A Cidade e as Serras/V
V
No emtanto Jacintho, desesperado com tantos desastres humilhadores — as torneiras que dessoldavam, os elevadores que emperravam, o Vapor que se encolhia, a Electricidade que se sumia, decidiu valorosamente vencer as resistencias finaes da Materia e da Força por novas e mais poderosas accumulacões de Mechanismos. E n’essas semanas de Abril, emquanto as rosas desabrochavam, a nossa agitada casa, entre aquellas quietas casas dos Campos-Elyseos que preguiçavam ao sol, incessantemente tremeu, envolta n’um pó de caliça e d’empreitada, com o bruto picar de pedra, o retininte martelar de ferro. Nos silenciosos corredores, onde me era dôce fumar antes do almoço um pensativo cigarro, circulavam agora, desde madrugada, ranchos d’operarios, de blusas brancas, assobiando o Petît-Bleu, e intimidando os meus passos quando eu atravessava em fralda e chinellas para o banho ou para outros retiros. Apenas se varava com pericia algum andaime obstruindo as portas — logo se esbarrava com uma pilha de taboas, uma ceira de farramentas ou um balde enorme d’argamassa. E os pedaços de soalho levantado mostravam tristemente, como n’um cadaver aberto, todos os interiores do 202, a ossatura, os sensiveis nervos d’arame, os negros intestinos de ferro fundido.
Cada dia estacava deante do portão alguma lenta carroça, d’onde os creados, em mangas de camisa, descarregavam caixotes de madeira, fardos de lona, que se despregavam e se descosiam n’uma sala asphaltada, ao fundo do jardim, por traz da sebe de lilazes. E eu descia, reclamado pelo meu Principe, para admirar uma nova Machina que nos tornaria a vida mais facil, estabelecendo d’um modo mais seguro o nosso dominio sobre a Substancia. Durante os calores, que apertaram depois da Ascenção, ensaiamos esperançadamente, para refrescar as aguas mineraes, a Soda-Water e os Medocs ligeiros, tres geleiras, que se amontoaram na copa successivamente desprestigiadas. Com os morangos novos appareceu um instrumentosinho astuto, para lhes arrancar os pés, delicadamente. Depois recebemos outro, prodigioso, de prata e crystal, para remexer phreneticamente as saladas; e, na primeira vez que o experimentei, todo o vinagre esparrinhou sobre os olhos do meu Principe, que fugiu aos uivos! Mas elle teimava... Nos actos mais elementares, para alliviar ou apressar o esforço, se soccorria Jacintho da Dynamica. E agora era por intervenção d’uma machina que abotoava as ceroulas.
E simultaneamente, ou em obediencia á sua Idéa, ou governado pelo despotismo do habito, não cessava, ao lado da Mechanica accumulada, de accumular Erudição. Oh, a invasão dos livros no 202! Solitarios, aos pares, em pacotes, dentro de caixas, franzinos, gordos e repletos de auctoridade, envoltos em plebeia capa amarella ou revestidos de marroquim e ouro, perpetuamente, torrencialmente, invadiam por todas as largas portas a Bibliotheca, onde se estiravam sobre o tapete, se repimpavam nas cadeiras macias, se enthronisavam em cima das mesas robustas, e sobretudo trepavam contra as janellas, em sofregas pilhas, como se, suffocados pela sua propria multidão, procurassem com ancia espaço e ar! Na erudita nave, onde apenas alguns vidros mais altos restavam descobertos, sem tapume de livros, perennemente se adensava um pensativo crepusculo de outono emquanto fóra Junho refulgia. A Bibliotheca transbordára através de todo o 202! Não se abria um armario sem que de dentro se despenhasse, desamparada, uma pilha de livros! Não se franzia uma cortina sem que de traz surgisse, hirta, uma ruma de livros! E immensa foi a minha indignação quando uma manhã, correndo urgentemente, de mãos nas alças, encontrei, vedada por uma tremenda collecção de Estudos Sociaes, a porta do Water-Closet!
