40 anos no interior do Brasil/Russos

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Russos


Eu sou um dos muitos que mal pode entender como é possível o regime soviético se manter já há mais de uma década na Rússia. Como eu nunca estive na Rússia, também não me cabe fazer um julgamento sobre o caráter do povo russo, ainda mais agora que o gigantesco território abrange as mais diversas raças e grupos étnicos; mas me é permitido contar um episódio que vivenciei e que talvez seja típico.

Na construção de nossa estrada de ferro foram contratados trezentos russos que tinham vindo direto de Odessa e cabe assinalar: antes da Grande Guerra![1] Eram belas figuras altas com olhos de um azul claro e maneiras calmas. No entanto, não gostavam do trabalho e da comida. Depois de pouco tempo, nenhum deles apareceu mais no canteiro de obras. Acamparam na última estação em volta das cantinas, e em função de lá não haver ranchos suficientes, sem delongas eles ocuparam os vagões de carga vazios e lá firmaram residência. Mas os vagões se tornaram necessários e em vão os funcionários da estação lograram expulsá-los de lá. O intérprete conversou e praguejou. Tudo inutilmente! Pelas pernas eles foram retirados dos vagões sem que pudessem resistir, mas entraram de novo arrastando-se pelo outro lado, tão logo nossos homens se afastaram.

Eu era chefe de setor e o diretor norte americano mandou me chamar e me encarregou de tomar os vagões de um jeito ou de outro. “Está bem!” disse eu. “Mas para levar o pessoal, eles devem antes de qualquer coisa ser pagos”. Ele também compreendeu isso e colocou dinheiro e o tesoureiro à minha disposição. Entretanto, eu quebrei a cabeça pensando em como poderia fazer para atrair os caras para fora dos vagões. Em todo caso, peguei uma dúzia de meus guarda-freios, todos mulatos, com os quais se podia buscar o diabo do inferno, para empreender a viagem comigo, deixei o bando ir na frente e investigar uma vez mais se eles não carregavam facas e fui no dia seguinte com os trens regulares. Além do tesoureiro, encontrava-se ainda em meu trem de serviço um polaco que falava muito bem russo e que serviria como intérprete. Eu meditei e refleti sobre como eu poderia começar a tirar os sujeitos dos vagões, mas nada me ocorreu, até que, no café da manhã, pois a viagem durou o dia todo, o tesoureiro me perguntou irônico sobre o encaminhamento que teria para o assunto. E então, de súbito, me veio a solução. Mas eu não disse a ele, e sim fiz tudo secretamente. Em uma das estações, onde nós fizemos uma parada mais longa, chamei o meu bando de mulatos e dei as seguintes instruções:

“Quando nós chegarmos em Porto da União, posicionem-se logo nos vagões! Eu vou pegar os russos, mas somente se eles se distanciarem imediatamente dos vagões. Então vocês jogam para fora eventuais russos junto com a bagagem que ainda deverá estar lá, fechem os vagões, encaixem um ao outro e a locomotiva os levará lentamente sobre a grande ponte do Rio Iguaçu de onde eles serão empurrados para o desvio provisório. Depois ocupem a entrada da ponte e não deixem nenhum russo atravessar! Tudo deve acontecer silenciosamente. Vocês devem meter um porrete curto na perna da calça para que o tenham à mão, mas não devem levar navalhas, com as quais o seu bando tão bem trabalha. Vocês me entenderam? Agora vão calmamente para os seus vagões e não falem com ninguém para que nossa festa não seja estragada”.

A resposta foi um sorriso geral, e calmamente eles se afastaram. Isto era uma tarefa do seu agrado, eu sabia que podia confiar nos rapazes. Mas quando o trem chegou em Porto da União, a plataforma da estação estava quase toda ocupada pelos russos, de forma que somente com algum esforço eu consegui descer. Mas ir adiante não era possível, pois os russos formavam como que uma muralha viva. Eu gritei para eles:

“Abre-se!” Ninguém se mexeu. Na esperança de que alguns dos presentes entendessem alemão, gritei: “Ihr Hornochsen, lasst mich durch!”[2] O resultado foi o mesmo, os olhos azuis e estúpidos fitavam sem compreender. Aquilo me enfureceu e eu dei um merecido golpe no estômago do que estava mais próximo. O homem entendeu aquilo que pareceu ser a palavra mágica com a qual eles estavam habituados. Com voz alta ele grasnou algumas palavras em russo e na mesma hora se abriu um estreito caminho através do qual pudemos ir até o escritório. Eu estava muito satisfeito quando vi que o tesoureiro, que vinha atrás de mim, havia felizmente chegado com seu ouro; pois, como foi dito, eram gigantes na forma; todos estavam uniformemente vestidos com velhas fardas militares acinzentadas.

