A Bella Madame Vargas/II
ACTO SEGUNDO
No dia seguinte, ás 2 horas da tarde.
É o salão de musica. Pela janella aberta, vê-se a varanda e um trecho do esplendido panorama que é o encanto do terraço. Um piano de cauda ao fundo, com uma colxa de seda vermelha. Jarrão da China entre a janella e a porta. Mobilia de laca vermelha e palha doirada. A direita, no primeiro plano, um bibelot com espelho, juncto á porta de communicação com o interior. As paredes são forradas de tapeçaria d’Araccio em lilaz e prata velha, motivo : as nove Musas.
Estão em scena Fiorelli, e D. Maria que vem entrando.
La signora?
Doente.
Como?
Uma leve indisposição. Desde hontem, veio-lhe a migraine.
Com este lindo dia de primavera?
Infelizmente, não escolhemos o dia para adoecer. Mas sente-se Fiorelli, descance.
E la signora não me mandou dizer nada?
Não. Creio mesmo que não se lembrou de você. Comprehende, uma dôr de cabeça. Mas sente-se, Fiorelli, ao menos emquanto espera conducção.
Com que então, sempre bem senhora D. Maria?
Eu? Como Deus é servido. Cuidando da vida dos outros desde que a minha já vae no epilogo.
Seriamente!
Este Fiorelli! Sempre distrahido! Sim, seriamente—séria e tristemente. Mas fale-me de si. Que fez hontem á noite!
Estive no Lyrico com a familia Gomes Pedreira. Cantavam a Bohemia.
Pobre Fiorelli!
Bella musica, um tanto renitente, mas bella musica (ouve-se o timbre elétrico rio interior). Mas chamam. É de certo, la signora. Senza encommodo (subitamente mais timido). Quando será então? Eu preciso tanto!
Mando-lh’o amanhã.
Veramente?
Sem falta.
Oh! Grazzie! Grazzie! (sai).
Pobre Fiorelli!
Foi-se?
Com a resignação de sempre. Está convencido de que o mando pagar amanhã. Devemos ao Fiorelli, cinco mezes de tocadas et lições.
Outros devem mais. Tambem tu! Lembrar-me tal coisa, na situação em que estou!
Situação que não é d’hoje...
Ainda o dizes!
E que peiora a cada dia, aliás. Hontem o copeiro despediu-se antes de jantar. Foi preciso uma grande tactica para convençel-o de que devia servir á meza. Dei-lhe até o laço na gravata com ar de quem o faz pelo menos commandante de uma brigada estrategica.
E ainda brincas!
Para que desanimar? Tenho fé em ti. A nossa situação é desesperadora. Tu mesmo não sabes quanto deves. Devemos a todos os fornecedores, aos criados e ainda por cima fazemos mais dividas, com o mesmo louco trem de vida. É delicado. Mas seria possivel parar agora, fazer leilão, ir morar para uma casa qualquer? Que prazer teriam os teus inimigos, isto é, a sociedade inteira! A bella Hortencia Vargas, a viuva do diplomata, a orgulhosa Hortencia que regeita as melhores propostas, descendo do seu pedestal!
Nem todos pensam assim.
A maioria não sabe que não temos mais dinheiro e quer ver o fim. É humano. Que fazer? Resistir. Esperar. Tenho virado um pouco financeira e devo dizer-te que, exgotados os dinheiros da hypotheca da casa, começo a liquidar as tuas joias. Belfort dá-me conselhos e já acceitou duas letras minhas.
Tia!
Elle é tão delicado que é impossivel recusar. E ha um anno vivemos nesta despesa de grão duque sem rendimento! Mas tenho fé. Resolves agora tudo.
Resolvo?
Então o José? O casamento é a unica solução. Que esperavas tu? Um casamento rico. Vem-te rico, joven e apaixonado.
Sim. É rico, é millionário, é moço, ama-me. Seria minha felicidade. Ama-me...
Mas é a tua felicidade.
Como, tia?
Como? Então não acceitaste?
Acceitei sim, acceitei. Não foi só pela questão de dinheiro. Desde que José tão humildemente me ofereceu a sua mão de esposo, uma immensa e submissa gratidão me foi enchendo a alma. Acceitei. Mas querer-me elle e desejar eu esse enlace já, é o menos!
Não pode deixar de ser já. A demora é o desastre.
A quem o dizes! Elle quer, eu quero. Mas ha de outro lado as insinuações, as cartas anonymas, os despeitos, tudo quanto tem o rotulo da sociedade (levanta-se). E ha, meu Deus, e ha, para suprema infelicidade, Carlos.
Não se convence?
Não se convence. Ao contrário. Ameaça fazer um escandalo, ameaça contar tudo.
Mas é infame.
Infame, fui eu. Infame que me entreguei, após tanto tempo de honestidade a um rapaz sem escrupulos. É louco? Mais louca sou eu que me deixei levar, arrastar por elle. Não me olhes assim. Eu estava só, só, sem ter ninguem que me amasse. Agora, não. Agora sinto que não é possivel mais, que ha uma grande, oh! enorme differença entre os dois. E quero realisar minha vida : quero e hei-de realisar.
Realisarás, estou certa. Mas que vaes fazer?
Imagina o que é preciso fazer! Que esforço, que contenção de nervos. Ha oito dias, Carlos desconfiou; sentiu que José seria mais do que um partido. O seu ciume as suas scenas! Augmentam, hora a hora! Tia, se Carlos tiver a certeza do pedido de casamento, estou perdida. E elle desconfia.
Não.
Mais do que isso. Tem quasi a certeza. Está louco. Disse-m’o hontem no chá.
E cometteste a imprudencia de recebel-o á noite.
Viste?
Não vi, mas tinha a certeza. Não fosse eu mulher! A mulher só tem um recurso contra o ciume : entregar-se. Esquece que ainda complica a vida.
