A Bella Madame Vargas/III
ACTO TERCEIRO
(O mesmo scenario do segundo acto, seis horas depois. É o salão de musica á noite. Ha um extraordinario luar, que inunda os espaços e se alastra fóra pelo terraço. Das janellas e da porta vê-se bem o luar. A varanda está toda cheia de luz da noite.)
MADAME VARGAS, BELFORT, BABY GOMENSORO, MADAME AZAMBUJA, D. MARIA, JULIETA, CARLOTA PAES, GASTÃO, DEPUTADO GUEDES e JOSÉ FEREIRA.
«(Quando levanta o panno todos em roda do piano dão palmas e aplaudem Mme Azambuja que termina o segundo nocturno de Chopin.)
É realmente admiravel.
V. Ex. toca divinamente.
É a alma de Chopin.
Eu ficaria reconciliado com os pianos, se todos os amadores fossem como Mme Azambuja.
Não sei; esse nocturno deu-me vontade de chorar.
É porque estás nervosa.
Ainda tem dôr de cabeça?
Ainda, um pouco.
Deixe de cuidados demasiados. D. Hortencia não podia deixar de estar nervosa.
Ora esta. Porque?
Um nocturno de Chopin com este luar!
Muito bonito.
Um luar para tragedias.
O’ Dr. Fereira, avistamos a sua casa de cá?
Não mademoiselle.
Está uma claridade de dia…
Fica a gente romantica. Lembra Shakespeare.
Romeu e Julieta…
Uma escada de seda.
E os versos do Bilac. (Madame Azambuja fica a tocar languidamente; enquanto em torno e perto da porta conversas. Madame Vargas e Belfort no primeiro plano).
Porque está tão abatida?
A cabeça estala-me, já não posso ter mão em mim. É o maximo da resistencia.
Mas porque abandonar a coragem no ultimo momento?
Porque é o desastre.
Que ideia triste. Vae partir e tudo será pelo melhor, ao contrario.
É que não pode imaginar o que se passou com Carlos. A sua presença exarcebou-o.
Ameaçou-me de tal forma, que a todo o instante o espero. Carlos é capaz de tudo!
Minha cara Hortencia, pode ter a certeza de que são raros os capazes de tudo. Os capazes de tudo são os excepcionaes. O mundo é uma grande repartição publica. Nessas repartições há sempre um ministro para centenas de funcionarios. No mundo há um ser d’excepções para milhares de outros que não passam de amanuenses da vida.
Amanuense o Carlos!
Ha amanuense e amanuense. Ha os que trabalham, casam, pagam a lavadeira, tem filhos e comettem regularmente outras coisas insignificantes ; e ha os que indo á repartição pretendem cometter acções de maior importancia e não fazem nada. O Carlos pertence aos que não fazem nada. É amanuense da vida com a protecção do director e o medo dos credores.
Porque brincar ainda, barão, neste momento angustioso?
Porque tenho confiança no futuro.
Se escapassemos até amanhã a catastrophe estaria adiada.
Só se dão as catastrophes pelas quaes não esperamos.
Eu é que não posso mais. Se elle vem, se faz o escandalo público!…
Esquece que estou aqui!
Não sei. Teria uma grande vontade de ser conquistada. Deve ser bom, não acham?
Aquelle grande palacete é o do banqueiro Praxedes?
Conhece-o? É um sujeito terrivel esse tal de Praxedes. Já me explicaram porque quando conversa fecha os olhos.
Porque é?
É para ter tempo de fazer algumas sommas entre as perguntas e as respostas.
Hortencia, venha ver os effeitos do luar. Parece oiro liquido.
Ha noites doidas.
Doidas é o termo.
De que?
Sei que parte amanhan.
Psio, quem lh’o disse?
Hortencia estava a pedir-me que tratasse da passagem della.
Porque adoro as coisas simples e naturaes.
Acha então o luar pouco natural?
O luar é o artificio. Mettemos-lhe tanta coisa, arrebicamol-a tanto, que nada mais resta do verdadeiro luar. A lua das cidades é uma invenção literaria. Acho muito mais natural a D. Carlota ou o Deputado Guedes.
Mas já lhe tenho dito uma porção de vezes que não sou reconhecido…
Não é?
Infelizmente!
Mas o que vae ser então?
Sim, se não fôr deputado o que vae ser então?
