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A Abóbada/II

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Uma das innumeraveis questões, que, em nosso entender, eternamente ficarão por decidir, é a que versa sobre qual dos dous dictados—­voz do povo é voz de Deus—­ou—­voz do povo é voz do diabo—­seja o que exprima a verdade. É indubitavel que o povo tem uma especie de presciencia innata, d’instincto divinatorio. Quantas vezes, sem que se saiba como ou porque, corre voz entre o povo, que tal navio saído do porto, tão rico de mercadorias como de esperanças, se perdeu em tal dia e a tal hora em praias estranhas. Passa o tempo, e a voz popular renlisa-se com exacção espantosa. Assim de batalhas; assim de mil factos. Quem dá estas noticias? Quem as trouxe? Como se derramaram? Mysterio é esse, que ainda ninguem soube explicar. Foi um anjo? Foi um demonio? Foi algum feiticeiro? Mysterio. Não ha, nem haverá, talvez, nunca, philosopho que o explique; salvo se tal phenomeno é uma das maravilhas do magnetismo animal. Esse meio inintelligivel de dar solução a tudo o que se não entende, é acaso a unica via de resolver a dúvida. Se o é, ahi damos mais um osso a roer aos physicos do magnetismo.

Foi o caso: quando a cavalgada, de que fizemos menção no fim do antecedente capitulo, vinha descendo a encosta sobranceira á planicie do mosteiro, entre o povo que estava dentro da igreja, impaciente já pela demora do auto, começou-se a espalhar um sussurro, que cada vez crescia mais: o motivo delle não era facil sabe-lo: nenhuma novidade occorrêra; ninguem tinha entrado ou saido. De repente toda aquella multidão se agitou, remoinhou pela igreja, e principiou a borbulhar pelo portal fóra, como por bico de funil o liquido deitado de alto. Tinham sabido que elrei chegava, e todos queriam vê-lo descalvagar, porque D. João I, plebeu por herança materna, nobre por ser filho do D. Pedro I, rei eleito por uma revolução, e confirmado por cincoenta victorias, era o mais popular, o mais amado, e o mais acatado de todos os reis da Europa. Vinha montado em uma possante mula, e assim mesmo em outras os fidalgos e cavalleiros de sua casa. Trazia vestida sobre a cota uma jórnea de veludo carmesim, monteira preta, e nebri em punho, em maneira de caçada. Chegando á porta do mosteiro, onde o esperava já Fr. Lourenco com parte da communidade, apeou-se de um salto, e com rosto risonho e a mão no barrete, agradeceu sua cortezia e amor aos populares, que gritavam apinhados à roda delle: —­“viva D. João I de Portugal: morram os castelhanos!”—­grito absurdo, mas semelhante aos vivas de todos os tempos; porque o povo, bem como o tigre, mistura sempre com o rugido de amor o bramido que revela a sua indole sanguinaria.

Por baixo daquellas suberbas arcadas desappareceu brevemente elrei da vista da multidão, que tornou a sumir-se no templo para ver o auto, que não podia tardar.

“Mui receioso estava que vossa real senhoria nos não honrasse nosso auto; porque o sol não tarda a sumir-se no poente:—­dizia Fr. Lourenço a elrei, a cujo lado ia para o guiar ao seu aposento.

“Bofé, mui devoto padre prior, que por pouco estive a ponto de ter que levar a vossos pés mais uma mentira com os outros peccados, que me não fallecem, se ámanhan me quizesse confessar ao meu antigo confessor:—­tornou-lhe elrei sorrindo-se.

“E certo estou de que entre todos os peccados de que terieis de vos accusar, este não fôra o menos grave, e de que eu muito a custo absolveria vossa mercê:—­retrucou o prior, que tinha aprendido ainda mais depressa as manhas cortezans no paço, do que a theologia no noviciado da sua ordem.

“Mas para onde me guiaes, reverendissimo prior:—­disse elrei, parando antes de subir uma escada, para a qual Fr. Lourenço o encaminhava.

“Ao vosso aposento, real senhor; por que tomeis alguma refeição, e repouseis um pouco do trabalho do caminho.”

