A Confederação dos Tamoyos/Canto VIII
ARGUMENTO.
Satanaz, inspirando criminosas paixões nos corações dos colonos Portuguezes, os revolta contra os padres; mas o seu triumpho é ephemero.— Reune Tibiriçá todos os de sua tribu, e lançando fogo ás suas plantações e choças, marcham para São-Vicente em defesa dos padres.— Desesperação de Aimbire ao receber a noticia do captiveiro de Iguassú.— Partida das canôas, e cantico dos remeiros.— Chegada a São-Vicente.— O ataque.— Feitos dos principaes chefes.— Morte de Braz Cubas pelas mãos de Aimbire.— Lucta Jagoanharo com Tibiriçá, que o mata, e o baptisa antes de expirar.— Visão de Anchieta.— Sahe elle da igreja com Iguassú, e vai entregal-a a Aimbire.— Cessa o combate, e retiram-se os Tamoyos.
CANTO OITAVO.
Contra os poucos athletas do Evangelho
Um fatal inimigo conspirava,
Aculeando os proprios Portuguezes.
Satanaz, rei do inferno, a quem só prazem
Crimes, destruições, afflicto via
Medrar a nova lei no Novo Mundo,
Costumes evangelicos, em troco
De bruta crença e barbaras usanças.
Incansavel imigo, em odio acceso,
As paixões invocava socias suas;
As paixões, que de côres mil se trajam,
Mil fórmas tomam, mil aspectos mostram,
Mil linguagens ostentam, mil encantos:
Mas de todas Satan conhece a origem,
Conhece a força, o caso, o tempo proprio
De chamal-as a si. Sempre por ellas
Sobre a terra imperou, dêo leis aos homens,
Cidades arrasou, reinos, imperios.
Ora amor, ora odio, ora a cobiça,
Ora a vingança e a colera accendendo
Nos corações dos homens; qual astuto
Sophistico rhetorico, que enleia
O incauto ouvinte, que enganar se deixa
Encantado e sem tino a seu capricho;
Satan dest’arte, o senso fascinando,
Esmalta o erro de brilhantes côres,
E antepõe a mentira aos olhos do homem
Adornada co’as vestes da verdade:
E o homem, que até no erro acertar cuida,
Pela paixão guiado, escravo della,
Ante o phantasma enganador se prostra,
E canta o seu triumpho, e a si se applaude!
Ai misero! e tão cego que cem vezes
Repelle, insulta a quem salval-o intenta!
Assim entre os narcoticos vapores
Do fumo do opio, a moribunda victima
O antídoto recusa, imaginando
Vital somno dormir, e dorme,… e morre!
Anjo, outr’ora da luz, hoje das trevas,
Oh Lucifer maldito! o céo perdeste
Pelo orgulho; e os mortaes, que obra é já tua,
Arrastas pelo egoismo á nova perda!
Já das trevas o rei jactancioso
Cantava o seu triumpho, revoltando
Contra os dous eremitas os colonos,
E em seu proprio interesse lhes fallava.
A uns, para excitar maior despeito,
Ironico dizia: « Como, oh Lusos!
Não ouvis os conselhos de Anchieta?
Soffrei o ardente sol deste igneo clima,
Trabalhai, e regai co’o suor vosso
A conquistada terra, em quanto os Indios,
A quem deveis respeito e amor fraterno,
Livres pelos desertos se recream.
Elles senhores são, e vós escravos!
Si elles vos atacarem, pacientes
Supportai suas flechas matadoras;
Que das vossas cabanas se apoderem;
E vós orai a Deos, morrei humildes. »
A outros com sophisticas arengas,
Em teor philosophico dizia:
« O homem marcha ao bem por lei do instincto;
É seu guia o prazer: virtude e vicio
São vans palavras; o interesse é tudo.
Na Grecia, em Roma ao vencedor foi dado
A seu grado dispór dos seus vencidos,
A escravos reduzil-os ou matal-os.