Mais amargamente porém me lembro da noite historica em que, no meu quarto, moido e molle d’um passeio a Versalhes, com as palpebras poeirentas e meio adormecidas, tive de desalojar do meu leito, praguejando, um pavoroso Diccionario de Industria em trinta e sete volumes! Senti então a suprema fartura do livro. Ageitando, com murros, os travesseiros, maldisse a Imprensa, a Facundia humana... E já me estirára, adormecia, quando topei, quasi parti a preciosa rotula do joelho, contra a lombada d’um tomo que velhacamente se aninhára entre a parede e os colchões. Com furor e um berro empolguei, arremessei o tomo affrontoso — que entornou o jarro, inundou um tapete rico de Daghestan. E nem sei se depois adormeci — porque os meus pés, a que não sentia nem o pisar nem o rumor, como se um vento brando me levasse, continuaram a tropeçar em livros no corredor apagado, depois na areia do jardim que o luar branqueava, depois na Avenida dos Campos-Elyseos, povoada e ruidosa como n’uma festa civica. E, oh portento! todas as casas aos lados eram construidas com livros. Nos ramos dos castanheiros ramalhavam folhas de livros. E os homens, as finas damas, vestidos de papel impresso, com titulos nos dorsos, mostravam em vez de rosto um livro aberto, a que a brisa lenta virava docemente as folhas. Ao fundo, na Praça da Concordia, avistei uma escarpada montanha de livros, a que tentei trepar, arquejante, ora enterrando a perna em flacidas camadas de versos, ora batendo contra a lombada, dura como calhau, de tomos de Exegese e Critica. A tão vastas alturas subi, para além da terra, para além das nuvens, que me encontrei, maravilhado, entre os astros. Elles rolavam serenamente, enormes e mudos, recobertos por espessas crostas de livros, d’onde surdia, aqui e além, por alguma fenda, entre dois volumes mal juntos, um raiosinho de luz suffocada e anciada. E assim ascendi ao Paraiso. Decerto era o Paraiso — porque com meus olhos de mortal argila avistei o Ancião da Eternidade, aquelle que não tem Manhã nem Tarde. N’uma claridade que d’elle irradiava mais clara que todas as claridades, entre fundas estantes d’ouro abarrotadas de codices, sentado em vetustissimos folios, com os flocos das infinitas barbas espalhados por sobre resmas de folhetos, brochuras, gazetas e catalogos — o Altissimo lia. A fronte super-divina que concebera o Mundo pousava sobre a mão super-forte que o Mundo creára — e o Creador lia e sorria. Ousei, arrepiado de sagrado horror, espreitar por cima do seu hombro coruscante. O livro era brochado, de tres francos... O Eterno lia Voltaire, n’uma edição barata, e sorria.
Uma porta faiscou e rangeu, como se alguem penetrasse no Paraiso. Pensei que um Santo novo chegára da Terra. Era Jacintho, com o charuto em braza, um molho de cravos na lapella, sobraçando tres livros amarellos que a Princeza de Carman lhe emprestára para lêr!
N’uma d’essas activas semanas, porém, a minha attenção subitamente se despegou d’este interessante Jacintho. Hospede do 202, conservava no 202 a minha mala e a minha roupa: e, acostado á bandeira do meu Principe, ainda occasionalmente comia do seu caldeirão sumptuoso. Mas a minha alma, a minha embrutecida alma, e o meu corpo, o meu embrutecido corpo, habitavam então na rua do Helder, n.º 16, quarto andar, porta á esquerda.
Descia eu uma tarde, n’uma leda paz de idéas e sensações, o Boulevard da Magdalena, quando avistei, deante da Estação dos Omnibus, rondando no asphalto, n’um passo lento e felino, uma creatura secca, muito morena, quasi tisnada, com dous fundos olhos taciturnos e tristes, e uma matta de cabellos amarellados, toda crespa e rebelde, sob o chapéo velho de plumas negras. Parei, como colhido por um repuxão nas entranhas. A creatura passou — no seu magro rondar de gata negra, sobre um beiral de telhado, ao luar de Janeiro. Dous poços fundos não luzem mais negra e taciturnamente do que luziam os seus olhos taciturnos e negros. Não recordo (Deus louvado!) como rocei o seu vestido de sêda, lustroso e encebado nas pregas; nem como lhe rosnei uma súpplica por entre os dentes que rangiam; nem como subimos ambos, morosamente e mais silenciosos que condemnnados, para um gabinete do Café Durand, safado e môrno. Deante do espelho, a creatura, com a lentidão d’um rito triste, tirou o chapéo e a romeira salpicada de vidrilhos. A sêda poida do corpete esgarçava nos cotovellos agudos. E os seus cabellos eram immensos, d’uma dureza e espessura de juba brava, em dous tons amarellos, uns mais dourados, outros mais crestados, como a côdea de uma torta ao sahir quente do forno.
