A Bella Madame Vargas/I
ACTO PRIMEIRO
O esplendido terraço da villa de Mme Vargas. Á direita, avançando sobre o terraço entre grinaldas de rosas e trepadeiras floridas, a fachada da linda casa, com varanda e escadaria. Para essa varanda dão a larga janella e a porta do salão de musica. No fundo balausdrada de marmore. Do terraço domina-se um maravilhoso panorama de floresta, deslisando para a bahia em baixo, ao fundo. Em baixo os jardins do palacete.
Entretanto são cinco horas de um dia de inverno e ha nesse terraço um chá ao ar livre. As pequenas mezas já estão dispostas, com gosto e com muitas flores. Os creados dão os ultimos cuidados á organisação geral. Ouve-se no salão de musica risos, e pedaços de uma cançoneta parisiense. Quando abre o panno estão em scena, de casaca, a arrumar as mezas Antonio e Braz.
A ideia de tomarem chá no terraço c'est très bien.
Pois sim. Desde que te deem ares e haja palavras extrangeiras, ficas satisfeito. Eu é que não. Estou aqui, estou a deixar isto. Olha que é trabalho. Chá no salão, chá nos quartos, chá no terraço, chá em toda a parte, chá a toda hora…
É a civilisação, rapaz…
Mas de dinheiro, nem cheta. Preferia menos chá e mais massa. Tu a olhar-me com esses modos superiores. Não sou eu só. Na copa todos se queixam.
Mas ficam?
A ver se recebem…
C'est très bien. As casas assim, ainda são as melhores. De repente vem o dinheiro. Olha eu enquanto houver tapetes, música, chá, comedorias, — vou esperando. Ça me va. Nasci para o luxo.
Palerma!
Neste momento apparece no alto da escada, vindo do salão de música, D. Maria de Miraflor.
Então, meus rapazes. Tudo bem?
Como V. Ex. vê muito bem. O homem das flores é que não as queria deixar.
Muda aquella meza para o canto. Mas deixou?
Assim? Deixou. Prometti ir logo lá.
Braz, arranja o samovar.
Que samovar?
O aparelho de chá. Digo-lhe todos os dias a mesma coisa. Ainda não sabe?
E eu tambem, senhora D. Maria, digo-lhe todos os dias o mesmo sem ser attendido.
Braz, que é isso? Commigo? Vá, olhe que sou eu…
De resto, chega nervoso e alacre Carlos Villar.
Bõa tarde.
Oh ! Carlos…
Muito occupada?
Dando os ultimos toques ao chá.
Sala cheia, não?
Os de costume.
Parece estar contrariada.
Quem sabe?
Commigo?
Ainda hontem no Lyrico você parecia um detective americano, sempre de binoculo a varejar o nosso camarote. Por que faz isso?
Não tinha razão?
Não tinha o direito. São coisas tão differentes a razão e o direito que o direito foi feito para dar razão a quem não a tem. Você não só não tem direito, como não tem razão, nem juizo.
Má.
Conheço-o muito bem.
Oh! D. Maria, seja minha amiga. Sinto qualquer coisa que parece me annunciar uma grande transformação das coisas.
E’ o mundo que vae acabar.
Apenas commigo esses ares são menos uteis. — Seria muito melhor que não tivesse o desejo de prejudicar os outros.
Está insuportável!
E você então!
Os risos no jardim interrompem o dialogo. Entram Julieta Gomes, Carlota Paes, Gastão Buarque, en coup de vent.
Sejam bem vindos os retardatarios!
Já acabou o chá?
Good evening! Não ha mais ninguem?
Como vocês veem!
Oh! Uma corrida louca pela montanha. O automovel do Gastão é tão doido como o dono!
Fala de prazer.
Devo estar descabellada, pois não?
Está ainda mais bonita!
Obrigada. Sempre amavel.
Muita gente?
Todos no salão de musica, jogando o puzzle.
Vamos ver isso (sobe a escada e sae).
E ha tambem a Baby ensaiando o Elle était souriante.
Entremos. A Baby ensaiando! Deve estar afflicta para que a interrompam.
O grupo alegre sae subindo a escada. Ha risos. Depois palmas. A cançoneta continua dentro. E no terraço um momento deserto apparecem O Barão André de Belfort, José Fereira.
Chegámos no melhor momento, meu caro José. As mezas de bridge já devem estar organisadas e não falta ninguem. Nas recepções cariocas só é prudente entrar quando a dona da casa já não precisa de parceiros para o bridge, nem de figuras para os flirts.