Sim, sim. Foi peior. Não imaginas que noite, que pavorosa noite de soffrimento. A insistencia sua, a terrivel insistencia, o nome do outro nos seus labios que me beijavam com brutalidade! Tinha impetos de escorraçal-o e estreitava-o mais. É preciso o occultar, occultar. No dia que souber, conta tudo ao José. Não dormi. Só há um recurso fugir, casar fóra d’aqui, ver-me livre delle. Depois José defender-me-á!
Minha pobre Hortencia!
E tenho de fingir, continuar a fingir sem que ninguem me ajude. Tia, já não se trata de dinheiro, trata-se da minha honra para um homem que me respeita a ponto de me offerecer sua mão.
Porque não falas a Belfort?
Elle vem hoje. Prometteu-me hontem. Só elle que sabe de tudo e é bom e poderá ajudar-me {{small|(apparece o creado)
O dr. José Fereira.
Mande entrar (o creado sae). Deixa-nos sós, tia. Vê que não nos interrompam. A todo o instante penso no outro. Como eu teria vontade de dizer a este toda a verdade, e como é impossivel!
Seja bem vindo com as suas lindas flores!
Como todos os dias as flores são suas.
{{c| Madame Vargas (vae por as flores no vaso sobre o piano) Merci. Mas sabe que é escandaloso? Quem o vir chegar todo dia com um ramo de rosas o que não dirá?
Que importa, se é para bom fim!
E a nossa combinação?
O segredo? É o de Polichinello. Sabe que falei hontem á mamã?
Ah!
Era apenas uma formalidade, mas não podia deixar de a cumprir.
Fez bem. Que disse ella?
Ficou contente, muito contente. Tudo que parece ser a minha felicidade é de resto sempre a vontade de mamã. Sou filho unico e ella é só. Imagine que pensa em netos! Mas conhecia-a de vista e acha-a linda. Sabe que causa uma impressão de rainha?
Lisongeiro!
A mamã é uma senhora muito altiva, de costumes rigidos, bem a senhora antiga, esposa de fazendeiro, achando que ninguem pode ser superior aos seus. Sabe entretanto a sua frase? Disse-me a sorrir : « Aquella senhora tão bonita gostou de ti José? »
Oh! José!
Repito o que disse a mamã. E olhe que para falar francamente, de vez em quando ponho-me a pensar e indago a mim mesmo : como seria isso?
Senhor Dr. José Fereira, se viesse sentar-se em vez de dizer tolices?
É a verdade. Quando ha dois mezes a vi no theatro tive uma tão esmagadora impressão. O coração se fez pequeno, pequeno. Já me disseram que só se fica assim deante das pessoas que nos vão dar um grande bem ou mal irremediavel. Lembra-se? Ao entrar no seu camarote pelo braço do Guedes, não sabia o que dizer. O coração advinhava e fazia-se pequeno com medo.
Felizmente, o medo durou pouco.
Porque logo se fez amor. Mas nem calcula como esse seu ar tão superior, esse seu ar de imperatriz faz os outros se julgarem menores. Eu tremo sempre de a perder...
Ilusão! A imperatriz já o vira na platéa e indagava : quem será aquelle rapaz diverso dos outros que me olha na quinta fila?
Hortencia!
É bom gostar um pouco dos outros!
Amo-a tanto, Hortencia que bem o sinto, o meu amor ha de fazel-a feliz.
José! Conhece-me. Devem lhe ter dito tanto mal de mim! A fria Hortencia, à que despreza todos os pretendentes! Sim! É um pouco verdade. Nunca amei. Entretanto, não sei porquê, nesta minha vida, neste inferno de festas, de alegrias que são amargores e amargores que não são alegrias, só uma pessoa dá-me uma impressão de socego, de paz d’alma, de apoio, de satisfação completa—você. Quando você está, sinto-me tão calma, tão descansada, tão bem. É fé—a fé de que encontrei emfim o meu amigo, o meu protector, o meu verdadeiro esposo. E o meu coração sente-se então muito largo, muito largo, e eu tenho uma grande vontade de chorar.
É bom falar-me assim, Hortencia. Se eu quizesse dizer-lhe o que é o meu amor, dir-lhe-ia que desejava fazel-o forte e macio como de aço coberto de velludo, para defender sem a maguar. Porque é superior ás outras, porque tem a alma tão alta e a belleza tão altiva, é que precisa de quem lhe abra o caminho, de quem limpe a estrada da pedra e da herva damninha, de quem sob os seus passos estenda o arminho e as rosas. Eu amo-a assim, Hortencia. Muito, muito. Se não me désse attenção, se não me quizesse ver, teria desapparecido sem a criminar. Levaria commigo apenas a magua da minha inferioridade, e não teria uma queixa e não diria nada. Sabendo que me acceita, que me agasalha, sinto que a vida se completa e que a sorte trazendo-me a felicidade e fazendo-me bom, completou que a serie dos seus bens, dando-me para conduzir a estrella que de longe eu seguia...
José! José! Eu nunca tive quem me fallasse assim. Eu nunca tive. Se tudo entre nós tivesse d’acabar, poderia levar a certeza de uma recordação indelevel, a certeza da revelação. É tão delicado e tão bom. Dá-me flores e o seu amor. Quantos me offereceram isso antes, eu recusei. Ofereciam? Sei lá! Queriam. É você o unico que offerta, e tão bem que o perfume da sua alma entontece, e que uma grande vontade de ser bôa faz da pobre Hortencia alguem que só no mundo o quer. Mas é sonho. Tudo quanto é muito bom não pode ser verdade.