Ah! isso… Hoje, com a certeza do meu degollamento, o partido que está no governo offereceu-me a candidatura á presidencia.
Bravo! Presidente!
Mas são precisas muitas coisas para ser presidente?
Sim. Capacidade, energia, tino…
Tudo isso é de mais.
Como assim?
Para ser presidente de estado no Brasil só é necessario uma qualidade : a de saber preparar o buffet.
Hein? Como?
Porque sendo a campanha das candidaturas uma noite de contradanças, os vencedores só têm uma preoccupação politica administrativa : avançar na ceia…
É sempre assim que os presidentes começam.
E se sahissemos um pouco?
Com este sereno!
Vamos todos até á estrada?
Que ideia!
Que nervos, diga antes. Vae peiorar a sua dôr de cabeça.
Ao contrario. Talvez me faça bem. Venha d’ahi doutor.
Vamos! Não! Bella ideia!
Eu não. Prefiro fumar um cigarro no terraço.
Não. Estou cançadissima.
Que imprudencia, sahirem por ahi.
Hortencia está nervosissima.
Esta vida mundana é motivo de graves neurasthenias.
Depois as preoccupações…
Quaes?
Só sustentar este luxo e escolher os flirts.
Má lingua.
Eu? Ao contrario. Falo a verdade. Só não vê quem não quer. Não lhe parece muito terno o Dr. Fereira.
Sempre pensei que fosse o outro, o Dr. Carlos.
E depois diga que sou eu a má lingua. Pois contam-no tambem, ao Snr. no rol dos apaixonados.
Sabe bem que só tenho uma paixão.
A politica?
Nunca se ama o que nos sustenta.
Que imprudencia! Lá se foram!
É um passeio extravagante.
O Dr. Guedes é que não iria, hein? A Tijuca mette-lhe medo.
Perdão. Mette-me medo quando vou com senhoras de respeito. Só, ou com homens, acho até graça. Já uma vez vim cá à noite com um amigo do meu estado e dei com uma ceia de estalo na meza do imperador. A illuminação era a velas multicores.
Que escandalo.
Só cocottes e rapazes, que diziam os maiores horrores!
Atacaram-no?
Felizmente não. Escapei porque estava na roda o senador Polycarpo.
A proposito, a senhora do senador Polycarpo continua a enganar o marido?
Absolutamente.
É lá senhora para voltar atraz. Nunca!
O Polycarpo é que enviuvou.
Foi o seu primeiro acto da satisfação á sociedade.
Já acabou o cigarro?
A apostar que falavam mal da vida alheia?
Enquanto não fallavamos de amor.
Alguma declaração?
Não. A Baby confessava que precisa amar. Eu disse-lhe que trabalhasse em alguma coisa util. O amor é sempre um resultante da falta do que fazer. Ella ri e não acredita. Chamou-me creança.
O topete desta menina!
Deus fala pela bocca da innocencia.
Impossivel! Abusou tanto do rouge hoje que está permanentemente ruborisada. (Baby corre á janella. O barão escapa.)
A verdade é que o barão é um inimigo do casamento.
Pelo menos não pensou nunca em casar.
Apenas por influencia de leituras. Em rapaz caiu-me nas mão um livro antigo escripto em latim. Falava do casamento e dava o syllogismo do matrimonio segundo Bias.
Que Bias?
Um sugeito muito antigo que morreu antes de nós nascermos. Bias diz : A mulher que escolhermos será bella ou feia. Se for bella, não será só tua, se for feia casarás com uma furia.
Oh! Barão!
É verdade que logo depois o autor citava Favorinus, que aconselha o meio termo entre as duas, e Quintus Ennius que chama o meio termo stata. Até hoje procuro a stata e não há meio de me resolver…
Obrigado, por todos nós.
Não. É que o luar me põe nervosa.
O luar é o inventor de todas as loucuras, segundo alguns literatos. Até o nosso Guedes, com um luar destes seria capaz de as realizar.
Não. Tenho sempre juízo… Não sou mais homem para essas coisas.
Porque? Porque vae ser presidente de Estado?
Porque a espinha m’o prohibe.
Soffre da espinha?
Aqui onde me vê, D. Baby, sou um candidato a ataxia.
Então respiremos.
É uma molestia grave, Baby.
