A Confederação dos Tamoyos/Canto IX
ARGUMENTO.
Voltam os Tamoyos a Iperohy, enterram os seus mortos, e Coaquira cura os feridos.— Casamento de Aimbire com Iguassú, e de Ernesto com Potira.— Chegada de Nobrega e de Anchieta, que são bem recebidos e obsequiados.— A missa.— Reunem-se os chefes para ouvirem as proposições de paz, que lhes trazem os Missionarios.— Falla Aimbire, Anchieta, e o Francez Ernesto.— Conclusão do concilio.— Parabuçú e alguns Indios tentam assassinar os dous religiosos, mas á vista delles recuam.— Dissipa Aimbire todas as más intenções contra os seus hospedes.— Resolve-se Nobrega a partir para São-Vicente, a fim de concluir a paz com os Tamoyos, entre os quaes fica Anchieta.
CANTO NONO.
De volta a Iperohy, sitio selvoso,
Perto do Cairuçú e de Ubatuba,
Os Tamoyos seus mortos enterraram
No meio do alarido das mulheres,
Que oito dias choraram sobre as campas.
Entre todos Coaquira, apregoado
Tanto pela sciencia excelsa e humana
Que ousa á morte se oppor sanando os males,
Quanto pelo alto dom dos sacros hymnos,
Cuidadoso os feridos animando,
Por modos varios lhes curava as chagas:
E dest’arte mostrava quanto é certo
Que o amor do bem, ao da verdade unido,
Pelo instincto do bello se revela.
Não te enganaste, veneranda Grecia,
Quando do sabio deos da Poesia
Filho julgaste o deos da Medicina!
De uns Coaquira acalmava as crueis dores
Com folhas virtuosas, que a Natura
Abundante produz nestas florestas;
De outros, co’um dente afiado abrindo as veias,
Correr deixava o rescaldado sangue;
A outros, ao calor de brando fogo
Os mal feridos membros de alto expondo,
Lhes seccava os humores e os curava.
Oh! por mais que infeliz e desgraçado
No estado de bruteza o homem caia,
Sempre da intelligencia a luz que o aclara
Sua origem revela e seu destino!
Aimbire cada vez mais fero e ousado,
Dos seus Tamoyos exaltando os feitos,
Para um novo combate os incitava.
« Nascemos para a guerra; assim dizia:
E o ocio é só dos vís. Pouco nos falta
P’ra extinguir essa raça de tyrannos.
Vingança Jagoanharo está pedindo.
E quem não quererá vingar o amigo?
Deixaremos em paz os que o mataram?
Impunes ficarão, jactanciosos,
Chamando-nos talvez vís e cobardes?
Cobardes nós? Jamais! antes a morte. »
Julgando os votos seus ter já cumprido
Co’o passado combate, em que a victoria
Posto que dubia para si tomára,
E por ter para nova sepultura
Os ossos de seu pai já trasladado;
Aimbire, dando a filha promettida
Ao Francez, que em consorcio lhe a pedira,
Quiz tambem premiar seus proprios feitos,
E esposo de Iguassú se declarára,
Mas só no nome esposo, p’ra a seu lado
Ver o lindo botão desabrochar-se,
Té que possa fruir de amor o nectar.
Assim destas impuberes esposas
Soem os Indios respeitar severos
A virginea innocencia, até que chegue
Das delicias a aurora. Ah tão brutos,
Tão lascivos não são, que avidos colham
De amor o fructo verde! Amava Aimbire
A sua tenra esposa, como um lyrio
Prestes a abrir o calice mimoso
Aos beijos do colibri: mas nos bosques,
Onde a Natura pouco esconde aos olhos,
O amor, sem o incentivo do mysterio,
Não mata, não subjuga os duros peitos,
Que da guerra o furor sómente inflamma.
Pindobuçú, Coaquira, e os dous amantes
Juntos em fresca tarde respirando
As auras de Ubatuba, reclinados
Na verdura de um combro ao mar fronteiro,
De elevadas ideias se occupavam.
Relatava Iguassú quanto aprendêra
Da esposa de Ramalho, e de Anchieta
Sobre as cousas de Deos e da outra vida,
E convencida quasi se mostrava:
O pai, o velho com prazer a ouviam.
Aimbire, referindo o estranho sonho,
Ou nocturna visão, que Jagoanharo
Indo p’ra São-Vicente lhe contára,
Dos seus sobre o destino meditava,
E sobre esse futuro annunciado.
