A Conquista/II

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Anselmo ficou a meditar sobre a estranha Psicologia das botas e sobre o destino dos seus sapatos. Já os via penetrando, com discreção, a câmara da entediada e loura dama. Já os via afundados nos felpudos tapetes, já os via aconchegadinhos às sandálias bordadas da amorosa, falando-lhes em segredo, perto do leito, enquanto os donos...

Ah! O dono dos sapatos era ele e ali estava só, com duas velhíssimas chinelas nos pés, entre livros, diante de uma mesa carregada de papéis onde reluzia a pasta do escritor, bojuda e larga. Que havia de fazer para não sentir as horas lentas e caladas que iam passar? Tirou o casaco e o colete e, senhor da casa, sentiu uma pontinha de despeito, mas recompôs o espírito alvoroçado com um argumento fino e justo: "Sim, se lhe emprestei os sapatos ele confiou-me a casa que, se não vale pelos móveis, duma deplorável banalidade, muito merece pelo que há ali naquela pasta atochada, preciosa como um tesouro e por aquela soberba Barricada que, se agora as aranhas profanam, mais tarde há de ser disputada com o mesmo furor artístico com que hoje os milionários se batem a moedas por um palmo de tela da Renascença." Sentou-se à mesa, tomou um volume, abriu-o ao acaso, e leu:

Une nuit que j'étais prês d'une affreuse Juive, Comme ou long d'un cadavre, un cadavre étendu, Je me pris à songer...

Eram versos de Baudelaire. Apesar de os conhecer, deixou-se levar por eles, embalado no ritmo das estrofes, seduzido pela sonoridade das rimas, mas, de quando em quando, desviava-se-lhe o espírito: a transcendente Psicologia das botas perseguia-o e os seus sapatos como que lhe passavam por diante dos olhos animados, fugindo numa névoa para a câmara cheirosa de uma mulher loura, que surgia dentre sedas e linhos, esplêndida de graça e nua como a Vênus quando nasceu do mar, enrolada em rendas de espumas, à luz do sol da Hélade divina.

Levantou-se bocejando e, mole, sob o influxo dormente do silêncio e do sol que espalhava um suave narcótico no ar, atirou-se à cama com o Baudelaire e leu até que o livro aberto lhe caiu sobre o peito e os olhos se lhe fecharam languidamente.

Que horas seriam quando despertou? Vinha perto a noite. A brisa era fresca, a luz era branda. Sons de flauta passavam no ar. Seria o rouxinol? Não, não era o rouxinol nem era a cotovia, mas um vizinho melómano que soprava o tubo. Ergueu-se, foi lavar o rosto e, revendo-se ao espelho, lançou à própria imagem esta interrogação preocupada: "Por onde andarão os meus sapatos?" Escurecia. Começava a entediar-se quando bateram à porta discretamente.

— Quem é?

— Sou eu, disse alguém com preguiçoso vagar. Foi à porta, entreabriu-a e distinguiu um vulto imenso de mulher. Como lera a Géante, de Baudelaire, atribuiu a aparição daquela monstruosidade à sugestão da leitura. Mas a aparição movia-se, coçava o queixo e falou:

— Sinhá mandô sabê vosmicê cum passô e si vai lá...

— Sinhá! Quem seria a solícita criatura?! Alguma formosa mulher, sem dúvida; talvez a musa reinante do romancista. E que lhe havia de mandar dizer?

— Olha, dize-lhe que estou passando mal. Torci um pé justamente quando me vestia para ir jantar. Como vai ela?

— Ela tá boa. Então vosmicê não vai?

— Não posso. Dize-lhe que estou impossibilitado de sair.

— Sim, sinhô. E a imensa mulher moveu-se na sombra pesadamente e foi-se. Quem será?! — pensou de novo Anselmo olhando tristemente para os pés, como um pavão. Sinhá!?..

Mas... por onde andarão os meus sapatos!? E, conjeturando, debruçou-se à janela, já aflito, vendo chegar a treva sem que, ao menos, tivesse à mão, para alumiar o aposento, uma reles candeia. Como, porém, o almanaque anunciava para a noite seguinte lua cheia contava com a presença clara do astro.

Efetivamente uma luz pálida foi-se desdobrando e branqueando os muros, entrou pela janela, foi até ao fundo do quarto pondo uma fronha alvíssima no travesseiro do leito e uma piedosa mortalha sobre os mortos de A Barricada. O corredor cimentado ficou mais branco que o mármore e os grilos, enlevados, cantaram nas frinchas dos muros enquanto os morcegos, trissando, passavam no ar sossegado que os jasmins abertos perfumavam.