Mas basta que o Dr. Guedes seja candidato a ella para que a gente tenha a certeza de que não a apanha.
Má! E o senhor barão a rir. Está a fazer da Baby uma discipula.
Não. Rio com sentimentos conservadores — com medo de perder a alegria. É tão raro encontrar alguem alegre! Vejam os transeuntes na rua. Cada physionomia tem un vinco de preoccupação. As mulheres olham-se com mal disfarçado rancôr. Os homens não conseguem esconder a magua occulta. Já ninguem mais ri francamente. O riso foi a principio o prazer de devorar. Foi depois o prazer de viver. Hoje é o desespero de não poder arrasar a geração. A Baby ri por prazer, ao menos.
Obrigada pela conferencia. Vou colecionar anedotas.
(Mas pela varanda surgem a correr e a rir Madame Vargas, José, Gastão, Carlota, Julieta. Irrupção na sala.
Ora viva a companhia!
Uma corrida louca, minha filha!
Fomos perseguidos.
Que dizia eu?
Só o Gastão nos salvaria.
Imaginem. Dois automoveis cheios de cavalheiros e damas.
Queriam por força reconhecer-nos.
Como assim?
É que tinhamos tapado o rosto com as écharpes.
O Amaral Fataça pegou-me o braço teimando que eu era a Liliane.
Felizmente, Gastão conseguio fazel-o recuar.
Trahiu-nos.
Mais uma victoria nos biceps, Gastão?
Qual biceps. Intelligencia!
É sorprehendente!
Que fez você?
Disse o nosso nome, é claro.
Juro que não. Foi tudo quanto ha de mais simples. Disse que as senhoras eram outras.
Que outras!
Outras senhoras com que elles flirtam.
Foi um salve-se quem poder!
E corremos até aqui.
Mas a scena augmentou-me ainda a dôr de cabeça.
Não será coisa de gravidade?
Não. Quando tenho uma forte emoção a dôr vem sempre.
Porque não toma uma pouco d’aspirina?
Não, obrigado.
É uma dôr tremenda essa. Eu nunca a tinha tido. Parece-lhes impossivel? Pois é. Só ha oito dias é que a senti pela primeira vez. Quasi morro!
Que me diz?
Serio. Foi depois de um jantar em casa de Madame Braga, a esposa do homem de borracha.
Aquella que dá agora recepções?
Una senhora tremendamente gorda?
Essa mesma. Nunca vi tanta gente feia reunida.
A dôr de cabeça talvez fosse disso.
Gente que só vemos nos bailes officiaes do Cattete e nas reuniões para a construcção da Torre do Coração de Jesus, no club dos Diarios. Havia trez donos de seringaes, com diamantinos nos dedos.
Que horror os diamantinos nos dedos dos homens!
A Braga estava decotada, com um collar que o marido disse ter custado 200 contos.
É uma relação muito razoavel. Não acha, D. Maria?
D’accordo. Très bien.
Mas é que vocês não imaginam a Braga decotada!
Eu a vi hontem no lyrico.
Não é verdade? Já viste decote igual?
Francamente em publico, desde que perdi a minha ama de leite, foi a primeira vez…
Ma o decote da senhora Braga é que lhe causou dôr de cabeça?
Não sei. Attribuo aos seringueiros, ao decote, aquella gente toda e a uma salada, á moda do Pará, que serviram no fim. Era de matar.
Não ha nada peior do que uma salada quando faz mal.
Até agora não sei do que era. O senhor barão, que sabe tudo conhece por acaso a salada do Pará?
Qual dellas? Porque ha muitas. Salada é o termo que se applica admiravelmente a todas as coisas do Brazil. Ha a salada politica de que por exemplo agora o Guedes é o azeite. Ha a salada philosophica em que ninguem se entende. Ha a salada social, uma dessas saladas panachés que dariam indigestões a um avestruz. A qual dellas se refere?
Ás que se comem, está bem visto.
Dessas não sei. É verdade que o diplomata Schmidt pretendeu ensinar-me uma. Mas não consegui. Quando chegava a lição estava sempre com champagne de mais.
Era apanhal-o quando a tivesse de menos.
Impossivel. Schmidt apostou que o champagne não lhe fez mal. De modo que quanto mais bebe mais vontade tem de beber para mostrar que é forte. Tem com isso um lucro. Apesar de morar á beira mar desconhece a resaca…
Mas, pelo amor de Deus, não falemos mal da vida alheia!