Com um riso tremulo, agarrei os seus dedos compridos e frios:
— E o nomesinho, hein?
Ella séria, quasi grave:
— Madame Colombe, 16, rua do Helder, quarto andar, porta á esquerda.
E eu (miseravel Zé Fernandes!) tambem me senti muito sério, trespassado por uma emoção grave, como se nos envolvesse, n’aquella alcôva de Café, a magestade d’um Sacramento. Á porta, empurrada levemente, o creado avançou a face nedia. Ordenei uma lagosta, pato com pimentões, e Borgonha. E foi sómente ao findarmos o pato que me ergui, amarfanhando convulsamente o guardanapo, e a tremer lhe beijei a bocca, todo a tremer, n’um beijo profundo e terrivel, em que deixei a alma, entre saliva e gôsto de pimentão! Depois, n’uma tipoia aberta, sob um bafo molle de leste e de trovoada, subimos a Avenida dos Campos-Elyseos. Em frente á grade do 202 murmurei, para a deslumbrar com o meu luxo: — «Móro alli, todo o anno!...» E como ao mirar o Palacete, debruçada, ella roçára a matta fulva do pello crespo pela minha barba — berrei desesperadamente ao cocheiro; que galopasse para a rua do Helder, n.º 16, quarto andar, porta á esquerda!
Amei aquella creatura. Amei aquella creatura com Amor, com todos os Amores que estão no Amor, o Amor divino, o Amor humano, o Amor bestial, como Santo Antonino amava a Virgem, como Romeu amava Julietta, como um bode ama uma cabra. Era estupida, era triste. Eu deliciosamente apagava a minha alegria na cinza da sua tristeza; e com ineffavel gôsto afundava a minha razão na densidade da sua estupidez. Durante sete furiosas semanas perdi a consciencia da minha personalidade de Zé Fernandes — Fernandes de Noronha e Sande, de Guiães! Ora se me affigurava ser um pedaço de cêra que se derretia, com horrenda delicia, n’um forno rubro e rugidor: ora me parecia ser uma faminta fogueira onde flammejava, estalava e se consumia um mólho de galhos seccos. D’esses dias de sublime sordidez só conservo a impressão d’uma alcôva forrada de cretones sujos, d’uma bata de lã côr de lilaz com sotaches negros, de vagas garrafas de cerveja no marmore d’um lavatorio, e d’um corpo tisnado que rangia e tinha cabellos no peito. E tambem me resta a sensação de incessantemente e com arrobado deleite me despojar, arremessar para um regaço, que se cavava entre um ventre sumido e uns joelhos agudos, o meu relogio, os meus berloques, os meus anneis, os meus botões de punho de saphira, e as cento e noventa e sete libras em ouro que eu trouxera de Guiães n’uma cinta de camurça. Do solido, decoroso, bem fornecido Zé Fernandes, só restava uma carcassa errando atravéz d’um sonho, com as gambias molles e a baba a escorrer.
Depois, uma tarde, trepando com a costumada gula a escada da rua do Helder, encontrei a porta fechada — e arrancado da hombreira aquelle cartão de Madame Colombe que eu lia sempre tão devotamente e que era a sua taboleta... Tudo no meu ser tremeu como se o chão de Paris tremesse! Aquella era a porta do Mundo que ante mim se fechára! Para além estavam as gentes, as cidades, a vida, Deus e Ella. E eu ficára sósinho, n’aquelle patamar do Não-ser, fóra da porta que se fechára, unico ser fóra do Mundo! Rolei pelos degraus, com o fragor e a incoherencia d’uma pedra, até ao cubiculo da porteira e do seu homem que jogavam as cartas em ditosa pachorra, como se tão pavoroso abalo não tivesse desmantelado o Universo!
— Madame Colombe?
A barbuda comadre recolheu lentamente a vaza:.
— Ja não mora... Abalou esta manhã, para outra terra, com outra porca!