Porque? Tenho medo d’aqui, tenho medo de tudo. Emquanto não o conhecia, José emquanto a minha vida era luctar e resistir nesta sociedade de invejas, de intrigantes e de egoistas, era forte e queria. Tinha de ser. Deante de mim o horisonte se definia sempre igual e pardacento. Agora não. Agora tenho medo, tenho medo de tudo. A cada passo penso que vão destruir a minha felicidade.
Mas quem?
Esta vida! Esta gente!
Mas se eu estou a seu lado?
O meu desejo era um só—partir. Partir comsigo.
Já agora está assentado o nosso casamento.
Seria tão bom que não fosse aqui! Escute José. É um estado de nervos, um receio vago inesplicavel. Eu não queria que fosse aqui. Partir. Partir. Levar para longe dos curiosos a nossa felicidade e de lá então annunciar.
Sempre a mesma ideia.
Guardar o segredo, o segredo immenso do meu primeiro amor.
Não quer que ninguem o saiba?
O meu desejo era que o mundo o ignorasse, que fosse depois como uma sorpreza irrevogavel.
Eu, ao contrario desejaria que todos soubessem.
Vaidoso!
Orgulhoso! Ando tão alegre, tão cheio de felicidade que só tenho o desejo de irradiar pelos que encontro o meu prazer. O segredo sufoca-me.
Guarda-o por mim, José, guarda-o. Há tanta gente que não suportaria a nossa alegria! Procurariam envenenar os nossos instantes de prazer, falando, inventando, calumniando. Seria o tormento nas reuniões, a curiosidade indiscreta nos theatros—coisa peor, quem sabe...
Que importa a opinião dos outros?
Essa gente, vive comnosco na mais cordial sympathia mas ao perceber a felicidade, é uma raiva que lhes dá de despeito e de inveja.
Dizendo-o a todos, ninguem se atreverá. O mysterio dá-me a impressão de que vamos cometter um crime.
E ha maior crime para os outros de que organizarmos a propria felicidade? Não, José. Como seria bom partir!
Mas parto. Sempre accedi aos seus desejos.
Tu partes num dia, eu parto no outro. Chegamos no mesmo dia. E depois de lá chegar, eu rirei, eu rirei...
Como está nervosa, Hortencia. Nunca a vi tão nervosa como hoje.
É que não posso mais, José. Não posso mais aturar esta gente, esta sociedade. Tudo antes de você. Nada agora. Nem mais um dia—porque um dia é um seculo. Eu iria, partiria se não fosse primeiro.
Mas não é preciso tamanha exaltação. Já tanto me falou no mystério e nessa partida, que estou de ha muito resolvido.
Palavra?
Palavra. Desde que lhe declarei o meu amor, imagina inimigos por todos os cantos. Não é tanto assim! Levei um mez a ouvir o que falavam de si. E o que diziam? Que era insensivel, que era má, que seria incapaz de amar? Vi bem a verdade de tudo isso! De mim o que poderão dizer? nada ou tudo. Que importa se não acredita? Mas é vontade sua. Para que contrariar? Acabemos. Amo-a. Quer partir? Que seja já. Mais depressa casaremos.
José, José!
Mas que nervos! Que nervos, Hortencia!
Hoje é terça. Partiria amanhan?
Como?
Sim, embarcando amanhã, eu seguiria depois d’amanhã noutro paquete, só com a creada. A tia ficaria. Ninguem saberá senão depois de estarmos longe. E tudo se esclarecerá quando dois dias depois os telegrammas disserem o nosso casamento.
Mas é uma fugida.
É.
Dirão, que fugimos juntos.
Que importa?
Mas, Hortencia, é um estado de nervos...
Não, é medo. Medo de ver desfeita a unica illusão da minha vida. Sou só no mundo. Só agora comecei a amar a um ente, quando o soffrimento já me fizera medrosa. Esta sociedade dilacera-me. Emquanto não o conheci—não pensava. Agora cada vez penso mais, cada vez desejo mais. Terá que annunciar uma felicidade a realisar-se. Realisemol-a antes para fazel-a depois conhecida. Para que demorar?
Não me encommoda a opinião alheia. Mas neste caso a maledicência será contra si. Hortencia.
Que importa, se sabe você bem o que é? O meu desejo é impedir o travo da felicidade. Se eu não o amasse José, juro que não lhe pediria isso!
Como é possível negar-lhe alguma cousa? Mas são duas horas. E eu tenho de levar a mãe á cidade. É obrigação. Logo à noite estarei cá.
Ainda ha tempo de partir amanhã?
É uma viagem de nupcias inteiramente nova!
Cada um no seu vapor e antes do casamento! Como vou rir! Como vou rir!
Mas é preciso não ficar assim nervosa… porque então não vou nem mesmo á cidade.
Sim por mim, por mim (pendendo no seu hombro). Nunca imaginará José como lhe quero bem!
Seria dar-me força para querel-a mais—se fosse possivel. Minha querida, sempre tão nervosa!… Até logo.
Volta para dar-me a resposta?
Volto á noite. Tranquillise-se. Já lh’o disse. E juro que parto.
Meu querido! (Acompanha-o até á porta. Fica a dizer-lhe adeus porque José passa pela varanda. Depois tem um grande suspiro, destende os braços. Infinita tristeza na face. Instante. Silêncio. Cae numa cadeira junto a janella, meditando. Entra Belfort.)
Muito bom dia, Hortencia.
Oh! barão.
Como vamos d’hontem?
Como fiquei hontem.
Alguma coisa grave?
Infinitamente Grave. Encontrou José?
Vim do landaulet. Não o vi. Trata-se delle?
Trata-se do drama da minha vida, desta minha desgraçada vida. Não tenho ninguem para desabafar, para me aconselhar num grave momento, a não ser a tia, que é bôa e não tem intelligencia, e o senhor que é intelligente...
Mas não sou bom.
É o melhor dos homens.
