bin i, und wenn I ko Woassa hob, kunn I ooch nit fahre; mir hobn doch Ebbe, schaut doch mal ins Woassa! - p. 12
Em dialeto de Holstein, também do norte da Alemanha, registra-se a frase:
6.Gotts Dunner, gift dat veel Mücken! - p. 12.
Aos tradutores coube a tradução em português padrão sem marca dialetal, ou, como já constava no texto de partida, com referência à maneira de falar de um personagem "meu nome foi chamado no mais perfeito dialeto de Berlim (grifo nosso).
- "Água suja e atrás um pouco de terra"
- "Ah, Helling, você também está aqui?"
- "Magricela, vai pra cima dele, Georg!"
- "Eu também nunca me afoguei!"
- "O capitão sou eu e sem água eu não posso seguir; nós temos maré baixa, olhem para a água!"
- "Meu Deus, quanto mosquito!"
Existe na obra um grande número de vocábulos em língua portuguesa grafados erroneamente. Os tradutores optaram por preservar os erros de ortografia de português existentes no texto, para manter o caráter de estranheza e transcreveram as palavras erradas em itálico. Assim, a saudação "Bom dia" é constantemente grafada "Bon dia", fala-se de um "Rio dos Mortes", dos rios Timó e Pixe (p. 30), passa-se a noite em campamentos (p.32), caçam-se peredizes e cadornas (p.10).
O processo tradutório, pois, movimenta-se entre mundos distintos e busca aproximá-los, com o cuidado de não sobrecarregar os receptores com excesso de informação ou de sonegar dados importantes. Há um relato de autor, com todas as imperfeições contidas na sua memória; há leitores alemães da primeira metade do século XX aos quais se destinava o texto e leitores alemães do século XXI, que provavelmente lançam um olhar mais crítico ao etnocentrismo de Helling. Há os tradutores para a língua portuguesa, com sua visão de brasileiros que recebem, não sem espanto, a descrição de um Brasil distinto do de hoje, com referência a locais, objetos, hábitos e costumes que não conhecem mais. Responder a semelhante desafio foi a tarefa imposta aos tradutores-aprendizes de Robert Helling.
Embora o personagem Helling se mostre muito interessante, sabemos relativamente pouco sobre sua vida pessoal e familiar. Apesar de seus relatos possuírem aspectos memorialísticos, mesmo após a leitura persistem curiosidades sobre o imigrante alemão. Segue abaixo um breve quadro do que nos foi possível levantar sobre sua existência, a partir de seu livro e de outras fontes documentais localizadas.
Robert Helling emigrou para o Brasil em 1887, juntamente com seu irmão Georg. Cada qual trazia consigo mil marcos em ouro para eventuais compras de terra. O Vapor "Campinas", comandado pelo Capitão A. Birch, saíra do porto de Hamburgo em 19/04/1887, tendo atracado em São Francisco em 16/05/1887. Na listagem de passageiros verificamos que Robert contava então com 24 anos, tendo, portanto, nascido em 1863.[6] Seu irmão tinha 22 anos. Ambos viajaram de 3ª classe, tendo Robert se declarado operário de Berlim e Georg, lavrador. Ambos eram solteiros, protestantes e rumavam para São Bento.[7] A origem berlinense de Robert confirma-se em sua narrativa, quando comenta encontro com seu amigo Karl (com quem havia frequentado a escola) em que este o aborda "no mais perfeito dialeto de Berlim".
Voluntariosos, aventureiros, corajosos, os irmãos Helling apresentam-se como desbravadores curiosos e, por vezes, atônitos frente a uma natureza tão distinta da europeia e frente a costumes tão diversos de si próprios. As memórias de Robert trazem poucos dados sobre sua vida pregressa na Alemanha. Sabe-se, porém, que os irmãos Helling serviram por um ano no Exército, Batalhão de Engenharia, experiência que certamente facultou a Robert melhores condições de trabalho na construção e operação de ferrovias, atividades que viria a desenvolver intensamente e que iriam marcar profundamente sua vivência em nosso país.
