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A Condessa Vésper/XXIX

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Às quatro horas da tarde, Gabriel, como prometera, fazia parar o seu carro defronte da porta do cocheiro Jorge.

Ambrosina esperava por ele já vestida, ao lado de Laura. O pai desta andava fora no trabalho, e a velha Benedita fazia as honras da casa.

Gabriel ajudou as duas raparigas a tomarem lugar na sege. E seguiram alegremente os três para Laranjeiras.

Estavam em princípio de janeiro, num dia quente, e a viração da tarde fazia pensar na sesta preguiçosa e doce.

O carro atravessou a praia e entrou no Catete. Ambrosina tinha entre as mãos uma das mãos de Laura, a quem envolvia toda com um olhar de profunda ternura.

Aproximava-se o carnaval, e as grandes máscaras de papelão, expostas nas vitrinas e às portadas dos armarinhos, davam, com as suas cores absurdas, um aspecto alegre à rua. Viam-se balançar, como bandeiras, as roupas multicores destinadas à mascarada. Mulheres do povo brincavam entrudo com grande algazarra, e um português gordo, em mangas de camisa, queimava bichas chinesas ao lado de um quiosque.

O bairro parecia em festa.

Gabriel, entretanto, ia preocupado. Agora, que se aproximava o momento de partir, caía a pensar constantemente no padrasto. O bom amigo ia ficar sentido com aquela viagem. Mas que fazer?... Estava porventura em suas mãos desmanchá-la?... Perdido por pouco, perdido por muito! Agora, não era possível voltar atrás!...

E, para explicar-se com a consciência, dizia covardemente de si para si:

— Ora! O que tem de ser, traz força!

Ambrosina interrogava-o vagamente sobre o que fizera ele durante o dia.

Gabriel declarou que se achava tudo pronto, mas que encontrara grande dificuldades para obter o passaporte, porque ele não queria anunciar a sua partida, nem queria ocupar tampouco alguma pessoa de confiança que o abonasse.

E, depois de circunstanciar esse e outros fatos, declarou que já se não podiam arrepender... Só faltava embarcar!

— Parece-me que tens pena de deixar o Rio de Janeiro!...

— Que me importa o Rio, contanto que eu te tenha a ti!

E olharam-se com amor.

Laura não dava uma palavra; tinha o olhar disperso. Não se animava de encarar com Gabriel.

Estava cativadora. Vestia linho pardo, debruado de cadarço branco. A flexibilidade do seu corpo desenhava-se bem com aquela roupa inteiriça. Não levava outra jóia além de uma pequenina cruz de ouro sobre o peito. O chapéu de palha de Itália dava-lhe à fisionomia uma doçura admirável. Seria difícil dizer em que ia pensando aquela cabecinha!

E assim chegaram os três à casa de Laranjeiras.

Gabriel havia cambiado sua notas do Tesouro por dinheiro em ouro e saques bancários ao portador. E o esterlino ruído do metal, que ele acondicionava em uma gavetinha de segredo da secretária, fazia estremecer Ambrosina, que ao seu lado o apoquentava com perguntas.

Laura, estendida num divã da sala de visitas, alheia a tudo que a cercava, embalava-se nos seus sonhos, a cabeça caída sobre a almofada, os braços em abandono, os olhos meio cerrados, o pensamento solto.

Gabriel conversava com a amante, a mostrar-lhe o passaporte, o bilhete de viagem; e pouco depois, chegava um homem carregado de objetos que ele havia comprado na cidade, quase tudo roupa branca, mantas, agasalhos e charutos.

Jantaram à noite o que veio do hotel!

A manhã do dia seguinte correu sem novidade. O vapor, por motivos de moléstia do comandante que fora à última hora substitui-lo, só sairia ao pôr do sol. Gabriel andava atarefado; não sabia para onde voltar-se! Tinha ainda tanto que fazer!

Mas Ambrosina o tranqüilizava: Que não se incomodasse ele absolutamente com as malas; ela se encarregaria de tudo. Gabriel que fosse tratar de saber se Jorge tomara as providências necessárias para prender Melo Rosa.

Isso é que mais urgia!

Gabriel, porém, onde poderia encontrar o cocheiro?... Em casa era inútil procurá-lo àquela hora; já passava das onze. Saiu. Foi à residência do padrasto nada obteve. A criada, todavia, disse-lhe que o cocheiro pouco antes ganhara a rua muito azafamado.

— Onde o poderei encontrar agora?...

Gabriel desceu preocupadamente a escada; levava o chapéu atirado para trás, a cara Talvez no largo de 5. Francisco...

banhada de suor.

Ao chegar à porta, encontrou um portador de Ambrosina à sua espera.

O que temos.? perguntou surpreso.

— Esta carta, que a patroa mandou entregar a vossemecê com toda a pressa.

— Que novidade será?

Era a carta combinada entre Ambrosina e Melo Rosa no sobrado da rua da Misericórdia.