Não diga isso. Sabe bem que só pode ser bom para uns o que é mau para outros (desce a ella). Mas como está nervosa. Pobre Hortencia! Que coração o seu! Sabe a que a comparo? A uma flor cujo viço depende de muito cuidado e que jaz para ahi sem esse cuidado á mercê da intemperie. Diga-me. Vae casar sempre?
Barão, sabe toda a minha vida. Nunca lhe occultei nada porque seria inutil. Sabe mesmo antes que lhe digam. Sim. Quero realisar esse casamento. Que pensa delle?
É uma solução, a única mesmo.
Não lhe pergunto a opinião que faz de José. Vejo que o acha melhor do que os outros.
É raro. Bom, nobre, serio, escandalosamente serio. Só não me atrevo a rir da sua inverosimil seriedade para que os outros seriamente não se convençam de que não ha perigo em continuarem patifes.
E pensa como eu desta gente!
Engana-se. Não penso, classifico. No dia em que cada homem serio quizer organisar-se um pouco a maneira de um gabinete de identificação, a sociedade melhorará quasi tanto como o desejam os socialistas. Será apenas o uso intensivo da precaução, — da sciencia da precaução. Mas em tudo isso, minha querida Hortencia, o essencial é não soffrer. Todos nós desejamos não soffrer. E parece que soffre pelo menos uma grande preocupação. Não é o José? Esse ama-a leal e sinceramente…
É a minha vida.
Só?
Estou incapaz de continuar, estou sim, cançada de soffrer. Todos os recursos de que poderia lançar mão, exgotam-se. Não posso mais. Conhece-me ha muito, barão. Não me queixo nunca. Mas já não posso.
Não se trata mais de luctar. Trata-se de um sentimento.
Sim talvez.
A sua vida tem sido á espera da felicidade.
Com que desejo a espero!
Desta vez está a tel-a nas mãos…
Barão, sou muito infeliz! Nunca fiz mal a ninguém por vontade. E entretanto parece que tudo se revolta contra mim. Sabe o que se passa?
O que não podia deixar de ser, minha bõa Hortencia. Acabou por amar devéras um homem digno que a pediu…
E de repente, quando tenho a felicidade, quando a sinto ao alcance da mão, após uma vida de esforço, de sacrificio, de tormento occulto, o unico momento de loucura, o unico instante de esquecimento desta vida exemplar, ergue-se como o desastre.
Como?
Lembra-me a sua frase, ha dois meses, na legação do Japão : « Há pequenas tolices que são grandes desastres. » O senhor olhava Carlos com uma friesa terrivel. Comprehendi que sabia, que tinha sabido.
A velhice torna infalivel a observação.
Eu entretanto já antes o comprehendera tambem. Abandonara-me a um desvario de momento, a um desejo mais forte, e estava á mercê de uma criatura egoista, secca, brutal, um rapaz que tem a practica da maldade de um velho. Precisava dum consolo. Tive um aro de ferro que me cerra, que me cinge, que me aperta. Antes de poder escapar-lhe, veiu José. É tão diferente!
É não pensar senão no José…
Ah! não posso. Infelizmente não posso. Viu hontem Carlos no chá?
Fazia a scena do ciume insolente.
Desconfiou que ha da minha parte mais do que simples interesse por José. Desconfiou e eu neguei. Neguei por medo, neguei por covardia. Quanto mais eu nego, porem, mais o seu ciume quer, mais ameaça, mais exige. Vivo num tormento. Não posso mais. Se confesso, sinto-o bastante capaz de, por vingança, ir dizer ao outro a minha falta. Se nego, tenho de fingir, de fingir amor por um ente, que não amo, que não amei nunca, que apenas me entonteceu. Como é fatuo, como é mau, como é cruel esse rapaz, meu amigo. Não! É preciso acabar com isso já. Mesmo que não case com o José, não poderei mais suportal-o!
Tenha calma.
Só a um homem como o senhor falo como a mim mesmo. Sou bem uma infeliz. Sabe o meu orgulho de menina, a minha vaidade. Recalquei o desejo, com a ambição de triumphar. Era a bella, a intangivel. Casaria com um grande nome. Ha dez annos — em torno de mim amontoaram-se os desastres. Fugi do amor, e quando esse amor estava para chegar, ainda o desastre, o maior, o insuperavel me fez ruir todas as esperanças. Não quero! não quero, não! É de mais. Porque preciso vencer, porque quero ser digna — porque amo.
Mas não se exalte.
Chegou ao auge, meu amigo. É a tortura, estou nas mãos de Carlos, sabe? inteiramente nas suas mãos. Elle conta tudo se souber que eu caso. É o escandalo. Peior. É o meu fim.
Não fará isso.
Jurou-m’o. E faz. Sei que faz. É para muito mais. Conhece-o?
Vi-o menino.
Tem-me por chic, tem-me por prazer mau, tem-me como se tem uma preza. Dei-lhe o que uma mulher tem de mais caro : a reputação. Como? Não sei! Era a sua impertinencia, era a sua sciencia de tentação. Eu estava tão só, havia tanto tempo… Se podesse ser perdoada, teria apenas para o perdão essa terrivel expiação de todos os momentos, sentindo-o a fingir amor, a gosar, a mandar, a dispôr da minha honra, da minha vida, por vaidade, por egoismo, por maldade.
Mas não fará nada disso.
Não o conhece.
Mais do que supôe. Quer ter confiança em mim?
É a unica pessoa que m’a merece.
Que pretende fazer?
Fingi até agora, fingi com pavor, com a ideia unica de salvar-me. Tudo menos que o José venha a saber. E consegui, consegui tudo. O José embarca amanhan. Eu sigo-o. Se elle não cometter a sua ameaça até amanhan, estou salva!
É apenas uma creancice. E o José embarca?
Pedi-lhe tanto!
Mas, minha querida Hortencia, fugir é levar o tiro pelas costas.
Que fazer? Eu não sei! Já não penso.