Que havemos de fazer então para sermos elegantes?
Irmo-nos embora, por exemplo. Hortencia precisa descançar.
Oh! não.
Pois sim! Não deseja você outra coisa.
Está evidentemente doente.
Não diga!
Descance. Não tenho nada.
Mas ha de dar licença. (cumprimenta).
É isso mesmo. Estamos insuportaveis.
Vivemos quasi na casa de Hortencia.
Hoje só faltou o Dr. Carlos.
É verdade. O que andará fazendo aquelle conquistador?
Dorme com certeza sobre os loiros.
Até amanhã.
Vae V. Ex. ao Lyrico?
Talvez.
É opera nova.
Então não presta.
Porque?
Porque todas as operas novas são sempre para os entendidos do Rio, boracheiras tremendas.
Se D. Hortencia fôr, eu quero um lugar no camarote.
Por causa do tenor?
Por causa do Gastão. O camarote do pae é pegado.
Para começar, quer você vir no meu automovel? Deixo-a em casa.
Merci. Acceito.
É uma imprudencia vir á porta, senhora D. Hortencia.
Não venha Hortencia.
Melhoras. Nunca vi você tão nervosa como esta noite.
É verdade. Eu também. Ó Dr. José, leve-nos até lá em baixo.
Mas, vou tambem com as senhoras.
Como, se mora para cima?
Nada de flirts, Baby. É tarde (no salão sós Belfort e Hortencia).
Que lhe disse eu? Não veio!
Mas onde estará, que fará elle?
Tranquillamente em qualquer club.
O barão não o conhece.
Melhor do que a Hortencia.
Elle faz alguma, elle disse que faria.
Esta noite pelo menos parece ter adiado. Tenho a certeza. Foi a sua ultima scena. Elle sabe quem eu sou, e sabe que o tenho…
Barão, salve-me! Mais algumas horas e eu terei evitado esse desgraçado empecilho. Já começam a falar nelle, já o notam. Ouviu a Renata?
Tenha confiança. Eu quero e quando eu quero, raramente os outros deixam de querer o que eu quero. Estou vigilante. se o que lhe disse não bastar, agirei, e deante do que eu tenho, as velleidades desaparecerão.
Meu bom José… Vae, não é assim?
Que se ha de fazer, se é vontade sua.
José, vá. E saiba que nunca na minha vida estimei alguem como o estimo.
Está nervosa, Hortencia. Continua nervosa. Não imagina como fico inquieto. Ainda ha pouco quasi compromette o nosso segredo…
Descance, é a emoção da despedida. O unico meio de ser feliz é não discutir os caprichos da dama dos nossos sonhos.
Eu estou tambem muito alegre, e muito triste!
Não! Não! Deves ficar alegre, e só alegre!
Está bem, está bem, nada de nervos.
Eu vou, Hortencia. Até amanhã.
Adeus, meu querido José (dá-lhe a mão a beijar).
Vae para sua casa?
Claro. Arranjar as malas.
Consente que o acompanhe? A noite está linda. Preciso dar um passeio. Leve-o no meu automovel e conversaremos.
Não se encommoda, por quem é… Estamos a duzentos metros se tanto…
Não. Quero ver como se comporta. Já não o largo! Minha cara Hortencia. Tenha fé! Está tudo acabado. Até amanhã (a D. Maria que lhe dá o sobretudo e o chapeo). Não, sem sobretudo. Obrigado (a José sahindo). Diga-me? Nunca teve medo de bandidos? Eu gosto immenso. O bandido é o covarde valente, sem a coragem d’afirmar. Sempre tive vontade de encontrar um bandido face a face. Se fossemos atacados?
Sempre o mesmo barão. Até amanhã Hortencia! Descance. Não fique mais nervosa. Adeus.
Até amanhã (saem José e Belfort).
Ah! Dia! Dia horrivel que não acaba! Mais algumas horas e salvo-me!
Queres partir?
Quero impedir que mais uma vez estraguem o meu futuro. Só! Quero ser feliz, comprehendes? Quero mostrar publicamente que eu tambem amo, que posso ser uma esposa que se inveje. Quero a claridade do dia! Basta de escuro, basta de crime.
Não te excites assim, com as proprias palavras. Tens un pouco de culpa…
Tia não me censures.