Anselmo começava a sentir as exigências do estômago, o ventre tirânico mandava-lhe recados ao cérebro.

— Acordou a jibóia! disse, como se falasse à lua. Efetivamente a jibóia acordara e a tempo, valha a verdade, visto como o primeiro repasto fora às onze da manhã e, como era verão, dos dias longos, era justo que, a horas tão adiantadas da tarde, tendo digerido, ela reclamasse nova ração. Mas como havia ele de acudir à fome se não se podia mobilizar preso, como estava, pelos pés?

Entrou em cólera surda invectivando o romancista e ia já transpondo o terreno vil da injúria quando ouviu passos arrastados e reconheceu a alentada mulher, que vinha, de novo, pelo corredor, anunciada por alegre retinir de louças, precedida de suave aroma de guisados, mais grato que o dos jasmins abertos.

Era ela, a desconforme criatura, e trazia uma bandeja coberta por uma toalha alva como o luar. Deu com ele à janela e, sem falar, sorrindo, passou a porta e depôs sobre a bojuda pasta a abastecida bandeja.

— Sinhá mandô dizê qui vosmicê não arrepare... Mas cumu vosmicê disse qui não podia sahi móde o seu pé...

— Oh! fez ele descobrindo, com veneração, a bandeja, é muito amável. Sim, era amável a misteriosa dama e devia ter um cozinheiro perito.

A sopa era dourada e rescendia. Por certo lá ao alto, no luminoso e calmo espaço, todo cheio do esplendor do astro, chegou o perfume porque a lua, dividida em partículas como uma hóstia, veio boiar nos olhos que cintilavam, como ardentias, sobre a superfície da sopa tão dignamente contida em uma tigela de porcelana da China. Havia uma fritada, um triângulo fofo e louro, incrustado de camarões, tendo no vértice uma gorda azeitona de Elvas; um prato de cabidela, fatias sangrentas de roast-beef, entre folhas tenras de alface, ladeadas por duas lascas de fiambre de uma cor de rosa macia; pão, vinho, dois damascos em calda, num pires, e uma grossa talhada de queijo.

A jibóia torcia-se com ânsia, atirando botes como se quisesse abocanhar de uma vez tudo quanto havia. O aroma punha-a em desespero inenarrável. Mas Anselmo como que se comprazia com o suplício da besta íntima, sorvendo voluptuosamente o perfume dos pratos e regalando os olhos com aspecto sedutor das iguarias.

Ó ciência difícil dos temperos! Ó arte sutil da ornamentação dos pratos. Um roast-beef, sem o recamo da alface, é como a mulher sem meias. Que delícia! Quem diria que ele havia de sair do leito para aquele delicado festim: De cubiculo recta in triclinium ire! Assim dizia Anselmo no coração enquanto a boca ia-se-lhe enchendo d'água.

A lua foi a companheira que teve, alegre e sóbria companheira, e a mulher, sentada pacientemente à porta, pôs-se a sussurrar um canto enternecido em que falava de amores, enquanto ele sorvia a colheradas a sopa que era um delicado polme de ervilhas sabiamente temperado, com leve sabor de paio e uns longes suaves de cravo-da-índia, Depois foi a fritada, depois a galinha e só ficaram na bandeja migas de pão, ossos de frango, um caroço de azeitona, dois de damascos, a casca recurva e roxa do queijo e palitos, o mais passou sofregamente ao bojo da jibóia que se enroscou de novo para digerir sossegada.

Só faltava o café, o café e a dama que bem merecia uma página de Arte, uma longa e rendilhada apologia, não dos seus dotes plásticos e de espírito, mas do seu fino paladar, tão nobremente recomendado por aqueles pratos rescendentes. Mas para o cozinheiro, como para o anfitrião, vale mais que todas as palavras, que podem não ser sinceras, a prova irrefutável dos ossos esburgados.

Sim, um elogio rasgado diz menos, e com menor expressão, do que quatro ossinhos lisos, chuchurreados, no meio do prato raspado. Pensou em atirar ao corredor os restos do banquete, mas não: queria que a generosa dama e o sábio cozinheiro vissem, com orgulho, que tudo havia comido, com escrupulosa gana, não deixando senão o que de todo lhe fora impossível engolir, como ossos e caroços. Esgotou a garrafa e, saciado, num bom humor de fartura, foi rebuscar no colete uns níqueis e deu-os à estupenda mulher que, à luz branda do luar, parecia menos aterradora e pesada. Oh! a delícia da saciedade!