A primeira parte da narrativa de Helling, intitulada "Rumo ao Brasil", descreve a viagem ao Brasil de forma crítica, irônica e divertida. Viagem longa, tediosa e cansativa, chama a atenção dos imigrantes pelo calor, vegetação e insetos, sobretudo mosquitos, que os atacam no trecho entre o porto de São Francisco e o de Joinville. Ali chegando, foram localizados no alojamento de imigrantes. No dia seguinte, partiram em uma carroça rumo a São Bento, interessados em aprender a língua local e o ofício agrícola. Após uma experiência malograda como carpinteiros, os irmãos adquiriram terra, a fim de trabalhar como lavradores. Esta atividade também não foi bem sucedida:
[...] compramos um pedaço de terra de um quilômetro quadrado fora da área da colônia por um preço horrendo naquele tempo de 1000 marcos, e sobre a qual tentamos transplantar os nossos métodos agrícolas europeus, até compreendermos, que em um país ainda não inteiramente civilizado, o melhor seria fazer como os nativos.[8]
Esta passagem encerra o primeiro e mais extenso capitulo da obra de Helling. A partir daí, as memórias se tornam mais esparsas e temáticas. Seu irmão desaparece da narrativa, que passa a concentrar-se nas experiências de Robert ou em relatos de terceiros. Percebe-se, sobretudo, a intenção de relatar episódios curiosos ou atípicos, sob uma ótica europeia. Assim, os próximos quinze capítulos tratam de temáticas como os conflitos entre os imigrantes e os indígenas nas colônias; a construção ou serviços oferecidos pelas ferrovias, sob o foco de análise de seus personagens (maquinistas, trabalhadores ou empreiteiros); episódios curiosos de sua construção ou operação; as características geográficas, climáticas ou naturais da região Sul do Brasil; hábitos ou costumes dos moradores locais; além de eventos históricos, como a Revolta Federalista e o Movimento do Contestado. Sobre esse último episódio, objeto de três capítulos da obra, destaca-se que Robert Helling esteve próximo quando dos ataques rebeldes às estações de São João e Calmon e à serraria da Lumber (setembro de 1914).
A partir do segundo capítulo, a narrativa de Helling afasta-se decididamente de uma incursão meramente autobiográfica. Ao tratar de episódios curiosos ou considerados interessantes, ele nem sempre os localiza temporalmente e não esclarece aspectos importantes de sua biografia, tais como o nome da ferrovia em trabalhou durante a maior parte de sua estadia no Brasil, que sabemos ser a Estrada de Ferro São Paulo — Rio Grande (EFSPRG). Sequer alcançamos detalhes sobre sua família ou filhos. Sobre este aspecto, fica a informação trazida pela dedicatória de sua obra: "Dedicado a minha querida cunhada Emma Helling, nascida Malchow." Alguns dos episódios ou processos narrados não foram vivenciados por Helling, mas são claramente narrativas de outros indivíduos das quais se apropria em seu desejo de apresentar aspectos interessantes de sua estadia no Brasil. Além dos acontecimentos vivenciados pessoalmente, o autor incorpora eventos vividos “por tabela”, ou seja, aqueles vividos pelo grupo ou coletividade que acredita pertencer.[9]
Ainda em 1887, encontramos Robert Helling, supostamente sem a companhia de seu irmão, pois não o menciona, em algum local não identificado do estado do Paraná ou Santa Catarina, realizando a tarefa de uma "grande medição" e tendo sob sua direção os filhos de vários colonos alemães. Fica a dúvida sobre o caráter da atividade: seria um trabalho de medição relacionado a alguma ferrovia ou uma medição de terrenos para a agricultura? Em qualquer caso, percebe-se Helling desempenhando tarefas de comando e de direção, que parecem afins com a personalidade que desenha através das páginas de sua obra. Embora não tenhamos detalhes de suas experiências pessoais e profissionais nos anos que se seguem a 1887, sabemos, através de suas memórias, que Helling trabalhou como mestre de obras na construção da ferrovia que ia de Serrinha a Restinga Seca. Este ramal da Estrada de Ferro Paranaguá — Curitiba (Paraná) foi inaugurado em novembro de 1892. É possível, portanto, que Helling tenha iniciado os trabalhos em tarefas de ferrovias por volta de 1890 ou mesmo antes.