Gabriel sobressaltou-se ao lê-la. Ora, mais essa! O Jorge sofrer aquele dia uma penhora! Era só o que faltava!

— Mas, com os diabos! exclamou ele, consultando o relógio. Não há tempo a perder! Praia do Russell! A toda a força! gritou ao cocheiro, volvendo ao seu carro.

E o carro disparou como um raio.

Apeou-se defronte da casa do Jorge. Um velho de longas barbas, estava assentado ao limiar da porta, saiu-lhe ao encontro e perguntou com ar triste:

— O senhor naturalmente é o Dr. Gabriel?...

Sim. Que é do Jorge?

— Não me pergunte por ele! Uma grande desgraça!

E o velho limpou os olhos.

Gabriel deu um passo para entrar na casa do cocheiro.

— Não entre! exclamou o outro, sempre comovido. Não está aí ninguém!... A justiça fez a sua visita e não se pode tocar no que lá está! O senhor bem sabe que o Jorge não pode apresentar o dinheiro e...

— Mas, que dinheiro? Que trapalhada é esta? O que tudo isto quer dizer? Explique-se por uma vez!

O velho fez um gesto de tolo, e falou confusamente em penhora, em dívida, em homens armados, mas sem explicar ao certo cousa alguma.

— Cada vez entendo menos! disse Gabriel, já impaciente.

E releu o bilhete de Ambrosina, que tirara da algibeira.

— Uma grande desgraça! respirava de vez em quando o velho, a sacudir tristemente a cabeça.

— No fim de contas, o que faz você aqui?...

— O Jorge disse-me que o esperasse..

— A quem, homem?!

— Ao senhor...

— E para quê?

— Para lhe dizer o que se passou e indicar-lhe o lugar em que ele está...

— Pois, se foi para você dizer-me o que se passou nesta casa que Jorge o deixou aqui, podem os dois limpar as mãos à parede, porque fiquei na mesma! Não haverá por aí alguém com quem me entenda!...

— Não há, não, senhor... Foram todos para a Ilha...

— Que ilha, criatura?

— A ilha dos Cães...

— Mas que diabo foram fazer lá? O que demônio aconteceu aqui?

— Para falar a verdade, não sei, meu rico senhor... Não entendo destas cousas! Sou amigo velho do Jorge... cá estava a cavaquear um pedaço com ele, quando chegam dois sujeitos, armados de tinteiro, pena e papel, e vão entrando, sem mais nem menos, pela casa, a tomarem nota de tudo que encontram... O Jorge pôs-se a chorar como um perdido... Quatro homens, que acompanhavam os do tinteiro, lançam-lhe a mão e o intimam a seguir para a ilha! Ora, aí está tudo o que se passou!

— E ele foi?...

— Foi, sim, senhor! E pediu-me, por tudo, que não saísse aqui da porta enquanto V. S. não chegasse e recebesse o recado...

— Que recado?...

— O recado é que ele pede à V. S. que faça o favor de dar um pulo até lá onde ele está. É questão de um instante! O Jorge deixou um escaler já preparado. Se V. S. quiser, eu o levo e trago num abrir e fechar de olhos!...

Gabriel hesitava perplexo; consultava o relógio e a carteira. Que significaria tudo aquilo... A carta de Ambrosina e as vagas palavras daquele velho idiota punham-lhe a cabeça a arder.

— Sabe se, antes da chegada do tais sujeitos, havia o Jorge recebido alguma intimação da justiça?... perguntou ele, depois de um silêncio de alguns segundos.

O velho respondeu que não sabia.

— Ora sebo! gritou o rapaz. Afinal, estou sempre na mesma!

— O Jorge é quem lhe poderá dizer tudo, patrão! Não vale a pena arreliar-se! Se quiser falar com ele, o escaler está às ordens.

Gabriel passeava de um para outro lado, procurando descobrir o fio da meada.

— Ah! exclamou ele de repente. Já sei!

E concluiu de si para si que o Melo Rosa fora prevenido das intenções do Jorge a seu respeito, e engendrara aquele meio de desfazer-se do cocheiro.

— Não é outra cousa... resmungou. Verão que não é outra cousa!...

E, convencido do que pensava, deu um novo curso ao seu raciocínio: Ainda não eram duas horas; o vapor só levantaria ferro às seis e meia... Às três podia ele estar de volta, já entendido com o cocheiro, e apto por conseguinte a tomar qualquer resolução enérgica contra o Melo. Se fosse preciso, podia até queixar-se à polícia... ali andava com certeza grande abuso! o que convinha era prevenir Ambrosina que se acautelasse contra alguma armadilha... O Melo Rosa pagaria caro aquela brincadeira! mas, por então, urgia que Gabriel se entendesse com Jorge...

— Onde está o escaler?! perguntou ao velho.

— Ali mesmo, patrão. É só descermos um pouco... Aqui é costa...

— Mas, preciso de um portador para as Laranjeiras, observou o rapaz, escrevendo um bilhete a lápis, no qual relatava à Ambrosina as suas desconfianças e lhe aconselhava toda a cautela com o Melo. É verdade! o carro em que vim pode servir. Chame o cocheiro.