— Deus lhe pague!

— Pede-lhe antes que me traga os sapatos. A mulher não entendeu e, guardando as moedas cautelosamente no seio, que era um outeiro em volume, tomou a bandeja e foi-se levando os ossos e novecentos réis. Anselmo acendeu um cigarro e debruçou-se à janela, enlevado na beleza da noite e, com os olhos no céu, pôs-se a recitar baixinho:

Le mal dont j'ai soulfert s'est enfui comme un rêve, Je n'en puis comparer le lointain souvenir Qu'à' ces brouillards légers que l'aurore soulève Et qu'avec la rosés on voit s'évanouir.

Era a primeira estrofe da "Noite de Outubro" de Musset e ia aos versos da Musa:

Qu'aviez-vous donc, o mon poète!

quando Ruy Vaz apareceu no corredor. Anselmo sentiu a alma dilatar-se.

— Fui além da hora. Ah! meu amigo, se não fosse lembrar-me que estavas aqui descalço teria passado a noite a desfolhar malmequeres. Esplêndida criatura! Atirou o chapéu sobre a mesa e respirou desafogadamente, Divina mulher! E tu? Como te foste? Leste as odes?

— Não: reli Baudelaire, dormi até a noitinha e, como estava com o estômago em condições de Deus poder reproduzir o milagre da criação do mundo, fiz de Elias aceitando um jantar que me caiu do céu.

— Eis aí um hotel que ainda não me forneceu pensão. Mas sem frase: — Onde jantaste?

— Aqui. O luar foi a toalha; jantei sobre a tua mesa de trabalho.

— Mandaste vir de algum hotel?

— Não. Apareceu-me a Providência, não como ao profeta sob a forma de um corvo — mas disfarçada em exuberante mulata...

— Vê lá! Não tenha o demônio armado uma cilada ao teu estômago. Também a Santo Antão foi servida uma mesa lauta e todavia...

— Não, a mulata veio em nome de uma misteriosa mulher saber se aparecias hoje.

— Uma mulata monstro?! Uma mulata em dois volumes?! a Januária! A Januária da Elvira! exclamou o romancista.

— Não sei; eu tinha fome e não tinha sapatos.

— E pediste jantar...?

— Não; nada pediste. Digo assim porque a mulata tomou-me por ti, no escuro; disse apenas que não contasse contigo porque, havendo torcido um pé, estavas impossibilitado de sair. Devo o jantar à sagacidade da mulata. Retirou-se tornando, pouco depois, com uma bandeja opípara. Entendi que não te ficava bem fazer cara a tão saborosos e perfumados pratos e tratei-os com a deferência de que eram dignos.

— Essa agora!

— Estás preocupado...?

— Com razão. Essa mulher, essa nefanda Elvira, é uma pérfida; traiu-me e com o meu alfaiate e eu tinha jurado cortar de uma vez para sempre o fio que nos ligava e agora...

— Acho que fazes mal. Uma mulher que janta como essa deve ser excelente menagére. Não a conheço senão através da sua cozinha; não sei se é loura, se é morena, se tem os olhos pretos ou garços, juro, porém, que tem em casa um admirável cozinheiro.

— Um coração volúvel como uma nota de mil réis. Enfim, o mal está feito; não quero interromper a tua digestão... e está aberto o precedente para os dias nefastos. Começas bem, não há dúvida. Outros andam atrás de jantares e a ti vêm os jantares, e com sobremesa. Hás de dar-me o segredo do teu talismã. Podes ir longe, principalmente se subires mais um ponto no calçado; tens o pé demasiadamente seco, é um Ceará. Devolvo-te os sapatos. Anselmo calçou-os imediatamente e, vendo que o romancista procurava alguma coisa debaixo da cama, riscou um fósforo.

— Obrigado. Cá estão eles. Arrastou um par de veneráveis botinas, nas quais os pés desapareceram como por encanto e respirou. O bom filho à casa torna. Não há nada como a liberdade. Como me sinto bem na largueza... Nem parece que estou calçado.

Anselmo vestiu-se e, vendo que o romancista passava a escova nos cabelos e retorcia os bigodes, perguntou:

— Vais sair?

— Vou ao Sant'Anna. Tenho lá uma peça, quero ver se o Heller resolve alguma coisa. Por que não vens? Está uma noite linda e fresca.