Uma curiosidade sobre Helling refere-se ao seu lado inventor, e demonstra que o alemão de fato se encontrava firmemente inserido na região em que vivia. Em 1902, Robert patenteou um secador de erva mate, um dos principais produtos naturais da região: "[patente] n. 3.573 [...] a Robert Helling, brazileiro (sic), engenheiro, domiciliado em Ponta Grossa, Estado do Paraná, para sua invenção de Seccador de herva matte em folhas, com gavetões móveis, denominado — Seccador Helling".[10]
Em 1894 Helling era chefe de seção do trecho em operação da EFSPRG, possivelmente morando em Ponta Grossa, local que demarcava a divisão desse caminho de ferro em Linha Norte e Linha Sul. A posição assumida por Helling era de certa importância, o que provavelmente significa que ele fez carreira na ferrovia durante anos. Embora não possuísse formação em engenharia, a prática e a experiência poderiam representar qualificação suficiente, visto que seu cargo era, via de regra, desempenhado por engenheiros formados. Sobre isso refletiu um de seus comandados: "Não tinha título universitário, mas os conhecimentos profissionais trazidos da pátria e ampliados por aplicação intensiva na vida ferroviária, credenciaram-no como grande técnico em estrada de ferro".[11] Talvez por este motivo Helling seja frequentemente mencionado como "engenheiro" em diferentes documentos.
Sobre seus estudos na pátria mãe, nosso personagem afirma que
[...] quando estudei na Alemanha, aprendi que se utilizavam mapas militares e em casa se faz o esboço do traçado da linha férrea, para só então ir para o campo propriamente dito. Contudo, quando eu fiquei à beira de uma verdadeira floresta virgem, todas as minhas expectativas foram por água abaixo. Além disso, aqui não havia mapas militares, nem mesmo mapas convencionais. Pois o que havia sob esse nome era três quartos de mera fantasia.[12]
O trabalho em ferrovias marcou decisivamente a vida de Helling no Brasil. Em 1901 foi nomeado superintendente das linhas em tráfego da EFSPRG, tarefa complexa e de imensa responsabilidade. Sobre tal nomeação, Ewaldo Krüger, ferroviário paranaense que registrou suas memórias no livro "Vencendo Rampas", menciona que vários engenheiros brasileiros declinaram o convite para esta função. Mas Helling teria sido
[...] "the right man in the right place"! A Companhia não poderia ter sido mais afortunada na escolha deste funccionario, pois que, sobre ser um homem correctissimo, tinha o dom pouco vulgar de manter entre os seus subordinados uma rigorosa disciplina e de se adaptar com facilidade ás condições do momento. Emfim, era o chefe exigido pelas circumstancias.[13]
Adaptar-se às circunstâncias era, com certeza, uma das qualidades de Helling, assim como tomar decisões rápidas e gostar de aventuras. Tais atributos ficam evidentes no transcorrer de sua narrativa, em episódios como o conflito da direção da EFSPRG com o Dr. Saldanha (empreiteiro geral da construção da Linha Sul em 1908), em que cerca de dois mil trabalhadores encontravam-se "amotinados", segundo os periódicos da época.[14]
De acordo com Helling, Saldanha havia celebrado com o engenheiro norte-americano Ryant (então diretor geral da construção) um contrato prejudicial à empresa, pois esse executivo pouco conhecia o português e confiara na redação do brasileiro. Como solução, o norte americano preparava um golpe sobre os direitos contratuais do empreiteiro. Ryant enviou ao encontro de Saldanha o chefe da construção, Dr. Álvaro Martins. A missão de Martins era informar a Saldanha que esse não prosseguiria no trabalho e dizer aos operários que passariam a receber seu salário diretamente da Companhia. Tudo isso feria o contrato assinado. Para precaver-se contra Saldanha, Martins partiu com uma expedição de nove pessoas, incluindo o secretário de Ryant, o tesoureiro da Companhia, e Helling, especialmente convidado por sua experiência com os "perigos da construção". Aí se revela o caráter aventureiro do alemão: "Eu refleti. O trabalho na empresa estava tão entediante, enquanto lá no mato poderia ser muito mais interessante. Então decidi ir junto".[15]