Oh! barão, recepções! Que grande palavra para um chá simples, na mais simples intimidade!
Mas onde viu você uma festa no Rio que não fosse intima? Como somos sempre os mesmos, ainda não fomos apresentados e já nos conhecemos intimamente. Mesmo um grande baile é uma festa intima.
Maldizente!
De resto, vamos assim muito bem. A unica intimidade possivel hoje em dia é fingir que sabemos da vida alheia. Com os amigos escapamos de logros e com os indifferentes, nada ha que melhor nos colloque. A maioria das pessoas a quem cumprimento não me foi apresentada. Acontece a muitos o mesmo. E é explendido. Um homem que trata toda a gente de você e pergunta pela familia dos desconhecidos é um tremendo valor. Por isso nós nos tratamos todos por você.
E’ o que se chama exagerar.
O exagero é a personalidade da observação.
Quando a observação é a de um espirito tão superior...
Joven lisongeiro!
Se entrassemos?
Um minuto ainda. Mas que orgia floral, que encanto! Estamos de facto muito bem. Decididamente Hortencia tem gosto.
Perdão…
Oh! Barão! Tambem?
Perdão. Não quero com isso offender ninguem. Mas conheço Hortencia ha largos annos e vejo-a sempre victima de paixões. (Gesto de José.) Victima é o termo, porque as recebeu sempre com a mais glacial indifferença.
Talvez por isso seja levado a estimal-a mais, como quem a defende. Não tem culpa a pobresinha de causar paixões. Mas quanto mais gelida se faz, mais amores provoca. Amores? Não são amores, são loucuras. Já lhe contaram que antes de casar com o Vargas, Hortencia foi a causa de duas mortes?
Duas?
A do estudante Theotonio Rodrigues, que se precipitou de um pedreira, e a do velho conselheiro Gomide que tomou lysol.
Mas o conselheiro não morreu.
Acha você que um conselheiro, mesmo não morrendo, possa sobreviver a um suicidio por Lysol? O enterro é no caso um epilogo sem importancia — como aliás todos os enterros.
A terceira morte de Hortencia foi causa involuntaria…
Aquella da qual ninguem falla: o casamento.
O barão está sempre a brincar.
O facto é que Hortência nunca amou o marido. Creio que o pobre Vargas partiu para o outro mundo, descorçoado de realizar o impossivel. Era o bastante? Parece que não. A epidemia sentimental continua. Teremos mais algum desastre.
E Hortencia a dizer-me que o senhor é o seu melhor amigo!
Hortencia é intelligente, percebe que, sendo eu o unico a não lhe fazer declarações, devo ser o mais amigo.
Oh! Barão!
Claro. Já viu você desastre maior do que uma pessoa que tem amor por outra? Quando não é a desgraça de ambos é pelo menos o desastre de um.
Do que ama ou do que é amado?
Do que tiver menos sorte. Hortencia por exemplo é sempre obrigada ao papel de Venus destruidora, numa epoca que é a negação da mythologia.
Como o barão labora em erro. Hortencia é tão bôa!
Não digo ao contrario.
Deve saber melhor do que eu, que se ella casou, casou por conveniencias de familia e soube apesar d’isso honrar o nome de seu marido. (Pausa.)
Como o sinto differente, José desta sociedade!
Ella é então muito má, para que me admire tanto?
Não. Todas as sociedades são mais ou menos assim. A unica sociedade sem perigo seria a da propria pessoa, se não acabasse por aborrecer, o que leva ás vezes ao suicidio. Acho-o diverso, entretanto, porque se abstem das intrigas, das calumnias, do debinage — por esta larga força d'affirmar...
Cheguei ha quatro mezes apenas. Ainda não tive tempo de ser mau.
Porque não chegou todo elle senão para ver Hortencia.
Como não a comprehendem! Hortencia é um coração puro, meigo, capaz de amar.
Muito bem!
Falo serio.
Eu tambem. Quando me falam com tamanha solemnidade, tenho a impressão de que me vou aborrecer. Então digo muito bem. Digo muito bem, para reflectir no que as palavras escondem. Ora, neste momento sou capaz de jurar que já declarou a sua paixão e que ella foi bem recebida.
De facto.
Ah!
Parece-lhe extraordinario?
Só as coisas sem importancia são extraordinarias.
Não sou como os outros, barão. Ha muito tempo guardava em segredo o meu amor. Só depois de pensar muito, declarei-me. E quando pedi a mão de Hortencia, ella estava commovida, o seu olhar foi tão profundo, que nunca mais esquecerei esse instante immenso.