“Não foi grande o feito, para tomar repouso:—­acudiu elrei:—­que de Santarem aqui é uma corrida de cavallo; muito mais para quem, em vez de cota de malha, arnez e braçaes, traz vestidos de seda. Despi-los-hei bem depressa, já que elrei de Castella quer jogar mais lançadas, e não vieram a conclusão de treguas o Mestre de Sanctiago com o Condestavel. Mas vamos, meu doutissimo padre; mostrae-me a casa do capitulo, a que mestre Ouguet acabou de pôr seu fecho e remate. Onde está elle? Quero agradecer-lhe a boa diligencia.”

“Beijo-vos as mãos pela mercê:”—­disse mestre Ouguet, que, sabendo da chegada d’elrei, e certo de que elle desejaria vêr aquella grande obra, tinha corrido ao mosteiro, e estava entre os da comitiva:—­“Se quereis vêr a casa do capitulo, vamos para a banda da crasta.”—­Dizendo isto, sem ceremonia tomou a dianteira, e encaminhou-se ao longo de um dos cubertos do claustro.

David Ouguet era um irlandez, homem mediano em quasi tudo; em idade, em estatura, em capacidade, e em gordura, salvo na barriga, cujos tegumentos tinham soffrido grande distensão, em consequencia da dura vida que a tyrannia do filho d’Erin lhe fazia padecer havia bem vinte annos. Desde muito moço que começára a produzir grande impressão no seu espirito a invectiva do apostolo contra os escravos do proprio ventre; e para evitar essa condemnavel fraqueza resolvêra traze-lo sempre sopeado. Não lhe dava treguas; se em Inglaterra o fizera muitos annos vergar sob o pêso de dez atmospheras de cerveja, em Portugal submettia-o ao mais fadigoso mister de cangirão permanente. Mortificava-o assim, para que não lhe acudissem suberbas e velleidades de senhorio e dominação. De resto David Ouguet era bom homem, excellente homem: não fazia aos seus semelhantes senão o mal absolutamente indispensavel ao proprio interesse: nunca matára ninguem, e pagava com pontualidade exemplar ao alfaiate e ao merceeiro. Prudente, positivo, e practico do mundo, não o havia mais: seria capaz de se empoleirar sobre o cadaver de seu pae para tocar a méta de qualquer designio ambicioso: com tres licções de phrases oucas dava panno para se engenharem delle dous grandes homens d’estado. Tendo vindo a Portugal como um dos cavalleiros do duque de Lancastre, procurou obter e alcançou a protecção da rainha D. Philippa, que, havendo Affonso Domingues cegado, o fez nomear mestre das obras do mosteiro da Batalha, mostrando elle por documentos authenticos ter na sua mocidade subido ao gráu de mestre na sociedade secreta dos obreiros edificadores.

Esta é em breve resumo a historia de David Ouguet, tirada de uma velha chronica, que, em tempos antigos, esteve em Alcobaça enquadernada em um volume junctamente com os traslados authenticos das Côrtes de Lamego, do Juramento de Affonso Henriques sobre a apparição de Christo, da Carta de feudo a Claraval, das Historias de Laimundo e Beroso, e de mais alguns papeis de igual veracidade e importancia, que por pirraça ás nossas glorias provavelmente os castelhanos nos levaram.

O lanço da crasta, fronteiro ao cuberto por onde ía elrei, estava ainda por acabar. Apenas D. João I entrou naquelle magnifico recincto, olhou para lá, e voltando-se para mestre Ouguet, disse:

“Parece-me que não vão tão aprimorados os lavores daquellas arcarias como os destas. Que me dizeis, mestre Ouguet?”

“Seguiu-se á risca nesta parte—­tornou o architecto—­o desenho geral do edificio, feito por mestre Affonso Domingues; porque seria grave erro destruir a harmonia desta peça: mas se vossa mercê m’o permitte, antes de entrardes no capitulo tenho alguma cousa que vos dizer ácerca do que ides presenciar.”

“Falae desassombradamente:—­respondeu elrei—­que eu vos escuto.”

“Tomei a ousadia—­proseguiu mestre Ouguet—­de seguir outro desenho no fechar da immensa abobada que cobre o capitulo: o que achei na planta geral contrastava as regras da arte, que aprendi com os melhores mestres de pedraria. Era até impossivel que se fizesse uma abobada tão achatada, como na primitiva traça se delineou: eu, pelo menos, assim o julgo.”

“E consultastes o architecto Affonso Domingues, antes de fazer essa mudança no que elle havia traçado?—­interrompeu elrei.