Este episódio foi cercado de grande tensão e perigo, pois Saldanha, astuciosamente, não foi ao encontro do grupo na estação, forçando-os a entrar no mato com os 200 contos de réis destinados ao pagamento. Uma vez em seus domínios, o grupo viu-se em apuros. O encontro foi tenso, e Saldanha soube manipular os operários que aguardavam seus pagamentos atrasados. Em todo o episódio, Helling retrata-se como uma figura astuciosa, mais esperto que seus companheiros de jornada, que não teriam compreendido as dificuldades e perigos dessa tarefa. De acordo com sua narrativa, ele próprio teria sugerido que se escondesse certa quantia do dinheiro, 80 contos de réis, em meio a algumas roupas sujas. Neste caso teriam sido repassados a Saldanha apenas 120 contos, e a Companhia teria ganhado um pouco mais sobre o empreiteiro. Porém não existem meios para comprovar se este detalhe ocorreu exatamente dessa forma ou se se trata de um relato destinado a apresentar um Helling sagaz e heroico.[16] O que se sabe com relativa segurança é que o valor levado ao mato de fato era de 200 contos de réis, quantia muito expressiva.
Outra situação particularmente tensa vivida por Helling foi o episódio dos ataques rebeldes às estações Calmon e São João (pertencentes à EFSPRG) e à serraria da Lumber, durante a Guerra do Contestado.[17] Este acontecimento marcou o momento de maior expansão e violência do movimento, constituindo-se em verdadeiro trauma na memória dos remanescentes. A grande comoção popular provocada pelos ataques deveu-se não apenas à destruição das estações em questão, mas também ao assassinato de grande volume de moradores locais e à morte do Capitão Matos Costa, que chefiava as ínfimas forças militares presentes na região. Esse assassinato, associado aos terríveis ataques dos rebeldes contra Estações da Estrada de Ferro e à serraria Lumber, amplificou a reação por parte da União, apressando o início da Expedição Militar do General Setembrino de Carvalho. Bastante volumosa é a documentação primária que trata dos ataques às estações de Calmon e São João. Dentre esta documentação, está a narrativa de Helling, que proporciona interessante representação sobre o episódio.
Em 5 de setembro de 1914, aproximadamente às 14 horas, os rebeldes atacaram Calmon, incendiaram a estação, as casas, a madeireira e todo o depósito de madeiras da Lumber Company. Adotaram a prática de extermínio dos homens remanescentes, poupando apenas mulheres e crianças. Os mantimentos foram saqueados, e uma parte dos sobreviventes não resistiu à fome. São João foi atacada na madrugada ou pela manhã do dia 06 de setembro de 1914. O ataque a São João teria sido ainda mais cruel que a investida sobre Calmon. Chefiado por Venuto Baiano, não deixou nem um só homem vivo.
Infelizmente para os leitores de Helling, o diretor da Ferrovia não permitiu que ele acompanhasse o trem militar que seguiu para as estações atacadas. Seu comentário manifesta novamente a germanidade: "Isso era 1914 e nossos ânimos estavam tão instigados pelos feitos dos nossos irmãos heróis da Alemanha na longínqua Europa que também gostaríamos de empreender algo arriscado para manifestar nossa coragem alemã [...]".[18] Contudo, seu colega, o engenheiro Gräml,[19] obteve autorização para acompanhar o trem militar, e o relato subsequente do alemão possivelmente foi baseado em seus comentários. A narrativa, detalhada ao extremo, menciona o ataque à força militar e ao trem. Tal episódio gerou um Inquérito policial Militar que acabou por isentar a Companhia EFSPRG de qualquer responsabilidade, visto que o maquinista recuou o trem em momento crítico, deixando desguarnecida a força que fazia o reconhecimento do terreno.[20] Nesse momento, ocorreu a morte do Capitão Matos Costa e de alguns soldados.