Pobre Hortencia!
Não acha que se enganava?
O amor vem quando menos o esperamos. Para quando o casamento!
Espero hoje falar a minha mãe. Sou maior, formado como toda a gente, possuidor de uma fortuna não pequena. O casamento será logo que queira Hortencia. Procurarei ser apaixonado mas amigo.
Será espantoso se realisar essas duas coisas contradictorias — ao mesmo tempo.
Mas barão, peço-lhe o maior sigillo. Uma phrase comprometter-me-ia, Hortencia fez-me jurar segredo. Quer partir. Quer casar fóra d’aqui. Tambem tem medo da sociedade em que vive. É de um nervoso. Tem soffrido tanto!
Acho que faz bem.
Em esconder um acto honesto?
É que ella o julga por de mais grave. Que vê o José aqui, em redor do seu amor? Senhoras, meninas, rapazes, a rir e a flirtar. Parecem-lhe inoffensivos? São perigosissimos, feitos de despeitos, de invejas, de egoismos. É uma sociedade que se forma de alluvião em torno do Dinheiro, — que a maioria tem por hypothese. Ha gente rica hoje e amanhã sem real continuando a viver como quem tem dinheiro; há damas que caçam o amante como quem caça borboletas e meninas que caçam maridos como quem caça a raposa. Os rapazes, alguns parecem millionarios, numa edade em que poderiam jogar a pelota, e outros não têm profissão no momento em que é preciso trabalhar.
E de que vivem?
Os que parecem ricos?
Os outros.
Do credito dos que parecem ricos, do nome das familias, da complacencia geral. São esses rapazes encantadores, bem lavados, bem vestidos, bem perfumados, que não renunciam a nenhum prazer, devem a todos, e cometteriam crimes para beber champagne nos clubs, flirtar, ter amantes, gosar—se não tivessem medo ao codigo. Toda essa gente accumula despeitos contra os que encontram a felicidade. Hortencia defende-se do ataque ha muito tempo, á espera do Lohengrin. Tape os ouvidos e fujam.
O senhor é fulminante.
Digo apenas o que todos sabem. Sou banal! {{small|(Mudando de tom.) Mas estas flores! As flores anunciam sempre o desejo que tem a gente de ser ou parecer feliz. Estas são mais denunciadoras que uma declaração.
Entretanto, só agora percebeu.
É que eu só comprehendo logo o que não é possivel. Entremos, meu caro José, a conversar com essas damas.
Oh! Aqui? Porque não entram?
Acabamos de chegar (apertos de mão).
Bem?
Pessimamente bem.
Fala da cançoneta ou da sua saude?
De ambas.
Pois perdeu em não entrar. Fizeram um puzzle tout à fait réussi.
Quem acertou mais?
A Renata d’Azambuja. {{small|(Ao creado Braz que entra com o aparelho do chá.) Ponha o samovar na mesa do centro. Bem. Leve os chapeos dos senhores. {{small|(Braz executa as ordense e sae.) É preciso repetir todo o dia a mesma coisa. Os creados são cada vez menos intelligentes.
A razão é simples : os intelligentes mudaram de profissão.
Deram em vagabundos?
Não, deram em patrões. A profissão de patrão ainda é a menos desacreditada das profissões, mesmo quando não paga. Um creado deve desejar o que parece mais serio.
Onde está o seu juízo, barão?
No bolso, D. Maria. O juizo traz a gente no bolso para não encommodar os conhecidos.
Então, peço-lhe que o mostre agora. Temos no chá, meninas e velhas rabujentas.
Que me diz? E a senhora ainda não perdeu o seu juizo em tão respeitavel companhia?
Não perdi e vou chamal-as até.
Parece não ser preciso.
De facto. Entram Hortencia de Vargas, D. Euphrosina Gomensoro, Baby Gomensoro, Carlota Paes, Julieta Gomes, Carlos Villar, Gastão Buarque, Deputado Guedes.
Essas pessoas vão entrando aos poucos, saidas do salão, a conversar com animação. Apertos de mão. Beija-mão. Trocam-se as primeiras phrases, ao sentarem-se segundo as sympathias. Os dois creados fazem discretamente o serviço. Ha nos gestos de Carlos uma permanente inquietação.
{{c|
Como vae o meu caro amigo?
Receioso de perturbar a bella companhia.
Ficamos de fóra a ouvir.