« Eu creio, elle dizia, que a doutrina
Desse Filho de Deos qu’elles mataram
É na verdade boa. Muitas vezes
A Lery e a Richer ouvi com pasmo
Fallar de um Deos tão bom, que é mesmo pena
Que por gente tão má morrer quizesse,
E depois lá do céo inda a proteja.
Todos esses que vem em nome delle,
De diversas nações e varias línguas,
Em guerra sempre estão uns contra os outros,
Lá mesmo em suas terras; e aqui dizem
Que o seu Deos não quer guerra! Todos elles
Só tratam de viver á custa alheia.
Oh! e quão loucos são, e ambiciosos!
Por um pouco de pó, por uma pedra,
Por um tronco de páo elles se matam!
Parece que tem medo que lhes falte
Terra e mar, ar e céo, aves e bosques!
Si fossemos fazer o que nos dizem
Esses seus Abarés, em paz deixando 1
Essa gente de tudo apoderar-se,
O que fôra de nós? Ah bem depressa
Seriamos nós todos seus escravos!
Eis porque com tal gente paz não quero. »
Assim fallava Aimbire, quando viram
Esquipada canôa sobre as ondas
A praia demandando. Indios possantes
Afanados em pé vinham remando.
Distinguiram dous vultos assentados,
De longas, negras tunicas vestidos.
Iguassú mal que os vio reconheceo-os:
– É Nobrega o mais velho, o outro Anchieta!
– Vamos ver o que querem. – Logo os quatro
Para a beira do mar promptos desceram,
E em torno alguns Tamoyos se agruparam.
Já no alcance da voz erguem-se os padres,
E Nobrega assim falia:
« A vós, sem armas
Nós ministros de Deos nos entregamos.
Sabemos que sois bons, quanto sois bravos;
E que jamais Tamoyos recusaram
Agasalho seguro ao estrangeiro.
Mas si quereis em nós, que vos buscamos
Com propostas de paz, vingar affrontas
Que os nossos vos tem feito, eia, Tamoyos,
Disparai vossas flechas; nossos peitos
Expostos aqui stão a recebel-as,
Sem qu’os defendam nossas mãos inermes. »
– Quem nos procura em paz nos acha amigos;
Podeis desembarcar. Jamais Tamoyo,
Para dar agasalho ao estrangeiro,
Perguntou-lhe quem era, e o que queria.
De mais, ha entre nós quem vos conheça. –
Com tal resposta do sincero Aimbire,
Ferrou o lenho a praia; e os Missionarios,
Sahindo em terra, recebidos foram
Com grande acatamento. As mãos beijou-lhes
Respeitosa Iguassú, não deslembrada
Desse uso que aprendêra em São-Vicente;
E a todos mui festiva ía dizendo:
« Eis os dous Abarés nossos amigos!
São estes de quem eu vos tenho dito
Que fallam com seu Deos. De dia e noite
Para fazer-nos bem stão sempre promptos. »
Todos os principaes lhes offreceram
Suas pobres palhoças, mas Coaquira
Por mais idoso a preferencia teve;
E alegre os conduzio para seu pouso,
De toda aquella gente acompanhado.
P’ra que nada aos seus hospedes faltasse
Cada qual lhes levou algum presente
De cuias de farinha, aves e peixes,
Igaçabas de vinho e varias fructas;
E em frente da cabana de Coaquira,
Á sombra de frondosos cajueiros,
No chão pozeram tudo, sobre folhas
De banana e de inhame; e convidando
Os seus illustres hospedes p’ra meza,
Assentaram-se em roda, e sem ceremonia
Em boa paz comeram; reservando
Para o crastino dia a embaixada,
E as propostas de paz e de amizade.
Vinda a hora de dar repouso ao corpo,
Suspenderam nos cantos da cabana
Duas rêdes de palha recamadas
De pennas de sahís e de tucano;
E com ellas á escolha lhes pozeram
Lindas jovens, que os padres recusaram,
Não sem pasmo de gentes tão singelas.
Mal que a aurora raiou ao som do canto
De milhões de canóros passarinhos,
Os nossos eremitas, ajudados
Por Coaquira e alguns outros, prepararam
Tosco altar verdejante e mui florido,
Á sombra de um coqueiro, em cujo tronco
Pendia um Crucifixo, e cuja rama
De aberta e verde umbella lhe servia.