— Posso ir.

— Então vamos. Estamos na hora e tenho ainda de passar no meu charuteiro para apanhar uns colarinhos. Fecharam a janela e a porta e saíram.

Foram seguindo devagar, à luz da noite, sob a carícia do ar, fino e tépido como um hálito humano.

O parque era uma extensa massa de verdura onde o luar punha reflexos de prata. As casas abertas recebiam a brisa e exalavam bafios quentes de forno. Passavam bondes apinhados, carros rodavam lentamente e os lampiões, em alas, estendiam reticências de ouro ao longo das ruas. Nos hotéis cheios havia um confuso rumor de vozes, tinidos de copos. Às mesas, de sórdidas toalhas, chalravam os trabalhadores, em mangas de camisa, os pés em grossos tamancos, soprando para o ar viciado densas baforadas de fumo. Era a gente sadia e forte da labuta brutal: homens de bíceps hercúleos, abaçanados das soalheiras, que repousavam estirando as pernas depois de bem repastados; eram os colonos que se reuniam, como em ágape fraternal, recordando a pátria, com pilhérias fortes de mesa à mesa e grandes obscenidades que faziam estourar gargalhadas.

Os caixeiros iam dum a outro com o parati, diziam a sua chalaça e, como havia intimidade entre esses homens, a pretexto de pândega, trocavam-se murros, mas ninguém se revoltava — era um divertimento heróico como de leões que, depois de haverem esquartejado a presa, a golpes de garras, nas clareiras desertas, perto das límpidas águas, rugindo, rolando, com as fauces rubras de sangue, brincam amigamente enquanto as fêmeas fartas, deitadas de flanco, os olhos semicerrados, deixam-se sugar pelos cachorrinhos.

Mais adiante, à porta de uma taverna, castanhas estalavam ao fogo e, junto ao balcão, sentado numa saca, um lazzarone, o cachimbo nos beiços, ia tirando da sanfona os sons da Mandolinata. O rumor crescia confuso: apitos de bondes, gargalhadas, estouros de garrafas, rodar pesado de carroções que se recolhiam e, no alto, sempre a paz maravilhosa da noite estrelada.

Quando chegaram ao largo do Rocio, Anselmo fez uma observação sutil citando Heródoto. Em Babilônia havia, ao menos, um subúrbio sagrado onde avultava, entre cedros e loureiros, o templo de Mylitta, ainda assim o historiador clama contra a vergonha Que diria ele se, revivendo, viesse, tantos séculos depois, olhar a prostituição que aqui transborda e vai invadindo, como um vírus, todas as artérias da cidade? Lá, ela estava confinada, aqui expandiu-se — é um polvo que lança os tentáculos a toda parte. Não há uma rua em que se não encontre a aranha emboscada na sua teia.

— Estás moralista, disse Ruy Vaz, sorrindo. As mulheres, debruçadas às janelas, entre as cortinas, algaraviavam. O olhar, penetrando, dava imediatamente com os leitos muito lisos, muito alvos, ao fundo dos quartos entreabertos e iluminados. Não contentes com a exposição dos corpos ainda chamavam os transeuntes, atiravam-lhes botes e era em toda a ala, nos pavimentos térreos e nos sobrados, um rinchavelhar devasso de centenas de criaturas e aquilo lembrava uma cena de mercado oriental onde acudiam piratas levando mulheres de todos os países, expondo-as nuas, apregoando-lhes a beleza, obrigando-as a falar, a cantar para que os azevieiros, que as andavam examinando, não só lhes vissem as formas sensuais, como também lhes ouvissem o timbre fresco e cantante da voz.

Umas fumavam; outras, já velhas, encarquilhadas, tristonhas, recaídas sobre o umbral, com a cabeça derreada, os olhos no céu, pareciam enlevadas e maquinalmente chamavam os que passavam perto, estendiam com vagar a mão, mas logo quedavam vendo-se desatendidas e baixinho, de novo elevando os olhos, repunham-se a cantar.

Pensavam, talvez, na pátria que haviam deixado, iludidas pela falácia do rufião. Pensavam nas suas pobres cabanas, nas aldeias geladas... Reviam-se na infância, levando o gado aos montes ou seguindo com a foicinha o bando dos ceifeiros para os campos de trigo ou de feno, nos dias alegres do outono. Pensavam nas noites tristes de bravio inverno, noites de vento e de neve quando, junto à brasa viva da lareira, os seus velhos parentes falavam da miséria pedindo a Deus um dia, ao menos, de sol para que os pequenos pudessem ir à orla da floresta recolher um pouco de lenha, que não havia para mais de uma noite e, quando a não houvesse, que seria deles, pobres velhos! E que seria das míseras crianças!