{{c|
Oh! Dr. Fereira!
O José, a Maria e eu. Um quadro romantico : á beira do palacio, na estrada deserta, a Mocidade, a velhice e a Mulher ouviam a canção do prazer.
Neste caso a mulher e tambem a velhice.
Nunca. A mulher está sempre para aquem da idade.
Dr. Fereira, bons olhos o vejam.
Minha senhora, encantado.
Então ouviu a cançoneta?
Logo vi que era a senhora.
Minha filha tem o mau vezo de cantar cançonetas.
Que tem isso de mal?
Não foi a educação que lhe dei. No meu tempo as meninas não cantavam cançonetas.
E lucraram muito com isso!
Eu gostei immenso. Tem até philosophia.
Não minta. Imaginem que era o Fiorelli o acompanhador. Fiorelli só gosta de acompanhar musicas aborrecidas : a aria do suicidio da Gioconda, o dueto da Tosca. A cada passo atrapalhava-se. Ri todo o tempo.
Mademoiselle canta com grande expressão. Eu preferiria comtudo que deixasse o genero francez.
Porque?
Como havia de ser se ninguem mais comprehende o portuguez?
Só se cantasse em inglez.
Perdão. Apesar da invasão das linguas estrangeiras ainda ha muita gente que resiste.
Sou da sua opinião.
Mas que gente é essa?
Onde encontral-a? Na Camara, no Senado, na Academia? (Risos, conversa.)
{{c| {{sc2| (a José baixo) Veio tão tarde...
Ha tanta gente, hoje...
{{c|
Que importam os outros?
Com que então teremos o deputado Guedes batendo-se a favor da lingua portuguesa na Camara?
Será de certo o unico. Vae ser uma tremenda campanha. Os seus collegas fazem o contrário batem-se sem treguas contra a grammatica. É a lucta no proprio reducto.
Os senhores esquecem que eu sou apenas candidato ao reconhecimento.
Mas foi eleito?
A eleição é uma formalidade sem importancia.
Está enganado. No meu club é definitiva.
Mas no club da politica depende do banqueiro.
D. Maria...
Deixe de olhar assim Hortencia?
Eu?
Está a enegrecer uma vida digna de melhor sorte.
Mas são todos contra mim!
A seu favor, Carlos. Que interesse tem em aborrecer Hortencia!
Veja como conversa com o riquissimo Fereira.
Você perde a cabeça. Não seja infantil.
Onde se senta?
Sente-se do outro lado.
Então Gastão como vamos de sport?
Cada vez melhor senhor barão. Não me viu domingo no team de foot ball?
Francamente? É extraordinário o que este sport tem feito de bem aos rapazes. Dá-me a apparencia de que não faz exercicio.
As apparencias enganam.
Talvez não... O exercicio é o sport que se pratica para a propria hygiene. E o sport é o exercicio que se faz para dar que falar da gente. O senhor ao que parece só faz sport.
Se sport é isso, então barão não ha quem não seja sportivo agora.
Todos mais ou menos tocam para o poste do vencedor.
Eu gosto immenso de sport.
E faz algum?
Nenhum.
Imagine o Gastão se o imitasse com que corpo estaria.
Estes bolos são muitos bons. Como os faz D. Hortencia?
Os bolos? Oh! isso é com a tia, Euphrosina.
Mandamol-os buscar fóra.
Mamãe com ideias de bolos feitos em casa!
Eu não sei nem os de palmatoria.
Que coisa pouco chic.
Clarissimo. A única differença entre a sociedade d’agora e a que representa D. Euphrosina, é que a de D. Euphrosina fazia os bolos em casa e a actual come todos os bolos sem saber onde são feitos.
É um progresso.
Ou pelo menos um augmento de despesa.
E tambem a origem da neurasthenia. Os bolos fazem a dispepsia, a dispepsia a neurasthenia, a neurasthenia a estravagancia. Emfim, procurando bem, o mal fundamental está em não saber fazer bolos em casa. Mas tomemos o chá. O amor é como o chá, dizia Ibsen.
Por isso é que tantas senhoras gostam de chá.
Porque?
Para mudar de chicara, sempre que podem.
Não me canço nunca de admirar este panorama do terraço de Hortencia. Não acha bonito dr. Guedes!
Muito. Eu gosto do mar.
E eu!
E Hortencia?
Mais do que elles, acredite.