Eu teria dito a esse pequeno cynico as coisas como ellas são, desde o começo. Garanto que só ameaça vingar-se por despeito.
A quem o dizes! E a cada gesto seu, mais sobe José no meu conceito, mais vejo quanto desci, mais sinto a minha ignominia, mais amo o outro. Sim. Não é mais interesse, não é mais, não. Com esse que me ofereceu tudo e não pediu nada, com esse eu iria. Porque o amo!
Porque o amo! E ter aquella creatura imaginando estragar a minha vida, perder-me no conceito de José, só porque me assaltou num momento de lassidão e de amargor! Oh! não sabe elle, como me defenderei! Faltam apenas algumas horas. Depois já não poderá dizer nada, já não poderá fazer nada, estará sem os dentes de veneno e peçonha…
Vem deitar-te. É melhor.
Não. Um instante. Quero reposar os nervos.
Não fazes hoje nenhuma tolice?
Oh! Tia!
Ainda hontem, minha filha!
Hontem… vae já tão longe. Hoje preferiria morrer.
Ainda bem. Tudo menos aquillo.
Oh! tia, não insistas. Até já; vai-te deitar.
Até já, meu thesouro. Has de ver. Não acontecerá nada de mau. Elle não cometerá as infamias que disse. Repousa. Está para chegar a felicidade. Não te apoquentes mais (sae).
Como custa chegar a felicidade!
(Tem um largo suspiro, fica um instante deante do espelho abatida. A porta do terraço descerra-se. Entra por ella num golphão de luar Carlos. Madame Vargas vê a sua entrada pelo espelho. Volta-se aterrada).
Bôa noite.
Tu? Tu aqui?
Do que se admira? Não é a primeira vez?
Voltaste? Voltaste depois do que se deu hontem comnosco?
Como vês. Não encommodo? Andei por fóra á espera que os outros sahissem.
Tens coragem de voltar, de entrar aqui, sem o meu consentimento alta hora?
Deixei-te tão doida hoje á tarde! Precisavamos conversar, não te parece?
Mas não temos mais que dizer. Mais nada. Será o que tu quizeres. Tudo quanto quizeres.
Finges calma! estás convencida de garantias. O barão encheu-te de confiança. Vê-se!
Não. Fizeste-me soffrer muito e perdeste com isso o que me restava de affeição por ti. Podes fazer o que quizeres. Desinteresso-me.
Ainda bem. Foi o que eu fiz, descança.
Que fizeste?
Preparei uma pequena vingança.
Vindo aqui mais uma vez torturar-me e desgostar-me ainda mais de ti?
Seria isso uma vingança?
Mas que vingança? Vingança porquê?
Porque me deu na cabeça.
Sabes que começo a perder a calma!
Vaes perdel-a de todo dentro de alguns momentos.
Tu é que te vaes embora immediatamente.
Tem tempo. Depois de liquidar-mos o nosso caso.
Mas afinal que queres tu? Não creio que me vás exigir una noite, depois do que me disseste hoje. Que queres tu? Discutir o que estamos fartos de saber? Ameaçar-me? Dize, fala. Que queres tu afinal?
Não sei se recorda ha trez mezes uma noite de luar assim?
Desgraçada noite!
Ha trez mezes era outro o seu pensar…
Não pensava de forma alguma. Rolava para um abysmo.
Pois ha trez mezes eu beijava doido de alegria um bilhete teu…
Não tragas a historia do bilhete. Sempre a mesma, sempre a mesma.
Foi o unico que me escreveste. Beijei-o muito. Tenho-o de cór.
Devias restituir-m’o.
Acabo de o fazer.
Como?
Recordas de certo as breves palavras sem nome algum, mysteriosamente atiradas á sombra. Espero-o hoje á noite. Deus perdôe a minha loucura. Venha á 1 hora.
Loucura! Desastrada loucura!
Mas porque, se o bilhete sem o meu nome não era para mim?
Hein?
Era um bilhete que transitava pelas minhas mãos. Só hoje comprehendi, e ao sair d’aqui, metti-o num subscripto e mandei-o a quem de direito pertence agora. É um bilhete talisman. Serve de passe.
Não comprehendo.
É simples, caramba! Mandei o teu bilhete ao dr. José Fereira.
Tu fizeste isso?