Pensavam e o peito subia-lhes em arfar angustioso... É que haviam visto, muito longe, alguém, alguém que, quando virgens, tanta vez saíram a esperar numa volta do caminho, quando o sino soava a hora crepuscular; alguém a quem haviam jurado amor e a quem haviam traído deixando-o pelas promessas enganosas do homem que as fora arrancar, para sempre, à felicidade e à honra.

Ah! mas era preciso viver... Gente passava. "Vem cá! Olha..." diziam molemente as desgraçadas com leve tremor na voz.

Outra, sentada numa cadeira de balanço, cochilava e, pela janela entreaberta de uma casa, Anselmo viu, não sem espanto, outra, em camisa, braços nus, pernas nuas, indo e vindo disfarçadamente, a abanar-se.

— Que cinismo...! Rapazes paravam às portas, chalaceavam e, de repente, fugiam a rir perseguidos por uma saraivada de impropérios e, como há uma forte solidariedade entre essas mercenárias, de janela a janela a indignação corria e todas, enfurecidas, injuriavam os que haviam, por troça, irritado a companheira que ainda esbravejava indignada, ao longe.

E vagaroso, os braços para as costas, o cigarro nos beiços, o soldado da ronda passeava sem dar atenção à balbúrdia, surdo às obscenidades que explodiam ao longo daquela feira torpe. Ruy Vaz parecia indiferente a tudo. Ia de olhos baixos, sem dar atenção aos reclamos indecorosos que lhe atiravam as mulheres.

— Isto aqui, meu amigo, é mais perigoso do que o caminho que levava ao sítio encantado onde havia a árvore que cantava, o pássaro que falava e a água amarela. Deve-se passar por esta calçada com os ouvidos atochados de algodão para que nos não suceda o que sucedeu aos irmãos da princesa Parizada, que foram transformados em pedra.

— Não é preciso recorrer às Mil e uma noites para buscar um modelo de energia. Temos aqui a polícia, mais indiferente aos escândalos do que Ulysses à voz das sereias ou do que a tal princesa ao clamor das pedras.

Espera aqui um instante. Haviam parado diante de um charuteiro. Ruy Vaz entrou deixando Anselmo à porta. O estudante lançou os olhos pela praça. Duas filas de tílburis reluziam à fulguração do luar. Sons de música vinham de longe, em ondulações, ora brandas, ora fortes, conforme as variações da brisa. Cocheiros discutiam na calçada; passavam famílias à pressa, caminho dos teatros. Quando Ruy Vaz saiu com um embrulhinho, Alselmo estava distraído, de olhos perdidos, cantarolando.

— Vamos?

— Vamos. Seguiram para a rua do Espírito Santo, iluminada pelas grandes rosáceas dos teatros. Ao fundo o Recreio resplandecia como a entrada de um templo. Um homem esgoelava-se anunciando "empadinhas de camarão!" e os cambistas assaltavam os que apareciam oferecendo bilhetes, garantindo que na casa não havia número que prestasse.

À porta do Sant'Anna uma multidão apertava-se. Discutia-se e os cambistas investiam como pobres em adro de igreja, empurravam-se, injuriavam-se. Anselmo deteve-se um momento diante do bilheteiro; Ruy Vaz, porém, tomou-o pelo braço:

— Não, vem comigo; não precisas bilhete. Vamos.

O estudante sentiu uma pancada forte no coração àquela frase "Não precisas bilhete..." e admirou o romancista. Grande influência do homem! Diante dele, a um gesto breve da sua mão, abriam-se todas as portas, mesmo as dos teatros tão avaramente guardadas. Grande homem! Pudesse ele fazer o mesmo! Entrava gente, aos apertões: senhoras pelo braço dos maridos, sorrindo, com ânsia de se aboletarem, receosas de que já houvesse começado o espetáculo.

Quando Ruy Vaz se adiantou, muito grave, Anselmo coseu-se com ele e, apesar da confiança que depositava no prestígio do grande homem, pálido, temia ser repelido pelos dois cérberos — um ruivo, de pêra, outro velho, gordo, de óculos, que espiava atentamente quantos entravam acumulando os bilhetes na perna gorda.