É impossivel deixar de ter uma grande paixão pelo mar. Principalmente de terra, o mar é um suggestionador poderoso. Basta olhar para o mar para cair uma pessoa no largo dominio das ideias vagas. E nada mais agradavel do que sonhar sentado num rochedo, como os poetas das oliographias romanticas, ou mesmo na areia como faz a maioria dos contemplativos, no Leme. Um sujeito sem ideias, até sem ter tido a ideia de ter ideias, chega á beira da praia, olha o mar e tem logo meia duzia de pensamentos. É fatal. O mar é um laboratorio de imaginação e é por isso que eu explico a superprodução de poetas nacionaes pela extensão das costas...
Tia, manda servir o chá aos que ficaram no salão.
(D. Maria vae até a porta do salão).
Muita gente?
Uma meza de bridge e outra de pocker.
Á meza do pocker, sempre a ganhar aquelle insuportavel senhor Jesuino.
Mas o senhor Jesuino é, segundo me disseram seu parente afastado.
Infelizmente!
E é muito rico?
É um parente afastado que quanto mais rico fica mais se afasta.
Como todos os parentes ricos.
Acho o gracejo, menina de muito mau gosto...
São opiniões. Mamãe tem sempre opiniões que eu não tenho.
Parece-me nervosa, Hortencia.
Realmente, um pouco.
Tenha calma e prudencia.
Vê o que se passa?
Talvez não tenha importancia.
Preciso do seu apoio, meu amigo.
Pode contar com elle.
Que conversam vocês?
A apostar que conspiram contra a tranquillidade de alguem?
Estamos a ver por quem se decide o Gastão. Se pela Julieta se pela Baby.
É uma pilheria sem graça. Nesses casos eu é que decido e por ti é que não me decideria nunca.
Muita pena.
A não ser que o barão quizesse...
(Carlos afasta-se.)
Está hoje um pouco pallida D. Carlota.
Palavra? Diga-me então alguma coisa que me faça corar.
Não posso. D. Maria recommendou-me que tivesse juizo.
Mas as suas inconveniencias são sempre interessantes.
Reputação atroz!
Parece-me que D. Maria foi de uma delicadeza...
Ao contrario. Coopera conscientemente para me crear uma reputação. A reputação é a opinião alheia que só nos cria embaraços, mesmo quando é lisongeira. Todos nós somos graças a ella, victimas uns dos outros. Só um homem cumpriu o seu dever na terra porque ainda ignorava a reputação.
Quem?
Adão! Horas depois tinha uma tal reputação que não fez mais nada digno de nota. E depois de Adão, D. Carlota, a reputação é que nos faz.
Não apoiado.
Ninguém concorda com o barão.
É um monstro!
Que diz Hortencia?
Eu nunca sou da opinião do barão.
Mas no dia em que eu tiver a vossa opinião, deixo de ter a vossa sympathia. O accordo foi sempre a tregoa da antipathia...
Pelo menos numa coisa, o senhor barão concordará comnosco. Está uma tarde linda!
De facto. Uma belleza. Tambem esta Tijuca é um encanto.
Um tanto perigoso para as familias agora.
Como assim?
Muito mal frequentada á noite.
Gatunos?
Qual! O Dr. Guedes refere-se aos automoveis, ás ceias em más companhias.
Cocottes! Ceias! Automoveis? Horror!
Como deve ser interessante!
Menina!
Que tem de mal? Eu até agora só falei com uma cocotte na minha vida. Mas gostei muito. Era uma senhora seria.
Oh! Qual! Não! Não!
Palavra. Foi no carnaval.
Menina, não conte isso.
Que tem mamãe, se já passou tanto tempo? D. Jesuina Praxedes com varias outras senhoras nossas amigas teve a ideia de passar uns « trotes » e de entrar nos clubes e bailes, onde os maridos pintam o sete. Mas precisavamos de um guia e D. Jesuina não queria homem. Então Carlota Pais lembrou a Argentina.
Eu, não!
Você sim. Você tinha lido o nome della nos jornaes e D. Jesuina exclamou até : uma mulher que tem vinte amantes e trezentos contos é de confiança...
Oh! Oh!
Baby, você está dizendo inconveniencias.
Mas se não tem nada de mal; D. Hortencia?
E a Argentina foi?
Foram propor o caso ao palacete que ela habita. Ella custou muito a aceitar. Mas afinal accedeu. Sahimos todos de dominó preto fazendo « A Mão Negra ». Como nos divertimos! Pois quando uma de nós brincava de mais, a Argentina dizia ! ninas tengan modos! e ferrava-nos um beliscão. Parecia mais uma professora.