É vasto campo de batalha a terra,
E oppostas forças sem cessar se embatem
Por lei da Natureza: a vida e a morte
Surgem deste conflicto; e a Natureza
Apoia os fortes quando os fracos gera.
Justiça é o poder, direito a força,
E do mando a razão ’stá na victoria.
Guerra aos barbaros, guerra! Ou vós, ou elles,
Oh Romanos desta era! a vós a gloria
De imitar a rainha do Universo.
Vêde os frios Bretões, Gallos, Germanos
Ceder á Roma a terra de Teutates,
Depois de em vão regal-a com seu sangue,
Palmo a palmo pleiteando-a ao pé romano.
Assim, oh vós de Viriato prole,
Se curvarão os barbaros Tamoyos;
E elles, que os tiros vossos hoje affrontam
Com voadoras flechas, hão de um dia
Humildes acceitar vossas cadeias,
Arar por vós a terra que defendem,
Por vós luctar contentes como escravos.
Guerra aos barbaros, guerra! Avante, oh Lusos!
Não vos deixeis levar de vans palavras
De caridade e amor, com qu’esses padres
Vosso brio e valor domar pretendem.
Os fallaces discursos de Anchieta
São mais fataes que as settas dos selvagens.
Guerra, guerra a quem fôr vosso inimigo. »
Cada colono murmurar ouvia
Estes e outros discursos corruptores
No fundo de sua alma; e repelindo-os,
Como si fosse inspiração divina,
Cegos e revoltados contra os padres,
De Satan o caminho iam trilhando,
Aos tigres imitando na fereza.
Roubar, Indios matar era a virtude
Que cada qual em publico ostentava.
E assim os corações se embruteciam,
O lume da razão se anuviava,
E o rebanho de Christo ía mingoando.
Mas si na dura prova é dado ao inferno
De chammas fornecer o altar terrivel,
Expiatorio altar, onde se apuram
As virtudes christães das paixões átras;
Qual o ouro no chrysol em fogo envolto,
Em terra e em cinzas, mais se purifica,
Perde as fezes, e limpo se condensa;
Gozar não póde o inferno o seu triumpho.
A razão sempre vence, ou cedo, ou tarde.
A lei da Providencia é infallivel,
Por ella a humanidade ao bem caminha.
O perigo que ameaça esses colonos,
Ameaça talvez a igreja e os padres:
Ah! e só isso os salva; que a virtude
Dos bons tambem aos máos serve de amparo:
Como n’um campo, que verdeja apenas,
Para poupar-se o grão que desabrocha,
Se deixa com pezar crescer o joio.
Tibiriçá de amor todo abrasado,
Co’um zelo de christão dos priscos tempos,
Do Tamandatehy correndo ás margens,
Mil arcos p’ra o combate reunia.
« Meus Guayanás, bradava, dura guerra
Temos que sustentar contra os Tamoyos,
Pelo feroz Aimbire commandados.
Araray e seu filho vem com elles;
E eu contra meu irmão e meu sobrinho
Não temo ir combater por Jesus Christo.
Queimai vossas cabanas, vossos campos,
P’ra que não dêm abrigo aos inimigos,
Que podem aqui vir para vingar-se
Do apoio que aos christãos contra elles damos.
O Cubatão desçamos; vamos, vamos
Defender São-Vicente ameaçado.
Alli Anchieta e Nobrega nos chamam:
Eia, vamos, armai-vos, e segui-me. »
Deste geito fallou o chefe á horda,
Que da guerra applaudio o grato annuncio;
E logo decidido o exemplo dando,
Fogo lançou a um campo que alli tinha;
E promptamente os Indios o imitaram,
Choças e campos entregando ás chammas.
Entre bulcões de fumo que se enrola,
Estalos, chispas dos combustos galhos,
Correm, vôam as soltas labaredas
Pelos mandiocaes e milharadas,
Á cinzas reduzindo as verdes roças.