Alli o padre ancião e o companheiro,
Em alta voz cantando, celebraram
O primeiro incruento sacrificio
Que viram esses bosques. Curiosos
E pasmados os Indios, mui attentos,
De Anchieta e de Iguassú seguindo o exemplo,
Em pé ou de joelhos assistiam.
Muitos até, co’as mãos no rosto errando,
O signal de christão contrafaziam.
Entre esta gente inculta não se acharam
Templos, altares, idolos e culto;
Mas si em Tupan, seu Deos, acreditavam,
Si ouviam aos Payés, e si temiam
Os crueis Anhangás, talvez tivessem
(E quem o negará?) um culto interno,
Ou danças ou cantigas consagradas
Á deidade do bem, do mal aos genios!
Findo o sacro mysterio, os Missionarios
Co’os Caciques Tamoyos em concilio
Paz p’ra sempre e amizade propozeram,
Mostrando os gratos bens que fundiria
Para os Indios e Lusos a concordia.
Pró e contra razões se levantaram.
Em silencio os ouvintes sempre attentos,
As queixas e as respostas escutando,
Jamais o orador interrompiam.
« Em fim, Aimbire disse, si é verdade
Que desejais viver em paz comnosco,
Entregai-nos os nossos prisioneiros,
Que tendes como escravos, e com elles
Tambem Tibiriçá e Cunhambéba,
Caioby, e esse Dias, que atreveo-se
A raptar Iguassú. Estes punidos
Devem ser pelo mal que nos tem feito.
Não podemos ter paz co’os tres traidores,
Que contra seus irmãos vos dão apoio. »
Como a eloquencia apraz té aos selvagens,
E a palavra aquecida e perfumada
De santa inspiração abala os peitos,
A colera dissipa, o amor inspira,
E augmenta da razão a força e o brilho;
O venerando Nobrega, que via
Quanto o seu companheiro moço e ardente,
Mais versado na Túpica linguagem,
Com prazer pelos Indios era ouvido,
Pedio-lhe que ao Tamoyo respondesse;
E Anchieta obedecendo orou dest’arte:
« Sabei, bravos Tamoyos, que nós somos
Servos d’aquelle Deos auctor do mundo,
Qu’é pai de todos nós, e nos ordena
Que os homens todos como irmãos amemos.
Nós vos amamos, sim; e si affrontamos
Os perigos do mar e as vossas frechas,
É só p’ra obedecer ao seu mandado.
O mandado de Deos é que a verdade,
Luz eterna das almas, mais sublime,
Mais grata que esta luz que aos olhos brilha,
Vos seja em fim mostrada, dissipando
A noite em que viveis immersos no erro.
Como ao raiar do sol se abrem os olhos,
E tudo alegre renascer parece,
Assim abrir-se devem vossas almas
Á verdade que Deos por nós vos manda;
Então renascereis p’ra f’licidade,
E alegres saudareis a nossa vinda.
Crede-nos pois, Tamoyos! vis enganos
Não espereis de nós. O que for justo,
Sem que vós o peçais, nós vos faremos.
Em breve vos serão restituidos
Quantos dos vossos temos prisioneiros:
De amigos, não de escravos precisamos,
E si os fazemos trabalhar comnosco,
É que o trabalho aperfeiçôa o homem;
E os que comnosco a trabalhar se avesam,
E aprendem nossas artes, nossos usos,
Se ufanam de saber mais do que os outros,
E ao antigo viver voltar não querem.
Mas tu pedes, Aimbire, que te entreguem
O desgraçado Dias? E quem póde
Dar-te agora o que pedes? Ah! punido,
Bem punido elle foi! Talvez tu mesmo,
Nessa noite fatal p’ra São-Vicente,
Fosses quem lhe cravou no corpo a morte
Co’uma setta, que o peito atravessou-lhe.
Mortalmente ferido, pouco tempo
Após, em dura angustia blasfemando,
Morreo como vivêra o pobre Dias.
Onde estará sua alma? Ah! Deos piedoso
Como bom pai as culpas lhe perdôe.
Quanto a Tibiriçá, a Cunhambéba,
A Caioby, que pedes; onde, Aimbire,
Onde está a bondade de tua alma?
Onde a tua grandeza e lealdade,
Que uma perfidia assim de nós reclamas?
Que fé te merecêra quem trahisse
Deste modo os deveres da amizade?