Caspité!
Para mostrar como a moral é uma coisa, de que fazemos questão—nos outros...
Estão a rir? Pois a unica que não foi reconhecida foi a Argentina...
Como o nosso caro Guedes. Sabidamente eleito e não reconhecido!
Essa brincadeira tem feito o successo da estação.
E a Argentina?
Vae casar. Li os proclamas.
Que pena!
Acha?
Acho!
{{c| Madame Vargas (aos outros, nervosa) Começa a cair a noite. Se entrassemos?
Eu parte. Tenho hoje a Opera.
Eu prefiro descer ao jardim. Gastão acompanha-me.
Olha o sereno, minha filha. (Baby e Gastão saem para o jardim).
Não quero que partem sem ouvir um pouco de musica. É tão cedo ainda. Se fossemos ver os jogadores? Dr. Fereira o seu braço. (baixo). Hoje á noite no theatro.
Muito obrigado.
Movimento geral. Vão saindo aos poucos, animada conversa. Ficam D. Maria e Carlos.
Bem. Vou-me embora.
Já devia ter feito isso.
A senhora viu o convite, a provocação com que Hortencia pediu o braço ao dr. Fereira?
Carlos, Você é desolador. Leva a contrariar-se, contrariando os outros. Hortencia estava irritadissima.
Não era por mim.
Não, era por mim.
E se eu lhe falasse D. Maria?
Se você não é doido, faz o possivel por parecer. Para quê falar a Hortencia?
Porque ella está zangada.
Vá-se embora, Carlos, É melhor.
A senhora sabe tão bem que eu não vou! Não vou enquanto não falar com Hortencia. Não me olhe assim. É cá uma coisa.
Paixão ou pedido?
É cá uma coisa que me deu. Hortencia é outra. Eu não vivo bem desde que apareceu esse homem. É idiota, bem sei, mas não posso. Se a senhora soubesse como me encommoda! Hoje não me continha. Hortencia zangou-se. Vá chamal-a. Um minutinho. Estão a conversar. Não repararão. Diga-lhe que venha.
E se eu não disser?
Julgo-o capaz de mais. Vamos ver. (ao entrar no salão). Ainda não se decidiu esse bridge? (rumor dentro. Carlos encosta-se ao balaustre. Una minuto. Depois apparece Mme Vargas.)
Descance D. Euphrosina. Vou vel-os (alto). Oh! senhor Carlos.
Retiro-me D. Hortencia. A sua festa esteve encantadora.
{{c| Madame Vargas (baixo) Que me queres tu?
A bôas horas!
Temos alguma nova desagradavel?
Não.
Ora temos. Devemos ter. O ar de censura, a impertinencia, a frase de duvida...
Deve ser impressão sua. Anda nervosa demais!
E não tenho razão?
Sei lá!
Levas-te a vigiar-me a tarde inteira.
Talvez.
Só não viu quem não quiz.
Eu, por exemplo por que tinha de a ver a vigiar-me a mim.
Não me enerves, Carlos. Precisamos de tanta prudencia. Tu bem sabes que não deves proceder assim!
Mas não faço nada, olho quando muito.
Compromettes-me de um modo perigoso. Todos reparam; hoje ninguem duvida!
Salvo os que a viram comprometter-se com outro.
Eu?
Nada de surpresas. Com o Fereira.
Com o José?
Com o José? Como as coisas caminham! Já o trata por José...
Mas acreditas que depois desta loucura comtigo, eu arrisque outra loucura?
Porque não? Nada de ilusões. É a vida. Preciso saber ao justo o gráo dos seus sentimentos por mim.
Se fazes o possivel para me desgostar!
Parece-lhe?
Tu é que te mostras mudar. Tomaste-me de assalto, creio que só para me fazer soffrer! Não dou um passo, não faço um gesto, que não te sinta a chamar-me, a dominar-me, a impor-me as tuas mais loucas extravagancias.
É que não gostei nunca de mulher nenhuma como de ti.
Meu Deus!
Deploras!
Sinto como é superior essa frase d’amor...
Fazes ironia ás minhas frases! Realmente. Não devem ter literatura como as do Fereira.
Por que falas assim, Carlos? Agora, a cada instante volta o José á discussão. Tem tão pouca importancia.
Tem tão pouca importancia o quê? O José? Eu? A minha loucura? Talvez tudo isso junto. Ninguem pode advinhar a intenção das tuas palavras. Continuas a mesma, a fazer soffrer, a torturar, a desgraçar...