É simples. Dizer-lhe tudo.
Nunca!
Carlos é de uma familia honrada : reflectirá.
Não! Não! Quero partir!
Partir é secundário. É preciso apenas partir com a certeza de que esse rapaz não lhe fará uma infamia ao saber do caso.
Fal-a-ha, barão, fal-a-ha!
Eil-o ahi. Vê? Volta! Está continuadamente aqui. Volta a ameaçar-me!
Barão, por quem é!
Deixe-nos sós, Hortencia. É muito grave o que se passa. Sou eu quem lh’o diz. Juro que lhe darei a felicidade. Deixe-me conversar um pouco com elle. Bastará isso. Depois venha falar-lhe.
Não me perca! Não me perca!
Nunca dou um passo sem a certeza do que vou fazer. Vá. (Leva-a com autoridade até a porta, fecha-a. Senta-se numa poltrona). Ha quanto tempo não via um pequeno drama em pleno desenlace. Vai ser realmente delicioso! (recosta-se com indifferença.)
Bom dia, joven Carlos.
Pensava tudo menos encontral-o agora.
Gosa você da mesma surpresa que eu. Tambem não contava.
Madame Vargas?
Acaba de sair d’aqui.
D. Maria?
Ainda não a vi. Anda de certo nos arranjos da casa. Pobre D. Maria?
É uma bôa senhora.
Quem sabe? Não ha ninguem bom nem mau completamente. As pessoas são como as acções. Tomam o aspecto do momento. Ha acções que encaradas sob o prisma da rigorosa moral parecem pouco apreciaveis, e que, entretanto, se pensarmos bem, sem moral, chegam a ser desculpaveis.
Sempre moralista!
E dos melhores, porque comprendo a immoralidade geral sem regeneral-a. Mas como nós divagamos!
Talvez do calor!
É que ambos temos uma preoccupação forte.
O barão tem alguma?
A de querer conversar com você.
É o que fazemos.
Conversar a serio. Em geral conversamos muito para não dizer nada. Escondemos o terrivel dialogo do silencio. Desde que chegou, você pergunta : que me queres tu? E eu respondo : já te direi!
É imaginoso.
É como vê, muito triste. Não negue. O nervosismo impaciente da sua attitude parece trahil-o. Que quer fazer?
Mas… Nada.
Ainda bem. Ha pouco, depois do almoço vim ver Hortencia e soube de coisas muito interessantes.
Ah!
Sente-se aqui. Tenho por Hortencia uma grande amizade, a amizade que se tem pelos que não conseguem realisar a felicidade, tendo todas as condições para obtel-a. Hortencia, não sei se sabe ? continuando depois da morte do marido, a mesma vida de fausto, está sem recursos. Ou antes tem pouco para manter uma vida que é a razão de ser da sua existencia. A apparencia! Como a apparencia leva á ruina neste paiz! Hortencia sossobra porem, sem salvamento. Falta-lhe um auxilio forte, falta-lhe um homem.
Ah!
Claro que com a sua altivez e a sua intangivel honestidade ella não acceitaria nem acceitará nunca auxilios de dinheiro estranho. Qual a solução que você apontaria a nossa pobre amiga, que não sabe ser senão bela e gastadora—para a salvar do cataclismo?
Francamente…
Ella está bem num dilemma, não acha?
Comprehende, esta confidencia imprevista…
Da minha parte, não ha duvida, deve espantal-o. Mas nós conversámos muito. E ha de facto uma solução providencial, a solução que noventa e nove vezes sobre cem accode ás pessoas acostumadas ao luxo, quando o luxo vê que as vae perder. Hortencia, no seu desastre financeiro, conserva a maior dignidade e a maior pureza. Della até agora, nem suspeita. Quer um charuto ?
Obrigado, não fumo.
Inhibe-se com isso de dois prazeres : o de devanear e o de perder a memoria, o que em certos casos é excellente. Mas onde estava eu?
No dilemma.
Não. Um pouco mais adeante. Na Providencia. Creio que o não fatigo.
Ao contrario.
E a Providencia, como sempre providencial, arranjou a solução…
Mas não. Procuro as palavras. Quero apenas fazel-o reflectir.
Ella vae casar, ella acceitou o casamento?
Ella acceitará.
Com elle?
Que importa que seja com elle ou com outro? É a salvação.
E mandou chamal-o para me dizer isso?
Como amigo que a respeita e que deseja a sua felicidade.
Só isso, barão, só esse acto della, mostra que eu tenho um pouco de razão. Não teve coragem de m’o dizer face a face.
Estima por você talvez.
Estima! A ironia dessa palavra! Estima. Dou-me a ella, hypoteco-me a sua vontade, vivo por ella, pensando nella, sonhando nella, num sentimento immenso de dedicação, de amor, escondendo-me, humilhando-me. E quando após trez mezes, ainda é maior o meu sacrificio, casa com outro e manda-me dizer que eu reflicta. Ha de convir que é comico.
Mas para que fingir?
Você engana-se. Não fingiu até agora nem finge. Outra fosse a situação e estou certo de que não a veria soffrendo. Foi você a sua unica loucura.
Uma loucura que passa á passagem da primeira conta corrente.
Mas é o senhor mesmo quem me dá as suas razões.
E esquece que eu o conheço muito bem.
Trata-se de um caso diverso, trata-se de outra coisa.
E esquece tambem que não a pode prejudicar, não tem o direito de o fazer.
Que me importa?
E esquece até mesmo a sua situação, que me abstenho de definir.