O romancista fez o estudante passar à frente e, como o ruivo fizesse um gesto como a pedir o bilhete, ele tocou-lhe com familiaridade o ombro dizendo apenas:

— Vem comigo. Tanto bastou para que o deixassem passar. Poderoso Sésamo! Vem comigo! Tão simples palavras faziam com que se acomodassem os exigentes porteiros, tão severos em questões de entradas e de senhas. Ao ver-se no pátio do teatro, Anselmo sentiu a alma dilatada como se houvesse saído de uma prisão e respirou desafogadamente.

— Agora sim...

— Que é?

— Pensei que os homens opusessem alguma dúvida.

— Comigo! exclamou orgulhosamente o romancista. Ora qual! Caminharam e, como enfrentassem com o tablado coberto onde, em torno das mesas, uma multidão alegre fervilhava, um rapaz moreno, de pince-nez, pondo-se de pé com o chapéu levantado acima da cabeça, a toda altura do braço, disse solenemente:

— Saúdo a literatura indígena! e avançando, encolhido e curvado, pôs-se a estalar sonoramente com a língua no palatino; depois, enristando a bengala, deu uma volta nos calcanhares mostrando a multidão que o cercava e, em voz cheia de desprezo, bramiu:

— Vou começar a catequese noturna dos tupinambás. Sou o missionário do espírito, o Anchieta desta taba! E, de novo, fez estrondar a língua atirando uma bengalada a uma das mesas:

— Garçom! Uma Einbeck... vamos! E hirto, o sobrecenho carregado, fitou os olhos no caixeiro, rugindo.

Ruy Vaz dirigiu-se ao moreno e, vendo que Anselmo guardava atitude reservada, interrogou-o como em segredo:

— Não conheces o Neiva?

— De nome, há muito tempo!

O romancista fê-lo avançar e apresentou-o:

— Anselmo Ribas... Paulo Neiva. Os dois rapazes trocaram um aperto de mão e o moreno ofereceu um lugar à mesa que ocupava, onde outros bebiam entre nuvens de fumo. Ruy Vaz era intimo de todos e o Neiva foi apresentando o estudante:

Isto aqui é uma sucursal do Parnaso, com uma dependência mais lucrativa: a carne seca, dignamente representada pelo nosso correto amigo Victorino Motta, o bem-aventurado.

Um gigante, nédio e rubro, com um ventre quase esférico, sorriu estendendo a mão, gorda e mole como a luva de um esgrimista. O Duarte, rapazinho magro, pálido, com um ricto que lhe dava à fisionomia uma expressão hilariante; o Lins, baixinho, muito moreno, olhos apertados e oblíquos como os dum chim, bigode negro e ralo escorrendo-lhe pelos cantos da boca. Sentaram-se. Ruy Vaz, a pretexto de ir falar ao Heller, pediu um minuto e desapareceu na multidão. O Neiva, irrequieto, lançava os olhos um e para outro lado, desfechando sátiras, analisando os que passavam, à pressa. A campainha retiniu e o povo precipitou-se para o recinto ficando apenas alguns rapazes à mesa, entre cocottes, derriçando.

— Sabe ler? — perguntou abruptamente o Neiva dirigindo-se a Anselmo, enquanto o garçom ia enchendo os copos com a cerveja que o Motta mandara vir. O estudante sorriu vexado.

— Coragem, meu amigo! — bradou o Neiva; há vergonhas maiores. É poeta, aposto?! Antigamente era a lira o símbolo dos poetas, agora é o pince-nez... Que gênero?

— Ensaio-me na prosa, disse timidamente Anselmo. O Neiva ergueu-se violentamente como impelido por uma mola e encarou-o:

— E tenciona viver das letras? — perguntou assombrado. O estudante encolheu os ombros com resignação e o outro irrompeu: — Pois meu amigo, aceite os meus pêsames. E, inclinando-se, rugiu ao ouvido de Anselmo: — Cure-se! Não vá para um convento, vá para o hospício. Cure-se enquanto é tempo. Neste país viçoso a mania das letras é perigosa e fatal. Quem sabe sintaxe aqui é como quem tem lepra. Cure-se! Isto é um país de cretinos, de cretinos! Convença-se. É a Frígia do tempo de Midas: só vence quem tem orelhas. Olhe, se eu me debruçasse a um dos camarotes desta barraca e bradasse: "Que se conservem neste recinto os que sabem gramática", o teatro ficava vazio. Letras, só as de câmbio, convença-se. Olhe, temos aqui um exemplo. Estão conosco dois poetas e um carne seca, compare-os! Os poetas são lívidos, o carne seca, tressua ádipe e saúde. Por que? Porque o carne seca, que é aqui o nosso amigo Motta, tem todos os regalos: come como uma traça, bebe como um abismo, dorme como a Justiça e gasta como o diabo que o carregue! Ah! meu amigo, para temperar a vida, que é um prato difícil, não bastam os louros da glória. Olhe o nosso Motta: é o leão e nós? Somos os chacais.