Com certeza lh’o entregaram agora, quando voltou para casa.
Tu fizeste isso?
Honestamente, sem uma palavra minha. Sou um homem que se preza. E depois a cena é muito mais interessante como a imagino. A estas horas, o Dr. Fereira deve estar, doido de alegria a olhar o relogio.
Mas para que fizeste isso? Porque não me deste o bilhete a mim. O José virá, eu direi qualquer coisa… É tão simples mentir! Não terás senão feito mais uma pequena infamia para me aborrecer.
Decididamente perdes a intelligencia com a perspectiva do casamento. Mandei-lhe o teu bilhete e vim esperal-o comtigo.
Tu?
Ah! minha dona, pensavas então que eu era qualquer trapo, a pôr de lado no melhor momento? Estavas crente que era possivel enganar-me, arredar-me com cantigas e as ameaças do Belfort, esse velho ridiculo que não sei bem o que é aqui? Pensavas mesmo que realisarias o negocio sem me prevenir, pondo-me no andar da rua? Não! Ah! não! Eu sou alguem, sabes, eu sou alguem. Não sou homem que ponham a andar, não sou desses. Cá estou. Vamos esperal-o juntos. Ou não tem vergonha, ou com elle não arranjas mais nada. Depois será o que fôr!
Miseravel! Como és miseravel!
Isso. Chama-me nomes. Vamos ver depois. Com aquelle ar de demoiselle de Sion o Dr. José vae receber um golpe em pleno.
Indigno! Covarde! Perder assim uma mulher, perder pelo prazer da infamia, sem outro fim senão o de fazer mal! Porque, meu deus? Porque! Mas pensas mal se acreditas que eu não resista.
Vamos a ver como.
Saia, saia, já d’aqui.
Muito bonito como theatro.
Covarde!
Fale baixo, pode acordar alguem.
Ao contrario, gritarei. Vou chamar gente, chamo todos. Mando-te pôr fóra, pelos creados.
Estou certo de que o não farás. É o escandalo já. Ficarão todos sabendo das nossas relações — porque eu também gritarei, contarei. Talvez cheguemos a ter a policia. Hortencia, venha cá.
Largue-me!
Seja! Mas vejo que já não quer gritar. Sempre prudente. O melhor é mesmo esperar-mos o homem. É meia noite. Temos deante de nós uma hora se elle não chegar antes.
Não. Tudo o que quizeres Carlos, tudo, menos essa atroz miseria! Chamal-o aqui, mostrar-me tal qual sou!
Isso é para os intimos, ou antes para aquelles a quem já não quer…
Não é possivel! Não é possivel! Não farás isso!
Vais ver.
Depende ainda delle. E elle não vem, affirmo-te eu; não vem porque comprehende os perigos desta gente com que vivemos, porque desconfiará de uma traição…
Talvez. Como é homem, porem, terá pelo menos a curiosidade de vir ver. É excusado olhares as portas. (Dando volta a chave da porta da communicação interna). Não sahirás senão para o escandalo. E eu não desejo que ninguem nos perturbe. Dentro de 50 minutos : elle, tu, e eu. A apostar como vem?
Que venha! Que venha! Deve vir, sim, deve vir, tem de vir! Ha infamias que a fatalidade ajuda. Vem mesmo, está a chegar. E eu sei que vem, porque antes já lhe escrevera chamando-o. Pobre José! Receberá duas cartas minhas. Sim. Escrevi. Estou a ouvir-te apenas como lição só para sentir bem a tua baixesa, para ver quanto desci. Mas o José, está a chegar. Contei-lhe tudo, tudo. Elle sabe tudo. E vae-te expulsar, vae-te correr como um criado ordinario.
Havemos de ver.
Verás bem pago o teu cynismo. Um homem que tortura assim uma mulher é um covarde. Mas não és tu que o esperas, sou eu que te retenho para que elle te encontre. Que venha! Que venha! (Ruído fora, recua apavorada.) Ah!
Silencio! (Vae até á janella, espia o terraço. Hortencia acompanha-o quasi de rastos. Momento.) Uf! nada. Talvez o Braz, passando em baixo… (Olha Hortencia). Muito menos desejo de que eu, hein? Dê-me o consolo ao menos de confessar que só escreveu a mim! Deixe de fingimentos, não delire. Sim. De facto. Ha coisas penosas na vida. Esta espera enerva. Tenha calma. Ainda temos 40 minutos.