Oh! Não me fales de fazer soffrer! É tempo de acabar com essa legenda. E tu bastas para redimir as maiores faltas!
Queres dizer que sou eu quem te tortura?
Vamos a saber. Carlos, que queres?
Eu?
Mandaste chamar-me e não posso demorar-me. Que queres?
Mas porque esses ares de inimiga?
Pelo amor de Deus, dize o que desejas.
Desejo apenas que expliques claramente a situação.
Que situação?
A nossa. Não terás coragem de acabar logo com isso, e dizer francamente : aquelle idiota comvem-me, tem dinheiro. Ponha-se fóra você!
Carlos! Estás provocando uma scena perigosa.
Tu gostas delle sim, tu gostas. Nada de subterfugios. Nada de medo. Sim. Tens a certeza de que eu perco a cabeça, e adias. Mas eu te forçarei.
Tu?
Eu mesmo. Eu mesmo Hortencia. Porque cada vez mais não posso viver senão pensando em ti, porque cada vez mais quero ter a certeza. Vem cá. Escuta (toma-lhe a mão).
Deixa-me (solta-se).
Não é possivel que em trez mezes tenha acabado um amor tão grande. Lembraste d’aquelle teu bilhete, o unico que me escreveste? Já o li tanta vez que até o decorei. « Espero-o hoje á noite. Deus perdôe a minha loucura. Venha à 1 hora ». Essa loucura passou? Não podia ter passado! Nunca mais me escreveste, mas as loucuras não acabam de repente. E estas scenas que reprovas, que te contrariam, estes ciumes são do amor que te tenho. É sempre assim quando a gente gosta.
Em que sociedade?
Em todas. Em amor somos sempre os mesmos. Quando a gente ama não ha differenças não. Convence-te. Mas se queres com isso fazer allusões aos clubs, aos meus habitos antigos, enganas-te. A minha vida de alegria passou. Desde que te amei, nunca mais voltei a esses logares. Só a ti amo e não quero, não quero que outro te tome. Só por isso, só por isso te chamei, só por isso endoideço.
Mas tu me falas como se eu fosse qualquer. Tu duvidas de mim. Não te bastou o que fiz por ti?
Perdôa. É a doidice, é sem querer. Devo-te parecer muito mau?
Um pouco.
Que queres? Bem procuro conter-me, mas não posso. Sei que não tenho direitos e quanto mais te tenho mais receio tenho de perder-te.
E fazes-me soffrer.
É tua a culpa. Sim. Tratas-me mal, não me vês deante dos outros. Principalmente quando apparece esse moço rico, — que apparece agora todos os dias.
Porque te fazes inconveniente! Ah! Carlos, não me contraries. Sabes lá como vivo neste meio em que se espia com volupia a falta alheia. Se soubesses! Estás estragando a minha vida. É só por isso, ouves é só por isso que me desgosto.
Hortencia!
Sim, sim. A nossa loucura deve ficar secreta. Dizes que me amas?
Duvidas?
Não, mas reflito. Ignoras por acaso a nossa situação? Sabes tão bem! Não podes casar comigo. Nem queres.
Tu é que não quererias.
Não é possível. Nem tu, nem eu podemos — eu falha, cada vez mais falha de recursos. Não é justo que me queiras exhibir como tua amante, para que eu veja todas as portas fechadas. Não é justo, nem digno.
A tua friesa a reflectir na loucura! Eu não faço tal, eu não quero nada!
Reflito como a victima que se defende. E tu fazes tudo isso talvez sem querer, mas fazes.
Estás arrependida do nosso amor, Hortencia!
Tu, insistindo num ponto que conheces é que me fazes arrepender. Tu é que me apontas o arrependimento.
Não, não! Faço tudo sem sentir, sem querer. Tens razão, tens muita razão. Perdôa. Não posso casar, porque não tenho nem situação, nem dinheiro. Mas sabes? É instinctivo. Quando te vejo com outros, que te cubiçam, que te acham bella, perco a cabeça, desconfio. Sou capaz de tudo.
Mas não tens razão de desconfiar.
E se casares?
Se eu casar?
Sim.
Creio que não vaes proibir que eu me case?
Só pela maneira porque falas, vejo a tua indifferença.
Sou indifferente e dei-te o que não dei a nenhum outro homem, e faço conscientemente a loucura de te amar, e recebo-te aqui com risco de perder-me. Sou indiferente e entrego-me dou-me. Eu!
Hortencia!
