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A Condessa Vésper/XLVII

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Céus! o meirinho era o Melo Rosa, o seu primitivo cúmplice!

Mas que estranha cara tinha agora o trampolineiro! parecia raspada a caco de telha! o diabo do homem estava escamoso, descabelado e cor de brasa; não dava absolutamente idéia do que fora quinze anos antes! Que sinistro mal o poria naquele repulsivo estado?

— Não se deixe ficar aqui... É pior! segredou ele a Ambrosina, arrastando-a para um canto escuro. Trate quanto antes de apanhar o que de melhor puder carregar dentro das malas, e negue-se a futuras intimações... O escrivão ainda não chegou... Se não fizer o que lhe digo, estes cães lhe arrancarão a camisa do corpo! Mas mexa-se sem perda de um segundo! Daqui a pouco a casa estará interdita!

— Mas para onde hei de ir?...

— Tome este cartão. É de um chalé da rua dos Arcos... Lá encontrará quartos com pensão, ou sem pensão. Boa gente! Diga que vai em meu nome — eu agora me chamo Melo Júnior.

A Condessa Vésper aceitou o alvitre do seu ex-ofício transformado em beleguim, e lá foi, com um nome suposto, dar consigo ao latíbulo por aquele inculcado.

Era uma casa de ar muito tranqüilo, mas suspeito, de um luxo encardido e mofado em que as capas dos sofás e das cadeiras acolchoadas serviam, não para as resguardar do pó, mas para esconder aos olhos dos hóspedes os ultrajes do tempo e do uso. Por toda a parte cortinas, tapetes, biombos, quadros e mesinhas, tudo, porém, repuído e amolambado.

Pelo esvaziamento das portas mal cerradas, lobrigavam-se vultos brancos de mulheres em penteador, arrastando chinelas de veludo e fumando cigarros. E pelos corredores sentia-se um cheiro impertinente da cozinha de hotel.

Ambrosina, ao tomar pé nos seus novos aposentos, desatou a chorar, e foi com o coração desfeito em amargura que a reformada loureira essa noite se recolheu à cama, depois de haver jantado no Dori, para se não encontrar com o Melo Rosa, que ficara de ir ter com ela ao pôr do sol.

Mas, no dia seguinte, logo pela manhã, ao correr os olhos pelo primeiro jornal que lhe caiu nas mãos, teve uma grande alegria: na lista dos passageiros do Rio da Prata estava o nome de Gabriel.

— Que felicidade! exclamou ela, secando o vestígio das lágrimas com um sorriso.

E correu à escrivaninha, onde de um fôlego minutou uma extensa carta, que terminava deste modo:

"Venha Gabriel; não é por capricho de amor que lhe faço este pedido, mas porque me dói e me pesa na consciência todo o mal que lhe causei. Quero que me perdoe de viva voz, ou de viva voz me castigue, lançando-me ao rosto todos os insultos da sua maldição. Não me revoltarei! anátema ou perdão, hei de receber o que vier de seus lábios, como divino orvalho para esta minha pobre alma requeimada pela agonia. Se soubesse como estou mudada, como é outro o meu coração, e outro o meu espírito... Se me vir de perto, e se me ouvir por um instante, juro que terá dó de mim! Não lhe peço amor, não! sei perfeitamente qual É o alcance de todo o mal que lhe fiz; quero porém, desafogar-me dos remorsos que me devoram, quero beijar-lhe os pés depois de ser por eles batida, como um vil animal que lhe pertença; quero chorar das suas pancadas e das suas injúrias, para não chorar de vergonha e de arrependimento. Venha! É só isto que lhe suplico. Lembre-se de que ninguém, além do Senhor, resta no mundo, dos que deveras me amaram; venha ver-me neste penitencial retiro em que definho sob o obscuro nome de Elvira Branco. Será uma esmola, um serviço piedoso levado à cabeceira de uma desgraçada, que não tem ânimo de largar o mundo sem ouvir, pela última vez, a palavra do único homem que amou. Venha! seja digno do seu coração! — Ambrosina.. — Rua dos Arcos, n.o 90, primeiro andar, quarto n.o 5".

Gabriel leu esta carta sem tirar o charuto da boca, e foi, menos levado pelo reflexo do seu maldito amor, do que pela traidora curiosidade do coração, que o relapso pecador decidiu aceder à invocação da sua primeira amante.