“Por escusado o tive:—­replicou David Ouguet.—­Cégo, e por isso inhabilitado para levar a cabo a edificação, teimaria que o seu desenho se póde executar, visto que hoje ninguem o obriga a prova-lo por obras. Sobra-lhe orgulho: orgulho de imaginador engenhoso. Mas que vale isso sem a sciencia, como dizia o veneravel mestre Vilhelmo de Wykeham? Menos engenho e mais estudo, eis do que havemos mister.”

“Dizendo isto o architecto, mettêra ambas as mãos no cincto, estendêra a perna direita excessivamente empertigada, e com a fronte erecta volveu os olhos solemne e lentamente para os circumstantes.

“Mestre Ouguet—­acudiu elrei com aspecto severo—­lembrae-vos de que Affonso Domingues é o maior architecto portuguez. Não entendo de vossas distincções de sciencia e de engenho: sei só que o desenho de Sancta Maria da Victoria causa assombro a vossos proprios naturaes, que se gabam de ter no seu paiz os mais affamados edificios do mundo: e esse mestre Affonso, de quem vós falaes com pouco respeito, foi o primeiro architecto da obra que a vosso cargo está hoje.”

“Vossa mercê me perdoe:—­tornou mestre Ouguet, adocicando o tom orgulhoso com que falára.—­Longe de mim menoscabar mestre Domingues: ninguem o venera mais do que eu; mas queria dar a razão do que fiz, seguindo as regras do mui excellente mestre Vilhelmo de Wykeham, a quem devo o pouco que sei, e cuja obra da cathedral de Winchestria tamanho ruido tem feito no mundo.”

Com este dialogo chegou aquella comitiva ao portal, que dava para a casa do capitulo: Fr. Lourenço Lamprea, como dono da casa, correu o ferrolho com certo ar de auctoridade, e encostado ao umbral cortejou a elrei no momento de entrar, e aos mais fidalgos e cavalleiros que o acompanhavam. Mestre Ouguet, como pessoa tambem principalissima naquelle logar, collocou-se juncto do umbral fronteiro, repetindo, com aspecto sobranceiro-risonho, as mesuras do mui devoto padre prior.

Quando elrei entrou dentro daquella espantosa casa, apenas através da grande janella que a allumia entrava uma luz frouxa, porque o sol estava no fim de sua carreira, e o tecto profundo mal se divisava sem se affirmar muito a vista. Mestre Ouguet ficára á porta, mas Fr. Lourenço tinha entrado.

“Reverendo prior—­disse elrei voltando-se para Fr. Lourenço—­vim tarde para gosar desta maravilhosa vista: vamos ao auto da adoração, e ámanhan voltaremos aqui a horas de sol.”

E seguiu para a banda da sacristia, cuja porta lhe foi abrir o prior.

Mestre Ouguet entrou na casa do capitulo, quando já os ultimos cavalleiros do sequito real íam saindo pelo lado opposto, caminho da igreja. Com as mãos mettidas no cincto de couro preto que trazia, e a passo mesurado, o architecto caminhou até o meio daquella desconforme quadra. O som dos passos dos cavalleiros tinha-se desvanecido; e mestre Ouguet dizia comsigo, olhando para a porta por onde elles haviam passado:

“Pobres ignorantes! que seria o vosso Portugal sem estrangeiros, senão um paiz sáfaro e inculto? Sois vós, homens brigosos, capazes dos primores das artes, ou sequer de entende-los?.. Lá vão, lá vão os frades celebrar um auto! Não serei eu que assista a elle; eu que vi os mysterios de Coventria e de Widkirk! Miseraveis selvagens, antes de tentardes representar mysterios fôra melhor que mandasseis vir alguns irmãos da sociedade dos escrivães de parochia de Londres, [1] que vos ensinassem os verdadeiros momos, ademanes e tregeitos usados em semelhantes autos.”

Mestre Ouguet estava embebido neste mudo soliloquio, em louvor da nação que lhe dava de comer, e o que deveria pesar-lhe ainda mais na consciencia, da nação que lhe dava de beber, quando erguendo casualmente os olhos para a macissa abobada, que sobre elle se arqueava, fez um gesto de indizivel horror, e como doudo correu a bom correr pela crasta solitaria, apertando a cabeça entre as mãos, e gritando a espaços:

“Oh, malaventurado de mim!”


  1. Pelas Chronicas de Stow se vê que no principio do seculo 15.° os mysterios eram representados em Londres pelos escrivães de parochia, incorporados em sociedade por Henrique 3.°, em 1409.