Para outra terra! com outra porca!... Vasio, negramente vasio de todo o pensar, de todo o sentir, de todo o querer — boiei aos tombos, como um tonel vasio, na corrente açodada do Boulevard, até que encalhei n’um banco da Praça da Magdalena, onde tapei com as mãos, a que não sentia a febre, os olhos a que não sentia o pranto! Tarde, muito tarde, quando já se cerravam com estrondo as cortinas de ferro das lojas, surdiu, d’entre todas estas confusas ruinas do meu ser, a eterna sobrevivente de todas as ruinas — a ideia de jantar. Penetrei no Durand, com os passos entorpecidos d’um resuscitado. E, n’uma recordação que m’escaldava a alma, encommendei a lagosta, o pato, o Borgonha! Mas ao alargar o collarinho, ensopado pelo ardor d’aquella tarde de Julho, entre a poeira da Magdalena, pensei com desconfôrto: — «Santissimo Nome de Deus! Que immensa sêde me fez esta desgraça!...» De manso acenei ao moço: — «Antes do Borgonha, uma garrafa de Champagne, com muito gêlo, e um grande copo!...» Creio que aquelle Champagne se engarrafára no Ceu onde corre perennemente a fresca fonte da Consolação, e que na garrafa bemdita que me coube penetrára, antes d’arrolhada, um jorro largo d’essa fonte inneffavel. Jesus! que transcendente regalo, o d’aquelle nobre copo, embaciado, nevado, a espumar, a picar, n’um brilho d’ouro! E depois, garrafa de Borgonha! E depois, garrafa de Cognac! E depois Hortelã-Pimenta granitada em gêlo! E depois um desejo arquejante de espancar, com o meu rijo marmelleiro de Guiães, a porca que fugira com outra porca! Dentro da tipoia fechada, que me transportou n’um galope ao 202, não suffoquei este santo impulso, e com os meus punhos serranos atirei murros retumbantes contra as almofadas, onde via, furiosamente via a matta immensa de pello amarello, em que a minha alma uma tarde se perdera, e tres mezes se debatera, e para sempre se emporcalhára! Quando o fiacre estacou no 202 ainda eu espancava tão desesperadamente a besta ingrata, que, aos berros do cocheiro, dous moços accudiram e me sustiveram, recebendo pelos hombros, sobre as nucas servis, os restos cançados da minha colera.
Em cima, repelli a sollicitude do Grillo que tentava impôr ao siô Zé Fernandes, a Zé Fernandes de Guiães, a immensa indignidade d’um chá de macella! E estirado no leito de D. Galião, com as botas sobre o travesseiro, o chapéo alto sobre os olhos, ri, n’um doloroso riso, d’este Mundo burlesco e sordido de Jacinthos e de Colombes! E de repente senti uma angustia horrenda. Era Ella! Era a Madame Colombe, que esfuziára da chamma da vela, e saltára sobre o meu leito, e desabotoára o meu collete, e arrombára as minhas costellas, e toda ella, com as saias sujas, mergulhára dentro do meu peito, e abocára o meu coração, e chupava a sorvos lentos, como na rua do Helder, o sangue do meu coração! Então, certo da Morte, ganindo pela tia Vicencia, pendi do leito para mergulhar na minha sepultura, que, através da nevoa final, eu distinguia sobre o tapete — redondinha, vidrada, de porcelana e com aza. E, sobre a minha sepultura, que tão irreverentemente se assimilhava ao meu vaso, vomitei o Borgonha, vomitei o pato, vomitei a lagosta. Depois, n’um esforço ultra-humano, com um rugido, sentindo que, não sómente toda a entranha, mas a alma se esvasiava toda, vomitei Madame Colombe! Recahi sobre o leito de D. Galião... Recarreguei o chapéo sobre os olhos para não sentir os raios do sol. Era um sol novo, um sol espiritual, que se erguia sobre a minha vida. E adormeci, como uma creancinha docemente embalada n’um berço de verga pelo Anjo da Guarda.