Diga. Continue. A minha situação miseravel, a situação que no primeiro momento envaidece mas que só se comprehende depois. Diga. Ella é a grande dama, que esqueceu alguns mezes o seu dever. Eu sou o rapaz sem consequencias. Bem vestido, filho de bôa família, mas sem profissão e sem dinheiro. Quando vem o interesse, allons oust! seja cavalheiro e passe muito bem. Simplesmente o inferior.! Ah! Meu caro barão, você não comprehenderá nunca a furia de amar, quando a gente se sente inferior. É uma miseria, é um nojo, é um desespero. A maioria dos desclassificados vem do amor em que eram inferiores. Eu sou inferior. Eu não tenho dinheiro. Si ella fosse rica eu seria apenas o preferido, o manteúdo.! Oh! sim. Havia de bater-lhe para mostrar que antes de ser della, ella é minha. Ha mais porem. Sou o preferido secreto que ella arreda para casar com outro. E então tudo quanto ainda tenho de nobre, que é um desesperado orgulho, me sobe a cabeça. Tenho ciumes, ciumes idiotas, sem razão de ser. É uma lucta. Vou quasi a ceder e de repente vem-me palpavel a lembrança della e delle, que é estupido, que é rico. Estupido, rico e forte… Penso que elle sabe, que elle me despreza. Penso que ella acabará desprezando-me tambem satisfeita em tudo com um espirito que se deixe dominar, com o dinheiro para gastar e alem disso, com um homem forte e moço. ! Meu Deus! Eu já sabia que ella ia casar. Ao ver esse pobre diabo, que só a leva pelo dinheiro e pela posição, adivinhei. Então agarrei-me aos ultimos instantes de duvida, desejei-a como quem rouba, violei-lhe a fraqueza como um salteador, entonteci-a de medo, de susto, de pavor…
Como?
Para que esse desespero? Você é moço. A juventude pensa que tudo acaba, quando tudo continua. Para que tanto drama? Raramente as mulheres valem uma loucura. Talvez por isso não ha mulher que não tenha enlouquecido um homem. Ou dois. Ou mesmo trez. Mas não importa. As mulheres são pequenos vasos de crystal transparente. Não têm côr. Nós é que lhes pomos a tinta da nossa illusão. Vemol-as azues, rosas, ou negras. Retirada a tinta, meu rapaz, os vasos continuam sem côr. Você é um temperamento que eu conheço bem. Ella porem é um pouco diversa de você. Acabou. Acabou tudo. Retire a tinta. Outros amores virão. E o que fizer soffrer a outras mulheres compensal-o-ha do que não pode mais fazer a Hortencia.
O senhor não acredita na minha dôr barão?
Meu caro Carlos decididamente exagera.
Exagero?
Não quererá fazer-me crer numa paixão fatal por Hortencia. Conheço-o muito bem. Uma paixão fatal é profundamente aborrecido. Trata-se de uma conquista mundana, aquillo por que vocês todos almejam : a mulher bonita de sociedade, que se assalta uma noite de baile, que se envolve em luxurias aprendidas nas pensões, e que se conserva mesmo ás escondidas como um brasão, porque posa bem. Oh ! não! Interromper-me para que? É exactamente isso. Depois a paixão ocupa. Entra uma Renée e uma Gloriá qualquer e sempre elegante, o luxo gratuito de uma senhora a quem se domina pela revelação libidinosa, pelo proprio terror do escandalo…
Barão! Não me confunda com essa gente. O seu scepticismo aniquilla a vontade que tenho de convencel-o. ! Não! Eu não quero impedir a felicidade della, eu sei que sou transitorio, que não devo ser levado em conta. Ela pode casar. Mas não com aquelle, não com elle. Esse não! não!
Porque?
Não sei! Já não sei o que digo! Mas não. E’ instintivo, é uma revolta furiosa.
Uma pequena revolta. Comprehende-se. Outro qualquer não reuniria as qualidades que tanto o encommodam no José. É por consequencia uma questão de despeito, de vaidade. Tanto mais dolorosa quando é na sombra sem que ninguem saiba. Mas por isso mesmo nobre, mais nobre. Hortencia falou-me do receio que o seu ciume lhe causa. Teme desgraças, horrores. Logo a tranquilizei lembrando : Carlos é um cavalheiro. A nossa palestra tem esse fim. Você vae deixar de ameaças que não são um prodigio de galanteria.
Eu não ameaço, só eu faço.
Você vae deixar de pensar em fazer.
Veremos.
Desejo convencel-o apenas.
Que me importa a mim ela? O respeito é reciproco. Tramou um casamento e põe-me na rua sem satisfação. Vingo-me. Estou no meu direito. Não é capaz de dizer-me que o procedimento della é moral?
Não discuto o acaso, que tem contingencias. Nada é moral. Mas acho que tudo é digno quando se procura conservar com sacrificio de um, de cem, ou de um milhão d’homens a honra de uma senhora.
É uma opinião de effeito para as mulheres.
A melhor, Carlos, que eu, peço acceitar.
Manda-me embora. E’ a primeira mulher que me despede! Vingo-me.
Mas sou eu quem lh’o peço.
Em nome de quem?
Em seu nome, em nome de seu caracter, primeiro : em meu nome depois. Sou um velho amigo da sua familia, de seu pae.
Oh! meu pae!
Por ser amigo de seu pae, encontrou-me você sempre…
Oh! barão. Creio que não vae trazer a colecção uns pedidos de rapaz para peitar a minha consciencia.
Entre o respeito que possa ter pelo senhor e esta questão em que o senhor nada tem, ha um abysmo.
Carlos, seria melhor não azedar esta palestra. Peço-lhe em meu nome ainda uma vez, em nome de um velho sceptico que já lhe pagou algumas contas.
O senhor allega-me coisas que de certo não fez com o fim de se fazer meu tutor em questões de mulheres?
É um caminho errado esse. Estás a mostrar a alma de mais. E se eu quizesse allegar?
O que?
Eu poderia lembrar ha cinco annos a sua entrada na minha casa.
Eu poderia recordar a sua fisionomia demudada, o seu gesto nervoso, os seus soluços.