Através do intérprete, mandei anunciar que o pessoal iria receber o pagamento atrasado, mas só com a condição de que os vagões de carga fossem desocupados dentro de dez minutos. Num instante a multidão se evaporou e da mesma forma reapareceu pontualmente depois dos estabelecidos dez minutos. Ao mesmo tempo apareceu um dos meus mulatos e me comunicou que todos os vagões estavam desocupados. Portanto, mandei o pagamento ter início, sabia que minhas ordens de remoção dos vagões prontamente seriam realizadas. O pagamento prosseguiu e por fim o intérprete precisou fazer um discurso fulminante e exortar o pessoal a retornar ao trabalho. Para espanto geral de todos, eles declararam que estavam dispostos a isso sem problemas e fui para minha estalagem almoçar com a alma leve. No entanto, nós ainda não havíamos terminado a sopa quando um mensageiro chegou correndo para avisar que o pessoal tinha mudado de opinião e agora não queriam mais trabalhar, mas sim serem levados de volta para a Rússia. Com passo rápido, voltou-se para a estação e passamos então a conversar, xingar e debater e, finalmente, o intérprete, banhado em suor, anunciou que havia acalmado os ânimos novamente e que o pessoal queria voltar ao trabalho. Novamente voltou-se para o almoço. Mas ainda antes que o assado fosse consumido, o mensageiro de más notícias chegou correndo mais uma vez e informou que a opinião havia mudado novamente e que o pessoal absolutamente exigia ser transferido até o próximo porto. Com um palavrão, levantei num pulo; eu já tinha enviado um telegrama radiante e informado do meu sucesso. Então mais uma vez de volta e de novo se conversou e negociou, até que o intérprete ficou rouco e não proferiu mais palavra. Mas foi tudo em vão, eles não queriam mais nada mesmo; como um bando de mulas teimosas que ora vão para um lado, ora para outro e quando dá na telha, de volta para o primeiro. Mas agora os vagões eles também não receberiam mais, pois já haviam sido removidos; e no trem eu não deixei ninguém embarcar sem bilhete; e para isso meus mulatos mantinham uma guarda fiel. Dos trezentos homens somente quinze retiraram passagem; os outros marcharam a pé ao longo da linha férrea até Curitiba, a capital do Estado, mais de quinhentos quilômetros, e lá se instalaram na rua em frente ao consulado austríaco (lá não havia um consulado russo) e acamparam dia e noite e pediam para serem enviados de volta a Odessa. Quando a polícia avançava sobre eles, ajoelhavam-se, levantavam as mãos, pediam e imploravam e finalmente também foram um pouco para o lado, mas tão logo os soldados se foram, eles se puseram de volta lá; de modo que por fim houve uma irritação pública e o governo do Estado solicitou a nossa companhia ferroviária que o pessoal fosse removido. A empresa havia trazido os russos do Rio de Janeiro para o Paraná, e deveria, portanto, providenciar para que o bando fosse despachado. A companhia não estava diretamente obrigada a isso, mas tinha interesse em manter boas relações com o governo estadual; e até mesmo o governo federal concordou energicamente com a solicitação do governo estadual, de modo ela se viu incumbida de fretar um pequeno vapor e por fim mandar todo o grupo diretamente de volta para Odessa; pois outros países também se recusaram a deixar os vagabundos desembarcar. A brincadeira custou à empresa a ninharia de 50.000 marcos

Depois desse episódio e de acordo com o que ouvi ou li, formei a imagem de um russo apático, influenciável, ultraconservador, cegamente submisso ao Pope e ao Czar, simpáticos à revolução, mas nunca por muito tempo. Eu considerava o regime soviético como uma planta estrangeira que seria varrida, se o sopro abafado do cotidiano dos russos soprasse continuamente sobre ela. Quanto me enganei! Ano após ano, ela segue e a bandeira vermelha ainda flutua.

Expus meus pensamentos a um amigo, médico russo, e perguntei a ele se poderia dar uma explicação para isso. Ele sorriu - era o mesmo sorriso apático-amigável, típico aos russos - e me perguntou se eu nunca tinha pensado a respeito do fracasso da contra revolução do general Denikoff, que recuou quarenta verstas[3] próximo a Moscou.[4] Não tinha conhecimento que os sovietes repartiram todas as terras de grandes proprietários entre os pequenos lavradores? Respondi afirmativamente.

“Então, o que mais o senhor quer?”, disse ele cansado. “Pois então o senhor não vê que unicamente essa divisão de terras segura os sovietes? Leia Tolstoi, ele tinha uma ideia dessa sede de terra do povo russo! Denikoff precisou retroceder quando estava a quarenta verstas de Moscou, porque ele queria restituir aos velhos senhores a posse de suas terras. No dia seguinte, metade de seu pessoal o abandonou. O mais óbvio não se vê e um europeu ocidental nunca irá compreender a alma do povo russo!”

 

  1. Refere-se obviamente a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) pois no momento da redação de seu livro ainda não ocorrera a Segunda Grande Guerra (1939-1945). (NdH)
  2. “Seus estúpidos, deixem-me passar!” (NdT)
  3. Medida arcaica empregada na Rússia, equivale a 1,067 km. (NdT)
  4. A grafia Denikoff deve-se a um equívoco de Helling. Trata-se de Anton Ivanovitch Denikin, um das generais que, após a Revolução Russa de 1917, comandou as forças contrarrevolucionárias. Vide BRINCLEY, George. The Volunteer Army and the Allied Intervention in South Russia, 1917-1921: A Study in the Politics and Diplomacy of the Russian Civil War. Notre Dame: University of Notre Dame, 1966. (NdH)

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