De manhã, lavei a pelle n’um banho profundo, perfumado com todos os aromas do 202, desde folhas de limonete da India até essencia de jasmin de França: e lavei a alma com uma rica carta da Tia Vicencia, em letra farta, contando da nossa casa, e da linda promessa das vinhas, e da compota de ginja que nunca lhe sahíra tão fina, e da alegre fogueira do pateo em noite de S. João, e da menininha muito gorda e cabelluda que viéra do ceu para a minha afilhada Joanninha. Depois, á janella, bem limpo de alma e de corpo, n’uma quinzena de sedinha branca, tomando chá de Naïpò, respirando os rosaes do jardim revividos pela chuva da madrugada, considerei, em divertido pasmo, que, durante sete semanas, me emporcalhára, na rua do Helder, com um estardalho muito magro e muito tisnado! E conclui que padecera d’uma longa sezão, sezão da carne, sezão da imaginação, apanhada n’um charco de Paris — n’esses charcos que se formam através da Cidade com as aguas mortas, os limos, os lixos, os tortulhos e os vermes d’uma Civilisação que apodrece.
Então, curado, todo o meu espirito, como uma agulha para o Norte, se virou logo para o meu complicado Principe, que, nas derradeiras semanas da minha infecção sentimental, eu entrevira sempre descahido por cima de sophás, ou vagueando através da Bibliotheca entre os seus trinta mil volumes, com arrastados bocejos de inercia e de vacuidade. Eu, na minha pressa indigna, só lhe lançava um distrahido — «que é isso?» Elle, no seu moroso desalento, só murmurava um sêcco — «é calor!»
E, n’essa manhã da minha libertação, ao penetrar antes d’almoço no seu quarto, no sophá o encontrei enterrado, com o Figaro aberto sobre a barriga, a Agenda cahida sobre o tapete, toda a face envolta em sombra, e os pés abandonados, n’uma soberana tristeza, ao pedicuro que lhe polia as unhas. Decerto o meu olhar reallumiado e repurificado, a brancura das minhas flanellas reproduzindo a quietação das minhas sensações, e a segura harmonia em que todo o meu ser visivelmente se movia, impressionaram o meu Principe — a quem a melancolia nunca embotava a agudeza. Ergueu mollemente um braço molle:
— Então esse capricho?
Derramei, sobre elle todo o fulgor d’um riso victorioso:
— Morto! E, como o Snr. de Malbrouck, «morto e bem enterrado.» Jaz! Ou antes, rola! Com effeito deve andar agora rolando por dentro do cano do esgoto!
Jacintho bocejou, murmurou:.
— Este Zé Fernandes de Noronha e Sande!...
E, no meu nome, no meu digno nome assim embrulhado n’um bocejo com desprendida ironia, se resumiu todo o interesse d’aquelle Principe pela suja tormenta em que se debatera o meu coração! Mas não me melindrou esse consummado egoismo... Claramente percebia eu que o meu Jacintho atravessava uma densa nevoa de tedio, tão densa, e elle tão afundado na sua molle densidade, que as glorias ou os tormentos d’um camarada não o commoviam, como muito remotas, intangiveis, separadas da sua sensibilidade por immensas camadas de algodão. Pobre Principe da Gran-Ventura, tombado para o sophá de inercia, com os pés no regaço do pedicuro! Em que lodoso fastio cahira, depois de renovar tão bravamente todo o recheio mechanico e erudito do 202, na sua lucta contra a Força e a Materia! — E esse fastio não o escondeu mais do seu velho Zé Fernandes quando recomeçou entre nós a communhão de vida e de alma a que eu tão torpemente me arrancára, uma tarde, deante da Estação dos Omnibus, no charco da Magdalena.
Não eram certamente confissões enunciadas. O elegante e reservado Jacintho não torcia os braços, gemendo — «Oh vida maldita!» Eram apenas expressões saciadas; um gesto de repellir com rancôr a importunidade das coisas; por vezes uma immobilidade determinada, de protesto, no fundo d’um divan, d’onde se não desenterrava, como para um repouso que desejasse eterno; depois os bocejos, os ôcos bocejos com que sublinhava cada passo, continuado por fraqueza ou por dever inilludivel; e sobretudo aquelle murmurar que se tornára perenne e natural — «Para que?» — «Não vale a pena!» — «Que massada!...»
Uma noite no meu quarto, descalçando as botas, consultei o Grillo:
— Jacintho anda tão mucho, tão corcunda... Que será, Grillo?
O venerando preto declarou com uma certeza immensa:
— S. Exc.a soffre de fartura.