Barão, é pouco generoso o que faz. Não é de um homem como o senhor!
Eu poderia dizer-lhe as minhas reflexões deante dessa pequena falta, em que se mostrou com lucro tão máu imitador…
Mas não é digno! não é digno!
Eu poderia lembrar que tenho todos as provas de um desvairamento da sua juventude, fui tão pouco generoso que guardei esse documento num canto e nunca mais delle me lembrei.
A nossa palestra termina.
Eu sou-lhe muito grato, muito, muito. Aquillo o senhor fez, não por mim mas pela minha familia. Para que recordar se continua amigo de meu pae? Esse desvario passou. Nunca mais. Nunca mais. Não precisava vir com o espectro do passado ameaçar-me.
Não ameaço. Valoriso o meu pedido.
Foi mau, foi tão mau! D’isso só o senhor e eu sabemos. Nada mais resta… Não precisava lembrar tanta coisa. Eu sou eu. Não precisava fazer valer em defesa de uma creatura que eu amo, esse processo tão exquisito, tão… policial…
Diga a palavra. Esse chantage. Graças aos deuses o chantage não é só para as coisas ruins. Mas a nossa palestra findou. Levou-me a excessos de que me arrependo. Pedia-lhe que reflectisse. Ainda o peço. E tenho tanta confiança na sua prudencia que o deixo só.
Faz muito pouco do homen a que trata tão mal!
Não. Espero tudo do seu cavalheirismo (consultando o relógio). Oh! Esperam-me no club para uma partida séria. Carlos, vae ter com Hortencia uma ultima palestra. Seja um homen digno. E não volte mais aqui. Se precisar (põe o chapeu, a porta, elegantissimo) uma estação d’aguas, vá falar-me. Não volte (sae).
Ah!
Contou-me tudo.
Tudo?
O teu casamento, o José Fereira, a situação.
Não são coisas definitivas.
Mas vão ser. É inutil mais rodeios. Falou-me como tu, friamente.
Ai de mim!
Falou-me como um negociante. Convenceu-me.
De que?
De que somos todos do mesmo panno, assaz infames : elle, tu, o noivo, eu. Cedemos um pouco cada um de nós e as coisas irão da melhor maneira, no melhor dos mundos possiveis.
Se pensas assim…
Pensamos. Pensamos todos assim numa peça bem imoral…
Em que não tens o melhor papel.
Nem tu.
Acho exquisito que tivesses ficado para dizer insolencias.
Não as direi mais.
Belfort falou-te. É um amigo comum.
Extraordinario, absolutamente extraordinario, é o que elle é.
A tua insistencia, os teus ciumes não me davam coragem para te expôr a salvação da minha vida. Chamei-o como a unica pessoa capaz de te convencer.
Convenceu-me. Mas porque chamal-o? Que se deu? O que eu pensava? Bastava que me tivesse dito logo no primeiro dia. Sou um cavalheiro sou ao menos teu amigo. Comprehendo as necessidades. Comprehendo muito bem. Para que fingiste? Tu é que andaste mal.
Eu? Se não tivesses estabelecido um cerco angustioso em torno de mim, a espreitar, a entrar a todo o instante, a responderes quasi com odio, se não tivesses a cada passo uma scena terrivel d’ameaça, teria agido d’outro modo. Mas tu viraste meu inimigo.
O amor é cego.
Sabes que detesto frases vasias.
Eu tambem. Principalmente ditas por nós.
Esse tom de impertinencia vae-te mal.
Não sei porquê.
Devo lembrar-te que falas comigo.
Estou certo.
Eu é que estou cançada, ouviste? Esses teus modos são para outro logar.
Não se trata aqui da minha educação. Trata-se de um arranjo. Eu estava estorvando. Vem o Belfort e eu cá estou prompto. Nada de talon rouge-apaches!
Longe de me acalmar, tudo quanto dizes, mais me excita. Se tivesses acceitado rasoavelmente os fatos, não dirias grosserias.
Mas vocês são engraçadas! Vocês são tão bôas como as outras, vocês têm amigos, vocês têm protectores, com que combinam enganar a humanidade…
Carlos!
E no momento em que lhes falamos como a iguaes, ficam immensamente offendidas.
Carlos! Carlos!
Que temos?
É de mais. Não me affrontes mais. É indigno o que fazes.
Somos iguaes. Nada de poesia.
Nunca pensei que me humilhasses assim… Não o podias fazer.
Não se trata do que eu possa fazer.
É uma miseria! E dizer que me entreguei a um grosseirão da tua ordem!
O papel de victima vae-te mal.
Esqueci todo o meu passado, o meu nome, o meu faturo…
A bella lamentação!
Meu Deus!
Mas não perdes o futuro, fica certa, Que é preciso fazer? Desapparecer? acompanhar o casamento?
Tenho pena de ti, Carlos!
Em troca eu tenho-te inveja!
Para que cavar entre nós o abysmo das más palavras?
Ha um maior.
Ha a fatalidade — o que não podia deixar de ser.
Achas?
Mas o que desejas tu, afinal? Que eu perca minha posição social? Que me denuncie publicamente tua amante? Que eu case contigo? Dize. Não podemos continuar definidamente nesta situação, em que me collocas. Não te bastou, o meu corpo, não te bastou o meu orgulho. Queres ver-me vilipendiada, corrida. O meu erro foi pensar um momento que tinhas por mim alguma affeição.
Hortencia!
Não vens nunca senão com a ameaça. O teu amor é a violencia e a affronta. Que queres tu afinal? Dize, que eu faço. O barão falou-te. Estou arrependida de lh’o ter pedido. Era melhor, sem receio, desde que é esta a minha situação, arrostar com tudo. Vamos a saber. Queres casar comigo?
Hortencia!