O homem que as plantou folga á tal vista!
E as aves dos seus ninhos enxotadas,
Em profugos cardumes no ar pairando,
Como que estão carpindo a insania do homem,
Que dos bens que o céo dá gozar não sabe.
Assim deixando após carvões e cinzas,
E do incendio o rescaldo fumegante,
Vão levados de amor, não da cobiça,
Selvagens combater contra selvagens.
E Aimbire? Ah! com que dôr voltando ao campo,
E ouvindo a narração de Jagoanharo,
A nova recebeo qu’em São-Vicente
Sua cara Iguassú captiva estava!
Um subito furor, profundo, immenso,
Devorando-o em silencio, como o fogo
Que jaz da terra calcinando os seios,
Todo no coração ficou-lhe oppresso
Quando tal nova deo-lhe o mensageiro.
Avesado a soffrer golpes tão duros,
Seu peito em lento arquejo o ar tomando,
De odio ao pungir da dôr se entumecia.
Apenas seu olhar sombrio e vago,
Sob um senho funereo e carregado,
Como o céo no horizonte negrejante,
De sua alma a tormenta revelava.
Sua forte vontade resistia
Á explosão do furor. Atroz vingança
Aimbire meditava, e ostentando
De outra ideia occupar-se, assim prorompe
Co’um sorriso forçado, e a voz convulsa:
« Então Tibiriçá recusa unir-se
A nós, e a seu irmão? Pois bem, que espere,
Que a morte lhe darei como deseja. »
E dando um passo, e resoluto olhando,
Como quem ordens dar queria a todos,
Seus olhos vêem Pindobuçú prostrado,
Triste chorando pela cara filha,
Co’a cabeça encostada sobre um hombro
Do mesto filho, em cujo peito anciado
As lagrimas dos dous juntas corriam.
Então Aimbire a colera soltando,
Brada: « Oh Pindobuçú, o pranto enxuga,
E p’ra grande vingança te prepara.
Terás livre Iguassú, eu te prometto;
E com ella dar-te-hei para vingar-te
Quantas filhas quizeres, mãis e esposas
Dessa raça cruel. Rios de sangue
Farei correr de Tacaré nas praias,
E erguerei de cadav’res um monte
Que chegue ao Marapé. Lauto banquete
Vai dar meu braço aos urubús famintos.
Eia! p’ra Bertioga! Ao mar canôas;
Não ha mais que esperar. Ao mar! voemos. »
Assim bradando, fez roncar na inúbia
O rouco som do alarma e da partida;
E pela praia e varzea, e na collina
Foram todos os chefes repetindo
O terrivel signal que ribombava,
Chamando a gente, que acudia em chusmas.
E os sons diversos das diversas trompas,
Co’os successivos echos misturados,
Concerto horrendo e funebre faziam.
Ao ver em confusão de toda parte
Como da terra erguidos, nús, poentos,
Correr á praia centenares de Indios,
A mente, ás margens do Cedron voando,
Cuidára ver os mortos revocados
Ao som da trompa do Juizo eterno,
Das entranhas da terra resurgindo,
A Josaphat correr em mestos bandos.
Pela areia arrastando ao mar lançaram
Os inteiriços lenhos monstruosos,
Cujos bojos, cavados pelo fogo,
Cincoenta a cem guerreiros abrigavam.
Era bello esse mar todo juncado
De innumeras canôas esquipadas,
Que iam como cardumes de golphinhos
Á porfia rompendo as curvas ondas,
Ao som da cantilena dos guerreiros,
Pelo bater dos remos compassada.
« Voga, canôa, que é maré de amigo;
Ligeira voga, sem temor das ondas;
São braços fortes que aqui vão remando,
Braços Tamoyos, que a remar não cançam.
« Gosto de ver-te pelo mar zingrando,
Cabeceando, levantando espuma;
Assim, canôa, assim bufando vôa,
Como esses peixes que lá vão fugindo.