Sou indiferente, e sou o teu objecto, a tua vibração e ando no medo constante de ver que um dia acabas com tudo, e confio-te aquillo que uma mulher preza mais que o corpo : a propria reputação. Tens razão. E porque? Porque queres estragar aos olhos de todos, egoistamente, por vaidade, a minha salvação!
Hortencia, não.
Sabes as coisas, não ignoras nada da minha vida. Ainda hontem á noite eu t’o dizia pela millesima vez.
Ainda hontem...
Ainda ontem. Eu t’o expliquei claramente. Não ha outra solução. Não é possivel. O verdadeiro amor é aquelle que se sujeita. Deante desse rapaz...
Não! Não! não me fales nelle, ao recordar a nossa noite d’hontem. Dou-te razão, acceito a frieza do teu bom senso, faço o que quizeres! Mas não me falles nelle.
Mas se és tu que o lembras?
Oh! Hortensia, odeio-o tanto!
Para que? Por que? Não desejo ouvir essas palavras. Nunca te falei delle, não te fallo. És injusto. E não te falarei nunca mais.
Mesmo que venha a ocupar na tua vida um grande logar?
Na minha vida só occupa logar quem eu amo.
E vê tu. Eu sinto que sou covarde, que sou um pobre diabo. Quero reagir, quero ser homem, gritar. E deante de ti não sou mais nada. Hei de fazer o que tu quizeres!...
Chamas a isso fazer o que eu quero!
Sempre, sempre, irresistivelmente. O amor faz outros os homens. O Carlos que tu conheces é um Carlos que ninguem, ouviste? ninguém, nem minha mãe conhece.
É uma creancice...
O amor fez-me criança, assim tolo, assim nervoso. Quero-te tanto porque o meu desejo é muito maior que o teu. Mas consolo-me porque aos outros ainda queres menos. Não? Não? (approxima-se). Dize. Pois não? Ainda agora. Quanta crueldade! Quanta frieza! Quanto bom senso! E emquanto tu falas, eu sinto apenas o desejo, um desejo immenso que augmenta. Estás tão bonita! este teu vestido... Este teu cabello... Hortencia! Perdôa. Escuta. Se hoje fosse como hontem?
Oh!
Eu esqueço tudo, eu farei o que quizeres. Se fosse como hontem, uma noite encantada, a noite em que adormeceste todas as minhas duvidas!
Não! Carlos. Preciso voltar ao salão. Não insistas.
Pareço-te muito miseravel, não é?
Não. Sabia que havias de terminar por isso. Ha um semana fazes assim. Ha uma semana exiges e me atormentas! Estou fatigadissima.
Mas então está tudo acabado entre nós? Queres deixar-me? Serias tu a primeira mulher que me abandonasse. Não!
Digo-te apenas que hoje não. Estou cançada.
Mas dizes sempre não.
E ainda hontem cedi!
Quero hoje. Quero ainda hoje. Hortencia, concede.
Como me atormentas, Carlos!
Dize de bôa vontade : até logo.
Oh! Não!
Hortencia, não sejas assim. Eu não posso. Vem cá (de repente na exaltação do desejo). Se não me deres um beijo, faço um escandalo.
Estas doido?
Completamente. Faço o escandalo.
Deixa para outro dia! Hoje não.
Assim por assim, é teu desejo acabar, amar o outro. Vê-se. Não queres porque já amas outro. Mas eu grito, faço escandalo, e verás depois.
Carlos, por piedade.
Dá-me o beijo, então (agarra-a).
Aqui? Aqui?
Um beijo que seja a promessa para logo mais (ouve-se o piano tocar e uma larga voz abarytonada que canta o madrigal de Nepomuceno).
Porque é que dizes, meu gentil thesouro
Que a vida inteira has de descer do amor?
Ó que peccado, que peccado de ouro
Falar do pólo á beira do Equador.
Dizes que tens o coração deserto
Dos homens todos sem piedade zombas
Toma sentido que o milhafre experto
Quando tem fome atira o laço as pombas.
Não é nada; o Jorge deixou o bridge para cantar o eterno madrigal á Carlota. Ninguem nos vê. Não resistas. É mais uma noite, só uma noite mais. Eu quero. Depois esquecemos. Prometto! Depois esquecemos. Anda, dá.
Carlos!
Dá-me o beijo!
Mas é mau. É mau. Que horror! Não! Não!
Mas dá-m’o duma vez!
O que quizeres! O que quizeres! Eu não me pertenço mais. Sou tua. Continuo a ser tua!
Sim minha!