Si algum nosso inimigo, algum Tapuya
Viesse aqui pedir-te as nossas vidas,
Tu, Aimbire, com quem juntos comemos,
Nos entregáras tu aos seus caprichos?
Não: jamais um Tamoyo tal fizera!
E jamais nós christãos tão vis seremos
Que amigos entreguemos tão sinceros.
Não, Aimbire, jamais! antes a morte.
E si a paz como espero celebrarmos,
Si fordes todos vós nossos amigos,
Tambem por todos vós o nosso sangue
Daremos com prazer, como por esses
De quem somos amigos, e o seremos. »
Assim fallou Anchieta, e os circumstantes
Co’um ligeiro sorriso á flor dos labios,
E um olhar entre si, o applaudiram.
E o mesmo Aimbire, que melhor que todos
Da palavra os encantos conhecia,
Posto que de vingança sequioso,
Cedeo á força da razão sublime,
E calmo respondeo por este modo:
« Apraz-me o teu fallar sincero e livre:
E si todos os teus tão leaes fossem
Como tu e o teu velho companheiro,
Jamais guerra entre nós teria havido.
A vós ambos conheço, e vos respeito,
Porque a minha Iguassú, a quem salvastes,
Grandes cousas de vós me tem contado;
Que o futuro sabeis como o presente,
E conversais com Deos, que vos concede
Tudo quanto pedís. Sei, qu’ella o disse,
Que na casa de Deos orando estaveis
Pelos vossos, na noite do combate,
Quando do céo não sei que mensageiro
A ti descendo, Anchieta, a ordem deo-te
De entregar-me Iguassú, e assim salval-os.
Eu não sei porque modo, ou porque força,
Quando com Iguassú me appareceste,
Teu olhar, teu aspecto fascinou-me,
A mim que dos Payés desprezo o mando!
« Mas quem foi que tocou a retirada,
Nesse momento que eu comtigo estava?
O primeiro signal cuidaram todos
Ser da inubia do bravo Jagoanharo;
E nesse engano os chefes o imitaram.
Mas não foi elle, ah não, que morto estava!
Quem foi então o auctor da vil astucia?
Em que mãos essa inubia atraiçoou-nos?
Sabei pois que si então nos retirámos,
Por esse engano foi, não por fraqueza.
Mas emfim esqueçamo-nos de tudo;
E por amor de vós de paz tratemos.
Uma só condição eu vos proponho,
Mas justa condição, boa p’ra todos.
Fiquem os Portuguezes muito embora
Com todas essas terras já tomadas
Aos filhos dos Tupís e dos Tapuyas,
Mas deixem-nos em paz no Guanabara:
Respeitem estas terras que habitamos;
Nunca mais aqui venham saltear-nos,
E roubar-nos os filhos e as mulheres;
Podem, sim, vir trocar o que quizerem
Comnosco em Nitheroy; porém não tentem
Jamais alli ser donos de um só palmo
Dessa terra, que é nossa; nem se atrevam
A roçar e a queimar nossas florestas,
E a vir edificar casas e villas.
Jamais, jamais consentirei que o façam.
Assim teremos paz, senão, só guerra! »
Todos os Indios com prazer o ouviram,
E justa a condição acharam todos.
Mas Anchieta, que nada promettia
Com tenção de illudir, assim replica:
« Bravos Tamoyos, bem fallára Aimbire,
E a sua condição mui justa fôra,
Si de terras sómente se tratasse.
Terras e terras temos nós de sobra
Por todo o mundo, aquem e além dos mares.
Mas sagrado dever por Deos imposto
Nos obriga a tratar das vossas almas.
Esqueceis-vos talvez que a luz de Christo
Deve raiar p’ra vós? Qu’elle nos manda
Prégar-vos a verdade, e conduzir-vos
Á graça, á salvação, e á liberdade?
Não essa, que vos faz andar errantes,
Mas a que livra o homem do peccado,
Do dominio do inferno e da ignorancia.
E como este dever cumprir podemos
Si no meio de vós não habitarmos,
Para bem vos servir, edificando
Igrejas, casas, villas, onde o exemplo
Acheis das boas obras co’a doutrina
Que á civilisação guiar-vos devem?
Homens incultos n’uma terra inculta,
Sem haver quem os tire da ignorancia,
Naufragos são em vasto mar perdidos,
Que a morte bebem no volver das ondas.