« O mar stá manso, estão dormindo os ventos;
Mas p’ra o Tamoyo sempre o mar foi manso;
Eia, canôa! o teu balanço é doce
Como na terra o balançar da rêde. »
E a cantar, e a remar, como brincando,
As praias de Ubatuba emfim deixaram.
Já da crastina luz longínquos raios
Por entre os tristes arrebóes da tarde
Aos negrumes da noite o céo cediam,
Quando elles, suspendendo o afan dos remos,
De São-Vicente ás praias abicaram,
Nuas e solitarias, onde apenas
Desdobrando-se as ondas murmuravam.
Eil-os todos em terra; e logo Aimbire:
« Filhos da liberdade, assim lhes falla,
A terra em que pisais, que hoje é dos Lusos,
Já foi dos Guayanás, que agora os servem.
Sorte igual vos espera, qual tiveram
Os bravos Carijós e os Taboyaras.
Si amais a liberdade e a vossa terra,
Acabemos co’o mal na propria fonte.
Alli stão os terríveis inimigos!
Alli Tibiriçá unido a elles
Nos espera talvez. Alli captiva
A misera Iguassú vingança pede!
Ah! salve-se Iguassú. Eia, Tamoyos!
Vamos salval-a; e cada qual por ella
Como pai, como irmão, ou como esposo
Em quantos encontrar vingue-se irado. »
Tendo assim dito o exp’rimentado chefe,
Dos Francezes seguindo o sabio aviso
De atacar a cidade por tres lados,
Divide a sua gente em tres columnas,
E p’ra cada columna alguns Francezes.
Pindobuçú e o filho e mil flecheiros
Marcham p’ra o Marapé. Vai Jagoanharo
E seu pai Araray p’ra o lado opposto:
No centro marcha Aimbire: e a um tempo todos
Devem chegar e começar o ataque.
Porém Tibiriçá n’aquella noite
Co’a sua gente prompta e apercebida
Por aviso de Anchieta os esperava.
Mas como o soube Anchieta? Quem lh’o disse?
Algum Anjo talvez lh’o revelára!
O servo do Senhor, joven, ardente,
Nesse viver de ascetico eremita,
Em continuos jejuns, longas vigilias,
Prégações e trabalhos excessivos,
Tinha, á custa do corpo e dos sentidos,
As potencias do espirito exaltado;
E arroubado em seus extasis divinos,
Via co’os olhos d’alma algumas vezes
O futuro sem véo apresentar-se.
Foi n’um desses transportes estupendos,
Em que a alma dos sentidos se liberta,
Qu’elle teve a visão do mal propinquo;
Alto favor do céo, que tantas vezes,
Sempre talvez, em prol da humanidade
Que o aprecia tão mal, se manifesta.
Ah não faltam prophetas que revelem
O bem e o mal, só falta a fé que os ouça!
Riram-se alguns dos Lusos desse annuncio,
Mas de Tibiriçá a fé salvou-os.
Quando a correr p’ra villa os atalaias,
Que o chefe Guayaná postado tinha,
Novas levaram do imminente damno,
De uns a crença e os receios confirmando,
De outros tirando a duvida e incerteza,
Já dos tres principaes chefes Tamoyos
Por tres lados soavam as inúbias,
Dando signal ao concertado ataque,
P’ra os descridos tardío desengano.
Então rufando os marciaes tambores
Dentro da villa: – ás armas! todos bradam,
Ás armas, Portuguezes! Já Collaço
Seus soldados alinha, e já Ramalho
Se mostra em frente aos seus. Os mais incautos,
De subito terror apoderados,
Ás armas repetindo, ás armas correm,
Que neste caso o medo os torna alipedes.
Calmo Tibiriçá, da igreja á porta
Em defesa dos padres, firme espera
O perigo affrontar com seis mil arcos.