Mas que vaes fazer? Que vaes fazer?
Que vou fazer? O trepasse, minha filha!
Carlos!
Aqui tem a minha amante ; faça-a sua mulher. Hei de gosar-lhe a decepção!
Mas se não te fez mal algum?
Por isso mesmo odeio-o. Odeio-o pelos seus ares superiores, pelo seu dinheiro, por essa honestidade palerma que elle exhibe como um cartaz, pelas suas ideias, por tudo! Odeio-o visceralmente — odeio-o porque tu o amas! Honesto, rico, querendo casar! Pateta! Como se fosse difficil ser honesto e casar, quando se tem dinheiro! Tivesse-o eu! Tivesse-o eu! E verias em vez deste « Capaz de tudo para viver » o teu honestissimo esposo. Porque tu havias de amar-me. Oh! as mulheres! Havias de amar-me e enganar-me depois com outro. Aqui, porem dá-se o inverso. Enganas-me a mim para casar com elle! Veremos a gargalhada final quem a dá!
É a mim que tu perdes, só a mim… Desmoronas para sempre a minha vida.
Que importa, se me abandonaste antes, se por todos os lados me dizem que eu não passo de um malandrim desfarçado? Que importa se devo ceder o lugar aos honestos, que são ricos? Eu te ajudaria a enganal-o se m’o tivesses dito. Não m’o disseste senão quando era impossivel occultar mais tempo. É porque só amas a elle. Eu vingo-me.
Elle é forte. Elle tem coragem.
Não se trata de coragem. Trata-se de factos. (Mostrando o bolso da calça onde tem o revolver.) Depois não ha valentias deante disto.
Meu Deus! Meu Deus! Nāo. Nāo é possivel! Não vas ficar aqui! Não quero mas sangue na minha vida! Nāo. Eu sujeito-me. Eu recuso o casamento. Mas parte; deixa-me esperal-o só. Dir-lhe-ei que não quero mais. Que só te quero a ti. Mas parte. Ou esconde-te. Parte. Vae-te embora.
Dir-lhe-ás tudo isso á minha vista. (Neste instante, batem á porta de dentro. Salto. Angustia. Carlos agarra o braço de Hortencia.) Baixinho! Baixinho! Se deixar entrar alguem aqui, o escandalo é amanhã de toda a cidade. Estás perdida! (batem de novo). Anda. Pergunta quem é. Com calma.
Quem está? É a tia?
Sim, minha filha. É quasi uma hora. Não te vens deitar?
Tranquillisa-a, anda.
Já vou. Não me aborreças. Deita-te tu. (Num impeto). Feche a... (Carlos tapa-lhe a bocca).
Cala-te. (Ella debate-se. Rolam ambos no divan. Silencio angustioso). Tens que esperar. Quero que esperes. Ao menos hoje obedeces. Eu quero.
Odeio-te!
E eu vingo-me! (O relogio bate meia hora dentro). Temos apenas trinta minutos. Pouco tempo.
Elle vem! Elle vem! (desespero). Não fiques, oh! não fiques! Já te vingaste de mais. Sim. Confesso. Devia te ter dito tudo, devia ter falado. Mas já resgatei o meu crime. Sei que é brincadeira tua, que nada disso é verdade, que não passa de uma tortura, uma grande tortura... Pelo amor de Deus, pelo nosso amor…
Pelo nosso amor, egoista! Pelo nosso amor, trahidora! Pelo nosso amor vendida!
Vae-te! Vae-te! Não fiques! Não me tortures! Eu não quero que elle saiba! Não quero não! Nunca! Nunca! Se tens ciumes, mata-me! mata-me! anda, mata-me! Mas não lhe digas nada.
Dentro de alguns minutos.
Canalha! Canalha! Canalha!
Vem gente.
Cana… (Estaca, porem. Carlos precipita-se para a janella. Espia).
É um vulto. Caminha entre as arvores. Veiu cedo. É elle.
É elle! É elle! É elle!
Seja a Bella Mme Vargas, sempre até o fim. Tenha animo!
Crapula! Eu direi tudo.
Esperemos bem. {{small|(Precipita-se na cadeira em que está sentada Mme Vargas. Torcendo-lhe a mão.) Sinto-lhe os passos rapidos na escada. Tenha o ar de quem me presta attenção. Ande.