— Sim, mas somos as lâmpadas.

— Lâmpadas!? Candieiros ignóbeis, ainda assim o azeite é o nosso oleoso Motta. Tornou a Anselmo: Moço, empregue-se; vá para o comércio. A carne seca é a base da riqueza das nações. Não se fie em períodos, mande à fava o estilo e atire-se, de faca em punho, às malas de carne seca se quer engordar, se quer ter consideração neste país. Um pai de juízo não deve mandar o filho ao colégio: a carta do ABC é subversiva. Para o armazém, para os tamancos! Olhe o nosso Motta: assina de cruz e tem mais de trezentas apólices, não sei quantos prédios, dois armazéns, três comendas, mais de vinte amantes e uma pança que é ó hemisfério da fartura. O Motta sorriu. Empregue-se!... Mas avançou empertigado, com o chapéu erguido: Vive la France! Passava uma rapariga loura e esbelta. Dando com o Neiva acenou graciosamente com o leque e ele, numa voz formidável, rouquejou:

— Avez-vous lu Manon Lescaut, madame?

— Non, j'connais pas d'bêtises, disse a cocotte e ele, tornando à mesa, tomou o copo e sussurrou: — É verdade, ninguém se conhece.

A orquestra atacou a abertura. O Motta, esbaforido, pediu licença e levantou-se. O tablado ficou deserto. Apenas um velho cabisbaixo, trincando um charuto, ia e vinha lentamente. ao longo da passagem. O Lins, porque estava entorpecido, levantou-se para dar um giro e foi arrastando uma perna entrevada, batendo com a bengala. Os três deixaram-se estar e, como o Neiva soubesse que Anselmo era do Norte, suspirou saudoso lembrando-se do seu Ceará, o seu amado Ceará, dos verdes mares bravios.

— Ah! meu amigo, quando me lembro da minha terra dói-me o coração. Isto aqui é vasto e tem mais civilização, mas não vale o nosso Norte, não vale! As nossas noites, as nossas florestas, o encanto daquela vida que tem ainda um vago sabor paradisíaco, a simplicidade daqueles costumes! E suspirou: — Sou um homem ao mar! Soçobrou a galera do meu futuro e aqui ando a braçadas aflitas do oceano da imbecilidade a ver se consigo alcançar algum porto. As velas que vejo são como esta urca que daqui zarpou, o Motta: dão-me um pouco de repouso, mas logo abandonam-me e lá vou eu nadando, nadando até que me sorva uma vaga mais forte. Sou um homem ao mar! E, depois de um trago, concluiu com desalento: — De mais a mais tenho uma rêmora que me tolhe os movimentos, é o coração.

— O senhor esteve na Faculdade de Medicina? — perguntou Anselmo.

— Sim, estive. Saí da vida, não pela porta da morte, senão da própria vida: foi o parto a minha morte. Morri de parto. Anselmo pasmou e o Neiva, muito calmo, disse:

— Vai ver. O meu lente, porque me não via com bons olhos, entendeu que me devia argüir sobre a obstetrícia inteira apresentando-me todas as dificuldades que podem surgir a um parteiro no momento complicado. Enquanto pude fui resolvendo: faria isto, faria aquilo, etc.... Veio, porém um caso tão intrincado que estive a propor a laparotomia, mas tive uma inspiração, feliz e lisonjeira para o lente: disse: "Num caso desses eu mandava, a toda pressa, chamar V.Exa...." O homem zangou-se; fui reprovado. Longe, porém, de entristecer-me, senti grande alívio na alma à idéia de que nunca concorreria para a desventura de um ser, trazendo-o a esta vida imbecil e insípida na qual só vencem os medíocres. Garçom, um fósforo! Está quente! E tenho ainda de ir ao Recreio encontrar a mulher amada. Estrugiu o coro da opereta e o Duarte, que o sabia de cor, pôs-se a cantarolar tamborilando na mesa. Iam caindo em melancolia, mas uma rapariguinha esguia e morena que entrara, vendo os rapazes, dirigiu-se para o tablado e, muito meiga, batendo de leve nas faces do Neiva. recriminou-o:

— Então é assim que você me esperou?