Talvez o unico seja em cujo peito
Tenha a inconcussa fé vencido o susto.
Cayoby, Cunhambéba, alli com elle
Tupís e Carijós guiam á pugna.
Para maior terror dos sitiados
Ao ataque os Francezes dão começo,
Seus arcabuzes juntos disparando.
Como ao som dos trovões repercutidos
Igneos fuzís nos ares serpenteam,
Assim ao som da horrivel vozeria
Que fazem os Tamoyos, junto ao estrondo
Das fulminantes armas dos Francezes,
Em torno a villa as balas sibilando
Coriscam pelos ares enfumados.
Ao medonho estridor não esperado
D’aquellas armas, que de em torno estouram;
Ao chover da metralha, que atravessa
Os tectos de sapê, levando o susto
Aos peitos feminís; de toda parte
Correm ao templo velhos e crianças,
E as mãis co’os tenros filhos em seus braços,
Bradando: – Senhor Deos! misericordia!
Alli aos pés do altar, co’os companheiros,
Humilde estava Anchieta, que prégando
Nesse dia dissera: « Quando ouvirdes
Nesta noite fatal, entre lampejos
Horrenda arrebentar a tempestade,
Vós, mulheres, crianças indefesas,
Vinde, vinde, correi á santa igreja
Pedir por vossos pais, por vossos filhos,
E por vossos maridos e parentes.
São gratas ao Senhor as debeis vozes
Dos pobres innocentes misturadas
Co’as supplicas das mãis em pranto envoltas. »
Na turma que da igreja o abrigo busca
Vai co’os filhinhos de Ramalho a esposa,
E a seu lado Iguassú, que a rogos della,
E do chefe seu pai e do marido,
Instados por Anchieta, consentira
Seu roubador trazel-a, e entregar-lhe
Para ser doutrinada e baptisada;
E assim mais branda após achal-a espera.
Em quanto dentro da mansão sagrada
Fervidas preces condoidas soam,
Entre pungentes ais e amargo pranto;
Fóra a pugna travada, porfiosa,
Rebramando ferina se encarniça.
Ao clarão dos troantes arcabuzes,
Que entre nuvens de fumo relampejam,
Vê-se um chuveiro de emplumadas frechas,
Que de todos os lados disparadas
Se cruzam, se atropellam, se abalroam,
E pelos ares pavorosas zunem;
E esse crebro zunir simula o vento
Por entre taquaraes bramindo irado.
A espessa alluvião, que no ar negreja,
Da lua o disco e o mesto alvor obumbra;
E o proprio dia convertêra em noite,
Si o sol nesse momento se mostrasse.
Não contarei os golpes e as frechadas,
E os tiros, que p’ra sempre nessa noite
Tantas almas dos corpos separaram.
Por terra em borbotões jorrava o sangue;
E o odór do sangue, e os gritos dos feridos,
E os arquejos finaes dos moribundos,
Mais da guerra o furor exasperavam.
Cançado de espargir mortes a esmo,
Avança Aimbire os passos, e rodando
Os olhos, que o furor de sangue tinge,
Procura os principaes d’entre os contrarios,
Qu’elle veja morrer sob seus golpes.
« Traidor Tibiriçá, onde te escondes!
Cayoby! Cunhambéba! » E assim dizendo,
Com Braz Cubas se encontra. « És tu? lhe brada;
Dei-te a vida, e tu vens buscar a morte? »
– Venho viogar-me; o Portuguez lhe volta:
Vil escravo, selvagem! reconhece
Em mim o teu senhor, que vem punir-te. –
E assim dizendo lhe desaba o golpe,
Que apenas resvalou na maça do Indio.
« Têns a língua mais forte do que o braço;
Pouca é a gloria de tirar-te a vida.
Si a queres, eu te a deixo; e tu bem sabes
Si dessa vida alguma vez fiz caso.