O bilhete foi expedido, e Gabriel acompanhou o catraeiro até à entrada da praia do Flamengo.

— Aqui está o bote! disse o velho, apontando para um escaler preso ao cais. Isto é decidido! Corre que nem um carapau!

A embarcação, nova e garbosa, balouçava-se voluptuosamente na cadência da vaga.

Fazia um tempo abrasador e cheio de luz.

A baía reverberava ao sol. As montanhas erguiam-se cruamente do seio das águas, que as refletiam por inteiro.

Havia dois homens no escaler. O velho entrou nele agilmente e, depois de ajudar Gabriel a embarcar, assentou-se ao leme, e gritou para aqueles em voz de comando:

— Toca!

Abriram-se os remos, e o bote ganhou a baía arrancando um galão farto de cada vigorosa braceagem dos tripulantes.

Em breve distanciaram da terra, deixando atrás a fortaleza de Villegaignon.

O velho ergueu então a cabeça. O seu primitivo ar de ingenuidade desaparecera de todo, substituído por uma áspera catadura de lobo do mar.

— Ao largo! disse ele com autoridade.

— Para onde diabo vamos nós? perguntou Gabriel.

Não lhe responderam.

— Onde fica a tal ilha?

O mesmo silêncio.

— Mas, com todos os diabos! você zombam de mim?!

O velho, sem desfranzir as sobrancelhas, tirou do peito uma carta e entregou-a ao seu interlocutor.

Era de Melo Rosa e dizia o seguinte:

"Caro Sr. Dr. Gabriel.

"Ao ler esta, estará V. S. cheio de apreensões e receios. Dissolva-os — nada lhe sucederá, a não ser o malogro da partida com Ambrosina.

"V. S. recuperará a sua liberdade somente à meia-noite, quando a referida senhora já se achará comigo em viagem para fora do Império. Os homens, que V. S. tem defronte de si e que o guardam à vista, são de confiança e estão pagos para não o deixarem fugir; escusa, por conseguinte, tentar qualquer meio que for de encontro ao que determinei.

"Sinto que isto o faça ficar desapontado; mas o que quer? Tenho paixão por Ambrosina; ela consentiu em acompanhar-me, e eu lancei mão dos meios que pude para consegui-lo.

"Adeus e perdoe-me, se não pude evitar o desgosto que lhe dou.

"Seu amigo e criado. — M. R.".

Quando Gabriel acabou de ler a carta, os remadores haviam já recolhido os remos, e o escaler permanecia no mesmo ponto, a jogar suavemente à mercê das ondas.

O amante traído sentia-se estrangular pela raiva. Crescia-lhe na garganta um novelo áspero que sufocava.

Suas primeiras palavras foram para pedir água. O velho apresentou-lhe uma ancoreta cheia dágua e uma garrafa de conhaque.

Gabriel bebeu de ambos e ergueu-se.

— Querem você enriquecer hoje mesmo?! perguntou ele aos homens.

Estes voltaram apenas o rosto.

— Dou-lhes uma boa quantia, se me puserem já em terra!

O velho sorriu e meneou negativamente a cabeça.

— Raios os partam! Miseráveis! exclamou Gabriel a esmagar na mão fechada em soco o seu chapéu de feltro.

Consultou o relógio; marcava três e meia. Se aquele maldito velho quisesse, ainda havia tempo de alcançar Ambrosina!

Pense bem... disse-lhe em voz baixa. O Senhor está velho, precisa descansar... Eu sou rico... posso dar-lhe com que adoçar os seus últimos dias...

— Quanto?...

— Uns cinco contos de reis...

— É pouco!

Dez!

— Deixe-me vê-los?

— Ah! não os tenho aqui comigo, decerto, mas dou-lhos em terra...

— Já não como araras com penas!...

— Juro-lhe, sob palavra, que lhe dou o dinheiro

— Mais vale um pássaro na mão que dois a voar!...

— Afianço-lhe que os meus dez contos são mais seguros que outro qualquer pagamento!...

— Pois então assine um depósito da quantia...

— Assino! anuiu Gabriel, procurando o seu lápis.

— Não, ocorreu o outro; tenho cá com que pôr o preto no branco... e as competentes estampilhas.

E sacou da caixa de popa uma escrivaninha perfeitamente guarnecida, que passou às mãos do rapaz.

— Seu nome? perguntou este.

O velho respondeu firmemente:

— Antônio Leão Cerqueira, para o servir.

Gabriel lavrou o documento de dívida.

— Aí o tem... disse, entregando-o ao carteiro.

Este leu e releu o escrito, dobrou-o depois, meteu-o na algibeira das calças.

— Torce pra terra! rosnou aos tripulantes. E o escaler virou de bordo.

— Depressa! gritou Gabriel. Não temos tempo a perder! Depressa!

E logo a cidade parecia vir a seu encontro, tal era a rapidez com que o escaler deslargava para a praia.