Os ataques rebeldes são objeto de dois capítulos do livro de Helling, que ainda dedica mais um capítulo à análise do "fanatismo" e da religiosidade popular que lhe deu origem. Estas passagens habilitam a obra de Helling a ser considerada uma importante fonte documental para o estudo do Movimento do Contestado, embora ainda fracamente explorado pela historiografia.
Durante a Guerra, competiram muitas vezes a Helling as tratativas com o Exército. Sua presença no episódio do ataque às estações, que ocorreu em setembro de 1914, e os telegramas trocados com o General Setembrino de Carvalho durante o conflito, permitem afirmar que Helling permaneceu na região conflagrada, sendo, mais uma vez, “the right man in the right place”. Embora os diretores da Companhia exercessem inquestionável pressão sobre o Governo Federal e sobre o Exército, no sentido de proporcionar proteção às estações e à ferrovia, cabia a Helling, devido à proximidade e ao seu conhecimento prático, negociações e informações diretas ao alto comando militar na região. Atesta-o uma série de telegramas trocados por Helling com o comandante geral das forças em operação, o General Setembrino de Carvalho.[21]
A chegada da Expedição Setembrino à região proporcionou proteção à ferrovia e suas estações. O General implementou um plano tático que previa o “estrangulamento” do movimento a partir de quatro colunas, Norte, Sul, Leste e Oeste. A esta última cabia a proteção do leito da EFSPRG, restabelecendo seu tráfego e guarnecendo as estações. Em 1915, a Expedição Setembrino encerrou-se, com o esmagamento do reduto de Santa Maria, último grande núcleo de resistência dos rebeldes. Em 1916 permaneceu na região uma força militar, bem mais modesta, a cargo do Capitão Vieira da Rosa.
Neste mesmo ano, Robert Helling assumiu importante cargo na Estrada de Ferro Tereza Cristina, que pertencia então à Companhia EFSPRG. Assim descreve o escritor Walter Zumblick:
Foi designado para a direção de nossa via férrea em plena Grande Guerra, ou seja, em 1916. Veio da “São Paulo-Rio Grande” onde desfrutou sempre do mais invejável prestígio. Trouxe, ao lado da fama de competente e justo, a alcunha de “Barba de Bode”, graças ao cavanhaque alourado que usava.[22]
Seria a promoção um “prêmio” ao funcionário que se mostrara fiel à Companhia, mesmo nos mais difíceis momentos? É possível. Porém, ao que indica Zumblick, a transferência para Tubarão, onde ficavam os escritórios da Estrada de Ferro Tereza Cristina, não foi tão tranquila quanto se poderia esperar.
Por ser de nacionalidade alemã, foi vítima, nesta cidade, por várias vezes, de ofensas e hostilidades públicas partidas de determinados elementos locais. [...] Conseguiu, face ao clima de insegurança física em que vivia, permissão para transferir os escritórios desta Estrada para a cidade de Laguna, que o acolheu com fidalguia.[23]
- Tais episódios não se encontram narrados nas memórias de Helling.