Mas vem comigo, e mostra-me primeiro
Onde jaz Iguassú, e quem roubou-a. »
O Portuguez, que o julga alheio á lucta,
Calcula o lance, ironico dizendo:
– Quero poupar-te a magoa de choral-a.
« E eu a infamia da vida que te pesa. »
E co’a prompta resposta um prompto golpe
Acerta-lhe o Tamoyo, e a um tempo soam
Resposta e golpe, e do infeliz a queda.
« Dar-te não posso a morte que mereces
Lenta e cruel; n’um só momento morre;
Tenho pressa. » E o deixou nadando em sangue.
Como o ardente tufão vôa o guerreiro,
Por toda parte semeando estragos.
Parabuçú, que o irmão vingar deseja,
Com quantas frechas sólta a morte envia.
Pindobuçú, que a filha crê perdida,
Odiando a vida e procurando a morte,
Proezas faz que o proprio filho inveja;
Porém a morte aos temerarios foge.
O ancião Coaquira não desmente a fama
Que em annos juvenís colheo brioso.
Como a onça esfaimada e furiosa,
Bramindo anda Araray; corre-lhe o sangue
Da ingente maça ao incançavel braço,
Que vibrando sedento prosta e mata,
E junca o chão de mortos e feridos.
Entre os mais bravos do contrario lado
Se ostenta Cayoby, e se recorda
Que já contra Francezes e Tamoyos
Bravo em Villegagnon foi acclamado.
Não quer ceder-lhe a palma Cunhambéba,
Nem no zelo christão, nem na bravura;
E ambos por toda parte se assignalam.
O valor portuguez tem em Ramalho,
E em todos os colonos Lusitanos,
Novos, valentes braços que o sustentam
Nessa nocturna, encarniçada lucta,
Quaes sempre os teve nas diversas partes
Da Europa, Africa e Asia, onde seu nome
Com sangue escripto fez-se heroico e grande,
Ao seu vate immortal inchando a tuba,
Que esses duros engenhos mal pagaram .
Mas quem te negará, Cacique illustre,
Entre os mais fortes o lugar primeiro?
Gloria a Tibiriçá, gloria a teu nome,
Aos teus preclaros feitos e á constancia
Credora d’hymno excelso, com que sempre
Essa nascente igreja defendeste,
Fonte primeira nesta inculta plaga
Da luz sublime e santa que a illumina,
E hoje immenso fulgor sobre ella estende!
Onde vais, Jagoanharo? impetuoso,
Temerario mancebo! Não te basta
Tanto sangue espargido por teu braço?
Cega-te o orgulho do vigor dos annos?
Não vês, não ouves, de pavor não te enche
Essa ave negra, que voou da igreja,
E a teu lado passou triste gemendo?
Buscas Tibiriçá! Medir-te queres
Com quem tremer fizera o proprio Aimbire?
Lamento o teu furor! A morte buscas!
« A mim, Tibiriçá! brada o arrogante. »
Eil-os no adro da igreja que se encontram!
Tio e sobrinho se olham; por um pouco
Hesitam si travar devem a lucta.
– Que vens tu procurar? – diz-lhe o Cacique:
Desta espada não vês pendente a morte?
« Não a temo, replica-lhe o mancebo.
Entrega-me Iguassú, que alli ’stá dentro.
Um profugo dos teus certificou-me
Que alli a vira entrar com tua filha.
Vai buscal-a; senão irei eu mesmo. »
E assim dizendo, para a porta investe.
Porém Tibiriçá frio, impassivel,
Qual da foz do Janeiro a ingente mole,
Ante a porta da igreja se colloca.
A par da Cruz de Christo que o decora,
Brilha em seu peito um aureo relicario,
Que sobrenatural força lhe inspira,
E calmo o faz e sobranceiro a tudo.
Elle só contra todos combatêra,
Certo que não é dado á dextra humana
Tirar-lhe a vida tão votada á igreja!
O que não póde a fé n’alma do crente?!