Deos, que o mundo creou, e fez o homem
Dotado de razão e á imagem sua,
Quer que o homem tambem trabalhe e crie,
E por isso nos deo a terra bruta:
E quem desobedece á lei suprema,
Cultivar desdenhando a si e a terra,
Quasi que perde a natureza humana.
Vêde que desejais o proprio damno! »
Com ar de reflexão, que denotava
Desejo de acertar em bivio estranho,
Ia Aimbire fallar, quando temendo
Que elle fosse acceder, assim o atalha
O Franco Ernesto, de Potira esposo:
« Aimbire, antes de unir-me á tua filha
Já tinha unido a minha sorte á tua,
Certo que tu jamais consentirias
Em ter paz e amizade com tal gente,
que de terra e de escravos não se farta.
De mais lhe tens cedido. E vós, Caciques,
Não acabais de ouvir os seus intentos?
Bem preciso ante vós fallou Anchieta.
Do bello Nitheroy nas ferteis margens,
Que ha muito os Portuguezes vos disputam,
Querem elles erguer villas e igrejas,
E assim a seus escravos reduzir-vos,
E de todo esbulhar-vos dessas terras,
Dessas tão poucas terras que vos restam.
E onde estarieis já sem o soccorro
Que os Francezes amigos vos tem dado
Na defesa dos vossos patrios ninhos?
Onde irieis agora, como as aves
Chorando quando os ninhos vêem tomados
Pelas serpes, que os ovos lhes devoram?
Onde irieis achar remoto asylo
P’ra tão grande furor de perseguir-vos?
Promette-vos Anchieta doutrinar-vos,
E instruir-vos na lei de Jesus Christo!
Mas quem de vós lhe pede esse serviço,
Que caro pagareis co’a liberdade?
Falta acaso entre nós quem vos instrua?
Não temos nós Lerys, Richers não temos,
Chartiers, e outros muitos, que a verdade
Melhor mostrar-vos podem, sem roubar-vos
A vossa liberdade e independencia?
E em troco desses bens, que a tudo excedem,
Que outro bem estes padres vos promettem?
A civilisação?… Fatal presente!
A civilisação qual dar-vos podem,
Qual ao vencido o vencedor concede,
Vos inspirára horror si a conhecesseis.
Eu, que nella nasci, eu que a conheço,
Della fugi p’ra sempre. Embora digam
Que homens incultos sois em terra inculta:
Antes, antes assim. Aqui ao menos,
Longe dessas nações civilisadas,
Somos todos iguaes. Ninguem de fome
E afadigado morre sem asylo,
A par do rico, que no fausto vive
Á custa do suor da pobre gente!
Aqui o que Deos dá pertence a todos.
Aqui não ha tyrannos, nem escravos,
Não ha ferros, prisões, não ha fogueiras,
Que elles do Santo Officio denominam,
Onde frades infames, furibundos,
Queimam por cousas vãs as creaturas,
Homens, mulheres, velhos e crianças!
Oh vergonha da Europa! E Reis, e Papas
Protegem essa infamia ! Oh crime horrendo!
Oh impostura atroz!… Filhos dos bosques,
Homens da Natureza! Deos vos livre
Da civilisação que dar-vos querem.
Outra sorte melhor vos reservamos,
Nós, que de tantos crimes indignados
Fugimos para sempre á velha Europa.
Nós, que viver comvosco desejamos
Como vossos irmãos, como homens livres,
Ensinando-vos tudo o que sabemos.
Comvosco em Nitheroy p’ra sempre unidos,
Pelos laços de amor e de amizade,
Uma nação faremos, nova e grande,
Livre, forte e temida, e sem exemplo.
Para nos proteger nesta alta empreza
Temos em Nitheroy novo soccorro
De algumas náos francezas, apinhadas
De homens todos como eu vossos amigos.
Outras viráõ após com gente nova.
Nada temais, Tamoyos! Decididos
Podeis zombar dos inimigos vossos,
E dizer corajosos: – Portuguezes,
Paz comvosco e alliança não queremos. »
Bem respondêra Anchieta ao calvinista,
Si Aimbire interrompendo não bradasse:
« P’ra que tanto fallar inutilmente?
O qu’eu disse está dito; e terminemos.
Restituam os nossos prisioneiros;
E si quizerem paz, em paz nos deixem. »
E á longa discussão assim poz termo.