Larga-me! Larga-me! (e quando faz um ultimo esforço).
Afinal encontro-te! (Carlos ergue-se attonito. Mme Vargas pende na cadeira. Belfort a Hortencia). Mil perdões por entrar na sua casa tão tarde. Mas vi luz e tive a certeza de que Carlos estava cá. Chegou de certo depois dos outros, disse eu : E subi (a Carlos). Vim buscal-o.
A mim?
Preciso de você já!
Exquisito.
Extremamente. Tanto que você vae sair já.
É o senhor quem manda?
Nada de rodeios. É tarde. Saia já!
Manda tambem cá?
Mando onde devo mandar. É inutil a bravata commigo, menino. Poupe-me um pouco a sua petulancia. cartas na mesa. Cartas na meza. A senhora Hortencia Vargas vae casar com o Dr. José Fereira. Eu quero. Você é de mais. Disse-lhe que se afastasse. Não quiz. Repito-o. Comprehendeu? Perdeu a partida.
Talvez. Esperamos por esse Fereira. Mais alguns minutos e elle chega. Veremos.
Barão, salve-me! Salve-me!
Eu é que o vou esperar sem você. Saia!
Não acredite que me aterrorisa.
Cale-se! Conheço-o bem. Ou você sae immediatamente, sem encontrar o Dr. José Fereira ou está amanhã na prisão. Disse-lhe que pensasse. Quer brincar commigo. Engana-se. Tenho-o no bolso, e se fizer contra Hortência mais um gesto está em mau logar.
Belfort!
Nada como os grandes remedios.
Calumniador.
Porque, tenho a sua carta pedindo-me perdão, tenho a letra em que tão mal fingiu a minha e a firma de seu pae, e o denuncio com todas as provas como falsificador da minha firma. Disse-lh’o já e sabe que o faço. Faço-o á primeira tentativa sua. A sua scena é bonita emquanto serve para cantar nos clubs. É moda e dá amantes até, mas muda quando tem por fim um cubiculo da detenção, mesmo arejado. Saia!
É indecente o que faz.
Não insista. O ar de fóra far-lhe-á bem. E note : mesmo o respeito que tenho por seu pae, não impedirá que o declare publicamente e o faço prender se disser uma palavra a respeito deste caso. Mando-o prender irrevogavelmente.
Ha amizades suspeitas.
E gente como você que não deixa duvidas. Mas saia. A situação é ridicula. Cheguei no momento em que ia commetter a sua maior torpeza. Dessas torpezas que estragam vidas mas não levam á cadeia. Deixo-lhe o ultimo insulto. Desabafe e fuja da cadeia que pela sua demora ameaça começar aqui. Mais um segundo e está preso.
É capaz?
Experimente!
Velho pulha! (sae).
Elle vae encontral-o. Elle dirá tudo! Estou perdida!
Em homens como Carlos tenho a maxima confiança. Só ha contra esses apaches da nossa sociedade uma coisa respeitavel: a cadeia. Elle sabe que eu o liquido. Já não pensa mais em vinganças. Vae d’aqui para um club a passar o resto da noite com champagne pago pelos outros.
Mas mandou ao José o unico bilhete que lhe tinha escripto. José vem ahi.
Esperaremos juntos o José. O pobre rapaz ficará enternecido com a lembrança. Ahi está um bilhete que o mau serviço dos correios levou trez mezes a entregar ao seu verdadeiro destinatario.
Meu amigo! foi Deus que o mandou para salvar a minha vida!
Deus, neste caso foi apenas, ter olhado, ao voltar da casa de José, o seu terraço e ver alguem que a elle subia. Era o Carlos, esperei-o. Como não sahisse subi. Talvez fosse mesmo Deus, porque o devo ao luar, parece dia… Apesar da literatura, a lua não está literalmente pervertida (caminha para a janella).
Meu amigo! Meu amigo! E perdoou, perdoou mesmo a minha falta, a minha loucura?
Mas que é isto, Hortencia? Ria, esteja alegre. Todos nós precisamos de perdão. E o mundo seria a maior sensaboria se as mulheres passassem por elle pensando em tudo quanto fazem…
E o pano cerra-se, emquanto a pobre e bella Mme Vargas ri e chora, desfeita de emoções nos braços do seu velho amigo.