Robert Helling permaneceu na direção da Estrada de Ferro Tereza Cristina até 28/02/1918.[24] Nos anos 1920 voltamos a encontrá-lo em Ponta Grossa, ocupando cargo de chefia.[25] Desconhecemos a data em que Helling retornou a sua pátria, mas supomos que o tenha feito, pois em 1931 publicou sua obra em Berlim. Segundo Trevisan, que não aponta a origem da informação, teria falecido em 1947, alcançando 84 anos. Em 1955, uma Estação Ferroviária da antiga linha Itararé – Uruguai recebeu o nome de Robert Helling em sua homenagem.[26]
Rigoroso, severo, justo, ponderado, aventureiro, corajoso, voluntarioso... tais são as representações sobre Helling trazidas por aqueles que o conheceram ou por sua própria narrativa. Segundo Freire, que foi seu subalterno em Ponta Grossa na década de 1920,Minha impressão do chefe não foi lisonjeira. Era alemão, de cavanhaque, fisionomia severa e trato seco, tipicamente prussiano. Entretanto, o tempo e o convívio funcional me fizeram ver a realidade. Muito humano e compreensivo, sua administração era pautada por alto espírito de equidade e justiça, a lembrar o velho refrão: quem vê cara não vê coração.[27]
De personalidade forte e enérgica, nosso personagem produziu importante fonte primária sobre relevantes processos e episódios históricos, que o leitor agora tem em mãos. É com grande felicidade que entregamos a presente tradução completa das memórias de Robert Helling, desejando a todos os interessados uma excelente leitura.
- ↑ Possui mestrado em Linguística e Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1991) e doutorado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2004). Presentemente é professora adjunta da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com atuação no Setor de Alemão. Tem experiência na área de Linguística e Letras, com ênfase em Tradução e Literatura Anglo-Americana.
- ↑ Possui mestrado (1998) e doutorado (2008) em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Realizou pós-doutoramento junto à Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente é professora associada da Universidade Federal de Pelotas, atuando no Departamento de História e no Programa de Pós Graduação em História desta Universidade. Especializou-se em estudos sobre o Movimento do Contestado.
- ↑ TREVISAN, Edilberto. Visitantes estrangeiros no Paraná. 2a ed. Curitiba: Torre de Papel, 2002.
- ↑ HELLING, Robert. 40 Jahre im Innern von Brasilien; Erlebnisse eines Eisenbahningenieurs, von Robert Helling. Berlin, Pyramidenverlag, Dr. Schwarz & Co., [1931]. p. 11. As citações extraídas da obra de Helling, mesmo quando traduzidas, farão referência a sua versão original em alemão.
- ↑ HELLING, Robert. 40 Jahre im Innern von Brasilien; Erlebnisse eines Eisenbahningenieurs, von Robert Helling. Berlin, Pyramidenverlag, Dr. Schwarz & Co., [1931]. p. 51.
- ↑ Através do site Family Search, foi possível localizar um Robert Helling nascido em 20 de agosto de 1863 em Seehausen (Altmark), na Alemanha. Filho de Siegfried Friedrich Alexander Helling e Marie Hedwig Helling, foi batizado em 27 de setembro de 1863. Muito provavelmente esse seja nosso personagem. Disponível em https://www.familysearch.org/ark:/61903/1:1:QP61-214) Acessado em 13/11/2020.
- ↑ LISTA DE IMIGRANTES CHEGADOS NO VAPOR CAMPINAS EM 16/05/1887. Disponível em https://www.joinville.sc.gov.br/wp-content/uploads/2016/06/Listas-de-imigrantes-de-Joinville-de-1851-a-1891-e-de-1897-a-1902.pdf Acessado em 13/11/2020.
- ↑ HELLING, Robert. 40 Jahre im Innern von Brasilien; Erlebnisse eines Eisenbahningenieurs, von Robert Helling. Berlin, Pyramidenverlag, Dr. Schwarz & Co., [1931]. p. 17.
- ↑ POLLAK, Michel. Memória e identidade social. Estudos históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 200-212.
- ↑ Diário Oficial da União, 22/05/1902.
- ↑ FREIRE APUD TREVISAN, Edilberto. Visitantes estrangeiros no Paraná. 2a ed. Curitiba: Torre de Papel, 2002. P. 280.
- ↑ HELLING, Robert. 40 Jahre im Innern von Brasilien; Erlebnisse eines Eisenbahningenieurs, von Robert Helling. Berlin, Pyramidenverlag, Dr. Schwarz & Co., [1931]. p. 49.
- ↑ KRUGER, Ewaldo. Vencendo rampas... Porto Alegre: Livraria do Globo, 1937. p. 38.
- ↑ Jornal Diário da Tarde, Curitiba, 07/08/1908.