Ousa o joven levar-lhe a mão ao peito
P’ra arrancal-o d’alli; mas empurrado,
Recúa tropeçando, e pouco falta
Que por terra não caia: onda arrojada
Repellida assim é por duro escolho.
Ligeiro se equilibra; e o pejo e a raiva
Satanico furor lhe accendem n’alma,
Nervos, arterias, musculos lhe inchando.
De colera convulso, co’as mãos ambas
Levanta a ingente maça e a descarrega;
Mas a espada do placido Cacique
Apara o golpe, pela maça entrando,
E encravada se quebra. Braço a braço
Se atracam, luctam, corcoveam ambos;
Ambos como um só corpo rodopiam,
Suam, fumegam, rugem: treme a terra,
Espuma Jagoanharo, o tio o aperta,
De si o arranca, o balanceia, o arroja.
Arfa, empina-se o indomito mancebo,
Já não homem, mas fera; e salta, e investe
Com força tal que derrubára um tronco
De annoso acayacá: mas como o touro, 1
Para fincar no canguçú que o assalta 2
Enrista as corneas pontas e as sacode;
Assim Tibiriçá, curvando o corpo,
Estica os fortes braços, e agarrando
Com força herculea o misero sobrinho,
O levanta da terra, e contra a pedra
Da soleira da igreja o arremessa,
Co’a fronte sotoposta, e a quebra, e a esmaga.
Vendo qu’inda estrebuxa, entra, e da pia
Com agua benta volta, e proferindo
As sagradas palavras, o baptisa:
« Tirei-te a vida, disse, mas ao menos
Salvo-te essa alma. » Jagoanharo expira;
E volta o vencedor a novas justas.
Que atroz carnificina! Que de horrores
A noite aos combatentes encobria!
A lua, que já mal os aclarava,
Occultou-se de todo espavorida.
E o odor do sangue, rescendendo ao longe,
Chamava os urubús, que em negros bandos
Fariscando o festim mudos já vinham.
Nessa hora Anchieta, que ante o altar prostrado,
Co’as mãos e olhos para o céo erguidos,
Ao côro gemebundo a litanía
Fervoroso apontava, de repente
Pasma, estremece, estatico alli fica
Attento olhando, como si visivel
A seus olhos celeste mensageiro
Ordem suprema lhe estivesse dando!
Cala-se o côro, e Nobrega não ousa
As preces proseguir, nem despertal-o.
Após breves instantes, como alçado
Por uma força occulta, se levanta
O ministro de Deos; olha, e direito
Vai a Iguassú; co’a mão no hombro lhe toca:
« Ergue-te, oh filha! diz-lhe, vem comigo. »
Ambos da igreja sahem. Todos absortos
P’ra deixal-os passar abrem caminho.
Onde irão! uns aos outros se perguntam.
Mas estranho prodigio esperam todos.
Pelas trevas lá vão silenciosos;
Ella cheia de assombro, a tudo alheia;
Elle como impellido, calmo e attento,
Evitando passar por onde ha sangue!
Que luz na escuridão, ou que Anjo o guia
Ao campo da batalha? Eil-o que pára:
— Aimbire! chama, e sua voz parece
Resoar em caverna harmoniosa.
Aimbire! Aimbire! — O rabido Tamoyo,
Que perto combatia, se apresenta
Todo escorrendo sangue, espavorido.
— Toma Iguassú, lhe diz, deixa-nos, parte.
Em quanto fascinado o Indio volvia
Os olhos a Iguassú, some-se Anchieta,
E andando sua voz dizia: — parte.
No mesmo instante ouvio-se o som da inubia
Dando signal de prompta retirada.
Não foi Aimbire quem o deo! Raivosos
Os Tamoyos ainda se lembraram
De accender e lançar por despedida
Os galhos seccos, de algodão envoltos,
Que deixaram ardendo; e carregando
Aos hombros os seus mortos e feridos,
Para suas canôas se partiram.