Era fartura! O meu Principe sentia abafadamente a fartura de Paris: — e na Cidade, na symbolica Cidade, fóra de cuja vida culta e forte (como elle outr’ora gritava, illuminado) o homem do seculo XIX nunca poderia saborear plenamente a «delicia de viver», elle não encontrava agora fórma de vida, espiritual ou social, que o interessasse, lhe valesse o esfôrço d’uma corrida curta n’uma tipoia facil. Pobre Jacintho! Um jornal velho, setenta vezes relido desde a Chronica até aos Annuncios, com a tinta delida, as dobras roídas, não enfastiaria mais o Solitario, que só possuisse na sua Solidão esse alimento intellectual, do que o Parisianismo enfastiava o meu doce camarada! Se eu n’esse verão capciosamente o arrastava a um Café-Concerto, ou ao festivo Pavilhão d’Armenonville, o meu bom Jacintho, collado pesadamente á cadeira com um maravilhoso ramo de orchideas na casaca, as finas mãos abatidas sobre o castão da bengala, conservava toda a noite uma gravidade tão estafada, que eu, compadecido, me erguia, o libertava, gozando a sua pressa em abalar, a sua fuga d’ave solta... Raramente (e então com vehemente arranque como quem salta um fosso) descia a um dos seus Clubs, ao fundo dos Campos-Elyseos. Não se occupara mais das suas Sociedades e Companhias, nem dos Telephones de Constantinopla, nem das Religiões Esotericas, nem do Bazar Espiritualista, cujas cartas fechadas se amontoavam sobre a mesa d’ebano, d’onde o Grillo as varria tristemente como o lixo d’uma vida finda. Tambem lentamente se despegava de todas as suas convivencias. As paginas da Agenda côr de rosa murcha andavam desafogadas e brancas. E se ainda cedia a um passeio de Mail-coach, ou a um convite para algum Castello amigo dos arredores de Paris, era tão arrastadamente, com um esforço tão saturado ao enfiar o paletot leve, que me lembrava sempre um homem, depois d’um gordo jantar de provincia, a estalar, que, por pollidez ou em obediencia a um dogma, devesse ainda comer uma lamprêa de ovos!
Jazer, jazer em casa, na segurança das portas bem cerradas e bem defendidas contra toda a intrusão do mundo, seria uma doçura para o meu Principe se o seu proprio 202, com todo aquelle tremendo recheio de Civilisação, não lhe désse uma sensação dolorosa de abafamento, de atulhamento! Julho escaldava: e os brocados, as alcatifas, tantos moveis roliços e fôfos, todos os seus metaes e todos os seus livros, tão espessamente o opprimiam, que escancarava sem cessar as janellas para prolongar o espaço, a claridade, a frescura. Mas era então a poeira, suja e acre, rolada em bafos mornos, que o enfurecia:
— Oh, este pó da Cidade!
— Mas, oh Jacintho, por que não vamos para Fontainebleau, ou para Montmorency, ou...
— P’ra o campo? O que! P’ra o campo?!
E na sua face enrugada, através d’este berro, lampejava sempre tanta indignação, que eu curvava os hombros, humilde, no arrependimento de ter affrontosamente ultrajado o Principe que tanto amava. Desventurado Principe! Com o seu dourado cigarro d’Yaka a fumegar, errava então pelas salas, lenta e murchamente, como quem vaga em terra alheia sem affeições e sem occupações. Esses desaffeiçoados e desoccupados passos monotonamente o traziam ao seu centro, ao gabinete verde, á Bibliotheca d’ebano, onde accumulara Civilisação nas maximas proporções para gozar nas maximas proporções a delicia de viver. Espalhava em tôrno um olhar farto. Nenhuma curiosidade ou interesse lhe sollicitavam as mãos, enterradas nas algibeiras das pantalonas de sêda, n’uma inercia de derrota. Annulado, bocejava com descorçoada molleza. E nada mais instructivo e doloroso do que este supremo homem do seculo XIX, no meio de todos os apparelhos reforçadores dos seus orgãos, e de todos os fios que disciplinavam ao seu serviço as Forças Universaes, e dos seus trinta mil volumes repletos do saber dos seculos — estacando, com as mãos derrotadas no fundo das algibeiras, e exprimindo, na face e na indecisão molle d’um bocejo, o embaraço de viver!