- ↑ HELLING, Robert. 40 Jahre im Innern von Brasilien; Erlebnisse eines Eisenbahningenieurs, von Robert Helling. Berlin, Pyramidenverlag, Dr. Schwarz & Co., [1931]. p. 58.
- ↑ HELLING, Robert. 40 Jahre im Innern von Brasilien; Erlebnisse eines Eisenbahningenieurs, von Robert Helling. Berlin, Pyramidenverlag, Dr. Schwarz & Co., [1931]. p. 63.
- ↑ O Movimento do Contestado (1912-1916) foi um movimento social de grandes proporções que ocorreu na região disputada pelos estados de Paraná e Santa Catarina, avançando ainda sobre territórios catarinenses. Mobilizou um grande volume de rebeldes e boa parte das forças militares nacionais. A expulsão de posseiros de terras lindeiras à ferrovia São Paulo — Rio Grande, a partir de 1910, foi um dos fatores de tensionamento social na região. Os ataques rebeldes às estações da ferrovia e os danos causados mesma se configuravam como medida de vingança frente à série de desmandos ocorridas no transcorrer do processo de estruturação da propriedade privada capitalista na região. Sobre o assunto existe vasta bibliografia. Vide, por exemplo, QUEIROZ, Maurício Vinhas de. Messianismo e conflito social (a guerra sertaneja do Contestado 1912-1916). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966; MONTEIRO, Duglas Teixeira. Os errantes do novo século: um estudo sobre o surto milenarista do Contestado. São Paulo: Duas Cidades, 1974; MACHADO, Paulo Pinheiro. Lideranças do Contestado: a formação e a atuação das chefias caboclas (1912-1916). Campinas: Ed. da Unicamp, 2004; ESPIG, Márcia Janete. Personagens do Contestado: os turmeiros da Estrada de Ferro São Paulo — Rio Grande (1908-1915). Pelotas: Editora Universitária/UFPel, 2011.
- ↑ HELLING, Robert. 40 Jahre im Innern von Brasilien; Erlebnisse eines Eisenbahningenieurs, von Robert Helling. Berlin, Pyramidenverlag, Dr. Schwarz & Co., [1931]. p. 41.
- ↑ Grafado "Graeml" no Inquérito Policial Militar. Mantivemos aqui a grafia conforme Helling.
- ↑ INQUÉRITO POLICIAL MILITAR referente ao esclarecimento da morte do Major João Teixeira Mattos Casta. União da Victoria, anno de 1914.
- ↑ Esta documentação pode ser localizada nos arquivos do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), no Rio de Janeiro. TELEGRAMA HELLING AO GENERAL SETEMBRINO DE CARVALHO. Porto União da Vitória, 06/04/1915. TELEGRAMA R. HELLING AO GENERAL SETEMBRINO DE CARVALHO. Porto União da Vitória, 08/04/1915. TELEGRAMA R. HELLING AO GENERAL SETEMBRINO DE CARVALHO. Porto União da Vitória, 09/04/1915.
- ↑ ZUMBLICK, Walter. "Teresa Cristina”: a ferrovia do carvão. Ed. da UFSC, 1987. p. 96.
- ↑ ZUMBLICK, Walter. "Teresa Cristina”: a ferrovia do carvão. Ed. da UFSC, 1987. p. 96/97.
- ↑ ZUMBLICK, Walter. "Teresa Cristina”: a ferrovia do carvão. Ed. da UFSC, 1987. p. 97.
- ↑ FREIRE APUD TREVISAN, Edilberto. Visitantes estrangeiros no Paraná. 2a ed. Curitiba: Torre de Papel, 2002. p. 279.
- ↑ Localizada no município de Rio Azul, no Paraná, hoje se acha desativada. Conferir em http://www.estacoesferroviarias.com.br/pr-tronco/robhelling.htm . Acessado em 13/11/2020.
- ↑ FREIRE APUD TREVISAN, Edilberto. Visitantes estrangeiros no Paraná. 2a ed. Curitiba: Torre de Papel, 2002. p. 279/280.
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