Ia soando a nova que chegados
Eram a Iperohy os Missionarios,
Dos quaes dizia Ernesto, e alguns selvagens,
Serem duas espias disfarçadas,
Vindas p’ra ver o campo dos Tamoyos,
E dar aviso aos seus, que após viriam
Por sorpresa atacal-os. Como o embuste
Azas parece ter, e accesso facil
No humano coração, a crer propenso
Sempre em tudo que é máo; um tal boato
Pelos sertões voando, e logo crido,
Alvoroçava os animos dos Indios,
Que em chusmas vinham p’ra matar os padres.
E até Parabuçú, que longe estava,
Correo a Iperohy, dos seus seguido;
E inopinado entrando na cabana
Que abrigava os dous santos eremitas,
Os achou de joelhos, co’as mãos postas;
E suspenso ficou, vendo esses corpos
Que o continuo jejum emmagrecera;
E essas mãos descarnadas, e essas faces
Pallidas, transparentes como a cêra
Que se queima no esquife dos finados;
E com pasmo os olhava. A voz erguendo,
Calmo lhe disse Anchieta: « P’ra que tantos
E armados contra duas creaturas
Fracas e sem defesa? Uma criança
P’ra tirar-nos a vida bastaria!
Eia, Parabuçú! Eis-nos immoveis;
Bem nos podes matar como quizeres. »
Envergonhado o Indio retirou-se,
Dizendo aos companheiros: « Dai-lhes antes
Alguma cousa que lhes mate a fome,
Que elles de fome e de fraqueza morrem. »
Soube Pindobuçú que era chegado
Seu filho a Iperohy com tal intento;
E já corria a soccorrer os padres,
Quando com elle, que d’alli voltava,
No caminho encontrou-se; e ouvindo o caso,
Disse: « Oh Parabuçú, meu bravo filho,
Tu me enches de alegria por não teres
Manchado as tuas mãos no sangue insonte
Dos grandes Abarés nossos amigos.
Respeita-os sempre, e nunca mais medites
Fazer-lhes mal algum; antes defende-os. »
Porém alguns dos Indios, não convictos
Da virtude dos dous religiosos,
Apezar dos esforços de Coaquira
E de Pindobuçú em defendel-os,
Contra elles murmurando, persistiam
Na barbara intenção de assassinal-os.
O que sabendo Aimbire, irado e presto
Foi ter co’os turbulentos, e lhes disse:
« Saibam todos qu’eu dei minha palavra
A estes Abarés, que aqui podiam
Comnosco estar sem susto; e quem matal-os
Co’a vida pagará o infame arrojo. »
E assim os máos intentos se acabaram.
Tendo dest’arte os padres conseguido
Dos Tamoyos ganhar a confiança,
Disse Nobrega a Anchieta: « É necessario,
Irmão José, que o tempo aproveitemos,
E que vá um de nós a São-Vicente
Patrocinar a causa destes Indios;
Dizer o que aqui temos visto e feito;
Pedir que os prisioneiros restituam
Para satisfação do nosso empenho;
Escrever p’ra Lisboa, e p’ra Bahia,
Rogando a Mem de Sá que sem demora
Mande gente p’ra o Rio de Janeiro
Fundar uma cidade, antes que o façam
Os astutos Francezes protestantes,
Que com grandes promessas e bom trato
Vão ganhando a affeição destes selvagens,
E com tal arte aos nossos se avantajam;
Que infelizmente os nossos Portuguezes
Querem tudo levar a ferro e fogo.
E quem de nós ficar, não fica ocioso,
Que tem de apostolar entre gentios,
Entregue a privações, á morte exposto,
E sujeito aos embustes do demonio.
De todos estes inimigos do homem
Na lucta assidua triumphar deve elle
Para gloria de Deos, e honra da igreja. »
« Padre, responde Anchieta, si consentes,
Escolho aqui ficar. Tua palavra
Tem mais autoridade em São-Vicente.
É justo que os trabalhos se repartam
Segundo as aptidões e as forças nossas. »
— Sempre modesto e corajoso escolhes
Os maiores perigos. Assim seja:
Caia o peso maior sobre o mais forte. —
Tendo nisso assentado os dous amigos,
Seus intentos aos Indios expozeram,
E qual dessa partida a justa causa.
E os Tamoyos, que muito nelles criam,
Contentes co’a ficada de Anchieta,
Na partida de Nobrega assentiram.
E tudo emfim disposto, pezarosos
Os dous santos varões se separaram.