A Chave/IV

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Saiamos do mar que é tempo. A leitora pode desconfiar que o intento do autor é fazer um conto marítimo, a ponto de casar os dois heróis nos próprios “paços de Anfitrite”, como diria o Major Caldas. Não; saiamos do mar. Já tens muita água, boa Marcelina. Too much of water hast thou, poor Ophelia! A diferença é que a pobre Ofélia lá ficou, ao passo que tu sais sã e salva, com a roupa de banho pegada ao corpo, um corpo grego, por Deus! e entras na barraca, e se alguma coisa ouves, não são as lágrimas dos teus, são os resmungos do major. Saiamos do mar.

Um mês depois do último banho a que o leitor assistiu, já o Luís Bastinhos freqüentava a casa do Major Caldas. O major afeiçoara-se-lhe deveras depois que ele lhe salvara a filha. Indagou quem era; soube que estava empregado numa repartição de marinha, que seu pai, já agora morto, fora capitão-de-fragata e figurara na guerra contra Rosas. Soube mais que era moço bem reputado e decente. Tudo isto realçou a ação generosa e corajosa de Luís Bastinhos, e a intimidade começou, sem oposição da parte de Marcelina, que antes contribuiu para ela, com as suas melhores maneiras.

Um mês era de sobra para arraigar no coração de Luís Bastinhos a planta do amor que havia germinado entre duas vagas do Flamengo. A planta cresceu, copou, bracejou ramos a um e outro lado, tomou o coração todo do rapaz, que não se lembrava jamais de haver gostado tanto de uma moça. Era o que ele dizia a um amigo de infância, seu atual confidente.

— E ela? disse-lhe o amigo.

— Ela... não sei.

— Não sabes?

— Não; creio que não gosta de mim, isto é, não digo que se aborreça comigo; trata-me muito bem, ri muito, mas não gosta... entendes?

— Não te dá corda em suma, concluiu o Pimentel, que assim se chamava o amigo confidente. Já lhe disseste alguma coisa?

— Não.

— Por que não lhe falas?

— Tenho receio... Ela pode zangar-se e fico obrigado a não voltar lá ou a freqüentar menos, e isso para mim seria o diabo.

O Pimentel era uma espécie de filósofo prático, incapaz de suspirar dois minutos pela mais bela mulher do mundo, e menos ainda de compreender uma paixão como a do Luís Bastinhos. Sorriu, estendeu-lhe a mão em despedida, mas o Luís Bastinhos não consentiu na separação. Puxou-o, deu-lhe o braço, levou-o a um café.

— Mas que diabo queres tu que te faça? perguntou o Pimentel sentando-se à mesa com ele.

— Que me aconselhes.

— O quê?

— Não sei o quê, mas dize-me alguma coisa, replicou o namorado. Talvez convenha falar ao pai; que te parece?

— Sem saber se ela gosta de ti?

— Na verdade era imprudência, concordou o outro, coçando o queixo com a ponta do dedo índice; mas talvez goste...

— Pois então...

— Porque, eu te digo, ela não me trata mal; ao contrário, às vezes tem uns modos, umas coisas... mas não sei... O major, esse gosta de mim.

— Ah!

— Gosta.

— Pois aí tens, casa-te com o major.

— Falemos sério.

— Sério? repetiu o Pimentel debruçando-se sobre a mesa e encarando o outro. Aqui vai o mais sério que há no mundo: tu és um... digo?

— Dize.

— Tu és um bolas.

Repetiam-se essas cenas regularmente, uma ou duas vezes, por semana. No fim delas o Luís Bastinhos prometia duas coisas a si mesmo: não dizer mais nada ao Pimentel e ir fazer imediatamente a sua confissão a Marcelina; poucos dias depois ia confessar ao Pimentel que ainda não dissera nada a Marcelina. E o Pimentel abanava a cabeça e repetia o estribilho:

— Tu és um bolas.