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A Condessa Vésper/XLIX

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Tão exausto de ânimo e tão vencido pela decepção, vinha o mísero despojado ao chegar a casa que não teve ele uma lágrima, nem um gesto de revolta para aquela nova perfídia da sua velha traidora; chegou até a sorrir dando de ombros, sem indagar saber o que escapar ao despojo, nem o que ela porventura lhe deixara escrito a título de desculpa ou de justificação.

Tornou à rua, e lá se fez para os lados da cidade rebocado pelo seu próprio desânimo, a procura de uma parelha de aluguel, que o ajudasse a arrastar a carga daquela pesada noite.

Foi afinal dar aos lábios de uma rapariga, que acabava de fazer a sua aparição no baixo mercado dos beijos fluminenses. Chamava-se Eva Rosa, mas o seu verdadeiro nome o leitor conhece, como conhece à dona; era a nossa Estela dos olhos bonitos, a quem um dia sonhara o malogrado Gustavo fazer senhora.

Depois de percorrer a regimental escala que vai desde a criadinha festejada pelo amo até à mesquinha amante acumulativa das funções de criada e cozinheira, surgira afinal a infeliz, oficialmente, à tona do impudor de porta franca, fazendo das janelas do hotel Ravaux trampolim para o grande salto na larga piscina da devassidão carioca.

Gabriel deixou-se ficar muitos dias ao lado dela, ouvindo os pormenores da história dos negros amores de Gustavo com Ambrosina; e, enquanto procurava ele aturdir o coração nos braços dessa quinhoeira de infortúnio, vítima também da Condessa Vésper, reaparecia no Rio de Janeiro, sinistramente velho e prostrado, o Médico Misterioso, que sentira agravar-se longe da pátria o seu mau estado de saúde com a terrível notícia da quebra do Banco Mauá.

O que, logo ao chegar à Corte, lhe constou de positivo a respeito da fraudulenta liquidação desse estabelecimento de crédito, em que todos no Brasil depositavam a melhor boa-fé e a qual Gabriel, como o próprio Gaspar, haviam confiado os seus haveres, ferrou com ele de cama, e por pouco não o matou de vez.

Mandou então chamar com urgência o enteado, a quem, em vão, já tinha por várias vezes escrito do estrangeiro.

Gabriel resistiu a princípio, mas afinal cedeu. E os dois amigos, ao trocarem o primeiro olhar depois de tão longa e desabrida ausência, sentiram-se igualmente comovidos.

O enfermeiro afastou-se do quarto a um gesto do enfermo.

— Não podia morrer sem falar contigo... disse este a Gabriel; porque não era só pelo meu interesse que o precisava fazer... Apesar de não haveres nunca respondido às minhas cartas, é minha segura convicção que já chegaste afinal a compreender quanto foste injusto para comigo, e quão pouco merecia eu ser por ti odiado e abandonado...

— Não falemos nisso... murmurou Gabriel, de olhos baixos.

— Ah, sim! deves estar a estas horas plenamente senhor da verdade a tal respeito, a não ser que aquela maldita mulher, uma vez de novo ao teu lado, achasse meios ainda de tirar, a seu favor, novo partido de uma situação, falsa na aparência, que a nós dois ridiculamente incompatibilizava... Agora, porém, que acabas de ser, tão de surpresa, defraudado pelo Banco Mauá no que restava do teu belo patrimônio, terás, meu filho, ocasião de conhecer definitivamente o vil diabo por quem me desprezaste.. . É esperares mais um pouco, e hás de ver confirmado o que te digo! Não te dou muitos dias para que Ambrosina te fuja para os braços de outro, se encontrar quem a receba!

— Já encontrou...

— Abandonou-te já?

— Já.

— Ainda bem, meu pobre Gabriel! Ao quer que seja, aproveita a desgraça! Respiro, apesar de que semelhante felicidade tire a sua razão da tua própria ruína. De hoje em diante, tens que traçar um novo programa para a tua vida... É preciso que nunca te esqueças de que já não és rico.

Gabriel soltou um gemido.

— É verdade... disse entredentes; pensei eu, pobre de mim! que não pudesse ser mais desgraçado do que me supunha. Enganei-me! a miséria veio completar a obra. Sou um miserável!

— Não! e és muito menos desgraçado do que foste; apenas, convém que acordes por uma vez dos teus pesadelos. Era por isso, principalmente, que eu não queria morrer sem falar contigo, sem te deixar de pé na vida... e de olhos bem abertos... E como a morte é traidora e anda por aqui junto, não devemos perder tempo... Escuta, meu filho; antes, porém, de mais nada, olha, toma esta chave, e com ela tira daquele cofrezito de ferro uma volumosa carteira que lá está.

Gabriel obedeceu. Cumpria as ordens do padrasto com a solene submissão que se deve ao enfermos desenganados.

— Para que é isto?... perguntou ele agitando na mão a carteira que sacara do cofre.

— É para te ser restituído... explicou o enfermo, virgulando as palavras com uma tosse seca; aí dentro encontrarás, em bilhetes esterlinos, o principal e os juros dos cinqüenta contos de réis, que te tomei, contando já que havias de chegar à completa pobreza...

Gabriel arfava de comoção.