Iria ver Ambrosina... por que não? Negar-se, ou deixar aquela humilde súplica sem resposta, seria mostrar-se receoso de um encontro, e dar por demais importância ao que em verdade já lhe não merecia nenhuma. E, caso ainda houvesse nele vestígios de saudade da estúpida paixão que lhe estragara a vida, semelhante visita os destruiria sem dúvida uma vez por todas, pois a desgraçada, se afinal se havia resignado a um obscuro arrependimento, era seguro por ver-se completamente batida e já sem cotação no mercado do prazer.

Iria ver de perto esse destroço de inimigo, e contemplar, em plena paz, os restos da desmantelada fortaleza, em que ele se chorou prisioneiro durante a melhor parte da sua mocidade.

— Sim, deve estar acabada! deduzia ele, a calcular o tempo decorrido desde que os dois se conheceram. E não é sem razão! Andará pelos quarenta anos ou perto disso... Ora, eu, que sou mais moço, já tenho cabelos brancos e rugas até na alma, ela o que não terá?...

E foi calmo, positivo, cheio de um ar prático da vida, que Gabriel entrou na precária sala de Ambrosina.

Ela apareceu-lhe toda de luto, arrastando uma grande e magoada contrição.

Não tinha consigo um jóia; traje e penteado eram de um simplicidade calculada e artística. Nenhuma tinta no rosto, nenhum artificial perfume nos cabelos. Os braços cobertos por um filó negro; na garganta, pálida e nua, um pequenino crucifixo de marfim pendente de um cordel de seda.

Como ainda está bonita!... Foi o primeiro pensamento de Gabriel, assim que a viu.

E, meio condoído pelo ar triste e resignado da ex-amante, disse-lhe em tom quase cerimonioso:

— Vê que não fiz ouvidos de mercador ao seu convite... Aqui me tem...

— Obrigada! muito obrigada! respondeu ela comovida e suspirosa, indo beijar-lhe a mão.

— Dou-lhe os meus parabéns por dois motivos, volveu o rapaz; porque está muito bem conservada e porque me parece inteiramente convertida...

— Aceito o cumprimento pela segunda das razões, mas não pela primeira... balbuciou Ambrosina, fazendo a visita tomar assento a seu lado num divã rasteiro; convertida, isso estou eu... Ah, se estou! quanto a bem conservada... não sei, nem me interessa saber. Ainda ontem, num dos meus momentos de íntima revolta contra mim mesma, estive quase, por desespero, a despojar-me dos cabelos... Imagine!

— Que loucura!..

— Loucuras foi o que eu fiz noutro tempo... e daria agora, acredite! todo o meu sangue, para me resgatar de qualquer delas!

— Como mudou, hein?

— Oh, sim, felizmente! Muito, porém, tenho sofrido e muito tenho chorado! Reconheço, entretanto, que, no fundo, não sou tão má; posso até dizer que nasci para a abnegação e para o sacrifício. Mas, não sei que revessa estrela me persegue, que maldição me acompanha desde o berço, para que eu, em toda a minha desgraçada vida, deixasse sempre atrás de mim um rastro de vítimas e uma esteira de gemidos angustiosos. Desejei vê-lo de novo, Gabriel, porque ao Senhor devo a parte melhor, mais doce e menos impura, do meu triste destino, o único instante de minha existência em que não me julguei de toda indigna de amar a Deus; chamei-o para lhe pedir que me perdoe e, se lhe merecer compaixão a dor suprema da mais perdida das perdidas, que a esta ampare sempre com a sua generosidade de homem de bem, para que não tenha ela de recorrer dê novo à prostituição, como único meio de vida que lhe resta.

E Ambrosina, cujos suspiros lhe transbordavam por entre as palavras, começou a chorar desafogadamente.

Gabriel, por simples instinto de piedade, deixou que a desgraçada lhe pousasse a cabeça sobre o colo; mas, ao encará-la rosto a rosto, ao sentir nas suas barbas as quentes lágrimas que ela vertia, e a respirar-lhe o fêmeo e ferino cheiro daquelas mesmas carnes e daqueles mesmos cabelos, em que outrora se lhe prendera cativa para sempre a alma enamorada, todo o seu passado, toda a sua louca paixão, lhe acordou por dentro num arranco de desenfreado desejo, no qual ele a chamou inteira para o corpo, cingindo-a nervosamente nos braços e devorando-lhe os lábios com beijos ardentes, doidos, famintos, enquanto da garganta lhe rebentavam velhos soluços há tempo reprimidos e esmagados.

— Eu te amo! Eu te amo! Eu te amo! exclamaram ambos, rolando-se abraçados.