Queres? Essa seria a melhor das hypotheses para mim e é irrealisavel. Sabes bem que é. E as outras? As outras são o meu desastre apenas.
Quando se ama não se reflecte como tu reflectes. O teu casamento é um pretexto para me afastar. Já não me queres.
Não quero loucuras, não quero o meu sacrificio inutil — inutil porque não o comprehenderias. Por emquanto eu sou a Bella Madame Vargas que requestas num lindo villa na melhor sociedade. Seria a mesma amanhã seguindo-te na miseria?
Para que frases?
Quero ao menos saber francamente o que desejas. Esta é a nossa ultima explicação. Fala.
Para que?
Fala, dize o que desejas, o que se poderá fazer?
Ora!
Dize sempre. Dize… Ficaremos com a situação clara.
O amor é o soffrimento.
O amor é a dedicação. Mas não fales de amor!
Falo, falo, sim. Queres saber? Soffres? Eu soffro muito mais. Já não vivo senão com a tua ideia, ideia de egoismo, de ambição, de desejo, seja! Mas tua! Cada um ama como pode. Ha trez mezes que me importava ires com outro… casares? Há dois mezes mesmo! Hoje eu não posso, eu não quero, oh! sim! não quero, não! Vêr-te com outro, só a lembrança me enche de sangue a cabeça e me atordôa.
Não divagues, Carlos. Fala a verdade.
Digo o que sinto.
Dize inteiramente.
Não quero que cases.
Que devo fazer então? Casar comtigo? Fugir comtigo?
Hortencia!
Mas completa o teu pensamento, tem a coragen de completal-o, dize o que ambos sentimos ha muito tempo. Não é o meu casamento que te preoccupa. Quantas vezes falas-te delle a rir como uma coisa fatal.
Hortencia!
Não te encommodava eu ser de outro, não te aborrecia isso, o sangue não te enchia a cabeça nessa occasião. Eu que te ouvia, tu que falavas como eramos iguais! Tem pois a coragem da verdade. Não te aborreceria que eu desposasse fulano ou cicrano, o deputado Guedes ou o banqueiro Praxedes. O que te encommoda, o que tu não queres é que seja o José.
Pois sim. Confesso. É verdade. Odeio-o, odeio-o. Não me revoltaria se casasses com outro. Mas com elle não! Com esse nunca! Com elle é que não quero.
Porque?
Não sei, não sei!
Não sei.
Porque é moço?
Não quero! Não quero!
Porque é digno?
Como eu advinhava! Antes de ser commerciante, és bem mulher. Sim, não quero que cases com elle, confesso-o—porque é rico, é moço, é digno—porque é estúpido, porque o amas. Sim. Gostas delle! É o único de quem tu gostas. Cada dia gostas mais. Cada dia mais. Vi, senti, tive a certeza. Eu fui a loucura que se recorda com horror. Elle é o teu amor.
Estás louco. Fala baixo.
Não negues, não mintas tambem. Acabemos com isso. Ha um mez que luctamos eu e tu—eu querendo saber, tu a fugir. Vieste. É um bem. Sabes o que eu penso. Mas eu sei o que tu sentes. Esse imbecil conquistou-te! Todos nós collaboramos para que elle ficasse em foco. E tu amas-te-o ao vel-o. E tu me abandonas por causa delle.
Não!
Não occultarias, se o não amasses. E fingiste, fingiste! Para que fingiste tanta razão, tu que és tão doida como qualquer de nós? Para que fostes buscar Belfort, para acabar as nossas relações!
Pela tua exasperação continua. Com medo por ti.
Medo por elle! Só por elle! Elle é o alfemim a que tu vaes pertencer e não deve ser encommodado. A sociedade! Os teus credores! Mas continuarias commigo apesar da sociedade e dos credores, se não fosse elle. Tudo por elle, só por elle!
Medo por ti, por mim.
Eu é que grito agora : deixa de farça! Mas escuta, vem cá. Há instantes lembráste as minhas conversas sobre a possibilidade do teu casamento. Pois bem. Dize-me cá : se casares com elle, continuariamos os dois os mesmos?
Mas é indecente o que fazes. Não estás no teu juizo. Tudo o que dizes é desvario.
Porque eu sei que não será, compreendes? Eu sei. Elle adquiriu-te completa com a estupidez e o dinheiro. Já viste um imbecil enganado pela mulher? Nem que case com uma meretriz!
É de mais! É de mais! Carlos, vae-te. Tinha de acabar assim a nossa affeição. Pensarás depois na grande dôr que me dás! Vae-te. Não posso mais! Não posso mais! Está tudo acabado?
Como o amas! Como queres ver-te livre de mim para realisar com ele toda a tua ambição! Atiras-me á rua como um trapo, como uma bola de papel. Mas é que não sabes que eu não quero.
Não queres o quê?
Não quero que case contigo.
É uma baixesa que não farás.
Nunca mulher nenhuma me abandonou. Vaes ver.
Não farás. Não será possivel!
Nem tu, nem as conversas do Belfort, nem cem como tu me poderiam deter.
Dir-lhe-hei tudo, contar-lhe-ei tudo, antes de ti. Elle me perdoará.
Antes de lh’o dizeres, vou eu dizer-lh’o!
Carlos, não transformes o meu sentimento por ti em odio.
Elle é um homem de bem. Não te ouvirá.
Gritarei!
Correr-te-ha!
Não o fará, ouviste? Não o fará? Não se trata mais de mulheres doidas e de velhos tolos. Trata-se de homens, estás ouvindo!
Fica sabendo. Fica sabendo bem. Havemos de contar-lhe tudo, ouviste? Havemos de ver-lhe a decepção de idiota. E elle não correrá ninguem porque se der um passo—mato-o! (Atira-a sobra as cadeiras, sae).
Carlos! Carlos! Carlos!
O pano cerra-se bruscamente.