— Do que sobrar, prosseguiu o outro, e com o produto do que porventura aqui encontrarem depois de minha morte, farás o meu enterro e um última esmola aos meus doentes pobres. Espero não te esqueças de que tanto maior será a esmola, quanto mais modesto for o enterro, e de que não te ficará bem lesar aqueles desgraçados de quem era eu o único amigo... Quando te pedi o que agora te restituo, sabia que mais cedo ou mais tarde, cairias na miséria, mas, confesso, não a fazia tão certa... estava, como todos, bem longe de prever a quebra do Banco Mauá. Era a minha intenção deixar por algum tempo amargasses bem a necessidade, para poderes depois tomar o real sabor da vida, e dar então a esse último punhado de dinheiro o seu verdadeiro valor; a morte, porém, não me deixa tempo para tanto, e tenho de confiar ao te próprio critério o que esperava eu da ação benéfica dos fatos. E é isto só o que agora me preocupa...

Gabriel não pôde por mais tempo reprimir a sua comoção.

— Meu bom amigo! exclamou, lançando-se nos braços do padrasto.

— Sim! só o teu futuro me dá cuidado... É a única preocupação que levo comigo para fora da vida.

— Não se mortifique por minha causa!

— Oh! Sinto perfeitamente que me cabe grande parte na responsabilidade da tua desgraça... Amei-te demasiadamente... fiz de ti um ídolo, quando devia ter feito simplesmente um filho... Fui um visionário! Errei! Perdoa-me!

E, como Gabriel com um gesto lhe exprobasse falar tanto, Gaspar abaixou a voz, e acrescentou sucumbido:

— Ah! bem caro paguei o bem que te não fiz! bem caro paguei o meu tributo à delirante época em que decorreu a minha mocidade! Desgraçados que fomos! desgraçados que fomos!

E as lágrimas do velho romântico correram-lhe pelas barbas brancas.

— Oh! sossegue por amor de Deus! suplicava o rapaz; concentre todo o seu pensamento na boa ação que acaba de praticar comigo, salvando-me da miséria; e console-se com a idéia da gratidão que neste instante me invade a alma, para nunca mais a abandonar! Creia-me, meu pai, ligado piedosamente ao seu amor e sinceramente contrito dos meus erros!

— Obrigado, meu filho...

E o moribundo deixou pender a pálida cabeça sobre os travesseiros, inundada por uma auréola de extrema lucidez, em que se pressentia já o alvorecer de uma outra vida.

Foi arquejante, e talvez meio em presa ao supremo delírio, que ele mais tarde volveu a falar, levando ao peito descarnado a mão de Gabriel que entre as suas apertava.

— Segue à risca o que te vou dizer... balbuciou com os olhos imóveis: não olhes para trás de nós, não pares a contemplar no teu caminho a sinistra sombra que fomos... Vê! a luz vem de frente! não te voltes contra a luz, que a noite é doce, mas intrigante e traiçoeira... Em nome de tua mãe, meu filho, não mergulhes de novo na vasa em que acabas de naufragar! Nunca mais leves o teu corpo à boca, sem teres ganho o teu dia; não ponhas teu corpo com o de uma mulher, a quem não possas defender em qualquer terreno; não doures a tua vaidade com o ouro que não ganhaste com as tuas próprias mãos, porque só esse orgulha a quem o gasta. Faze da necessidade, alheia ou própria, a senhora arbitral do teu dinheiro; nunca o sonegues quando ela o reclamar, nem jamais o gastes sem que dele justifique ela a aplicação. E trabalha, e poupa; poupa principalmente nas quantas pequenas, que as grandes por si mesmas estão guardadas; trabalha, seja em que for... o trabalho é o senhor dos homens livres, é o único senhor, a cuja dependência nos tornamos independentes; não suponhas que te humilhas a homens quando te curves diante do trabalho, não tenhas escrúpulo nem vexame de exercer qualquer ocupação subalterna, faze-te soldado, soldado raso, e, quando o dever te reclamar, leva ao ponto mais arriscado e mais glorioso, essa desgraçada vida, que expões sem glória a cada instante nos braços das perdidas e nas távolas dos bêbados. Desconfia de ti próprio, sempre que não fores necessário a alguém; se não prestares para os outros, menos prestarás para ti mesmo... O coração, meu filho, só tem janelas para fora; se quiseres ser feliz, deixa que por elas te entre no íntimo a felicidade alheia... E... e... ama...

Mas a voz perdia-se-lhe na garganta, e os seus olhos, sempre imóveis a pouco se embaciavam.

Vinham-lhe ainda, todavia, aos lábios quase tão imóveis como os olhos, entre palavras de amor, o nome de Violante, o nome do pai, e o de Gabriel, e o de Virgínia, e o de Ana e de Eugênia.

O enteado, de joelhos ao lado do leito, colocou o rosto sobre uma das mãos do agonizante, abafando com elas os seus próprios soluços encharcados de pranto.

Gaspar arquejava.

Pouco depois apareceu o colega que o assistia, e disse em particular a Gabriel que o padrasto não deitaria a noite inteira.

Morreu com efeito às duas da madrugada.

O enterro, no dia seguinte, teve um grande acompanhamento, mas só de pobres; gente de sociedade quase nenhuma compareceu. O Reguinho, entretanto, se mostrou na comitiva, já grisalho e enrugado, sempre, porém, com o mesmo ar de filho-família irresponsável de todo, e sempre a mentir a pretexto de tudo.

A velhinha Benedita, essa não faltou, coitada! Toda curvadinha sobre o seu bordão, a cabecinha a tremer, e o queixo a amanducar em seco, lá foi ela se arrastando até ao cemitério de São João Batista, para rezar bem rezadinho um rosário sobre a sepultura de seu benfeitor, a quem Deus Nosso Senhor tivesse em santa guarda, com as alminhas do Paraíso, pelo muito que ele em vida fizera pelos desgraçados.