— Decididamente quando Eros nasceu a gramática ainda estava em substância informe. Passou-lhe o braço pela cinta e, com os olhos nela, disse: — Mas és tão bonita, minha cabocla, que os solecismos na tua boca parecem pérolas de estilo. Subitamente, carregando a fronte, em voz estentórica, simulando fúria:

— Diga-me, senhora... Quem era aquela montanha de suíças e óculos à cuja sombra gorda, a senhora ceava ontem no Bragança? Fale!

— Era um home, explicou dengosamente a rapariga, sentando-se.

— Um home... Deliciosa! E, inclinando-se, em tom infantil: — Dá beijoca a Neiva? Dá? Os lábios encontraram-se e o boêmio segredou a Anselmo, tocando na boca: — Já tenho um pretexto para ir amanhã ao escritório do Silva Araújo. Só então lembrou-se de apresentar a rapariga: — Olha, minha cabocla, apresento-te o meu amigo Anselmo Ribas, escritor. Vou logo dizendo a profissão para que não percas tempo com ele. Que vais tomar?

— Qualquer coisa.

— Não é bebida.

— Ora! escolhe você mesmo.

— Ah! queres que eu escolha? Atirou uma bengalada à mesa e trovejou:

— Garçom! Mercúrio para quatro! Houve uma estrepitosa gargalhada; a própria rapariga, que não compreendera o dito, riu, dando com o leque leve pancadinha no ombro do boêmio. O caixeiro serviu duas garrafas de cerveja.

Neiva bebeu sofregamente: tinha pressa, não podia deixar a mulher amada morrer de ansiedade no pátio do Recreio e despediu-se azafamado. A rapariga ergueu-se também.

— Até logo! Justamente terminava o ato numa explosão de palmas. O povo escoou para o jardim. Encheu-se o tablado e os caixeiros atropelavam-se, acudindo aos berros, às bengaladas que estalavam nas pequeninas mesas de ferro. Caíam bancos e, na passagem apinhada, cruzavam-se cocottes faceirando, respondendo aos galanteios com muito langor nos olhos e muitos requebros de quadris. Estouravam garrafas, subiam vozes confusas, entrecortadas de risos num zoar atordoador de colmeia atacada.

— Vamos dar uma volta? convidou o Duarte bocejando.

— Vamos; concordou Anselmo. E os dois levantaram-se caminhando molemente, acotovelando mulheres que tresandavam a essências. Mas a campainha ressoou de novo e começava o segundo ato, quando o Duarte, atristurado, com a bengala às costas, depois de haver falado, com muitos suspiros, de um amor infeliz que o havia de levar ao suicídio ou a Fernando, pôs-se a recitar baixinho, enquanto, em lento andar, percorriam a passagem deserta e a multidão ria às escâncaras das pilhérias do Vasques, uma poesia cheia de luar e de rouxinóis, com um pastor triste e pastora arisca que eram ele a divina criatura que o trazia amofinado obrigando-o àquelas devassidões noturnas. Que tal?

Anselmo comparou-o a Musset.

— Ah! Musset! Musset!...

Vous qul volez là-bas, légères hirondelles...

Mass mastigou o verso imedito e, enternecido, de olhos no chão, cantarolou:

Bacalhau feito na brasa Com cebola de Linhães, Tudo se encontra na casa, Na casa do Guimarães...

O estudante lançou ao poeta um olhar esgazeado.

— Que é isto?

— É o hino da bacalhoada. Não conheces a casa do Guimarães? Bacalhau, vinho verde, papas à portuguesa, iscas e dispepsias?

— Não, não conheço.

— Ah! meu amigo, é o meu Lethes. Ali é que vou procurar esquecimento para as minhas mágoas. Aquela ingrata dá comigo em todas as tascas e pocilgas desta cidade. Estou ainda curando-me de uma indigestão que apanhei por causa dos olhos dela. Ah! O amor! O amor...

... feito na brasa Com cebola de Linhães...

Mas Ruy Vaz apareceu brandindo a bengala, colérico.

— Decididamente é melhor ser calceteiro ou condutor de bonde do que homem de letras em um país como este.

— Que houve? — perguntou o Duarte.

— Ora! a minha peça. O senhor Heller entende que devo arranjar umas coplas e um jongo para a comédia. Uma comédia de costumes, que joga com cinco personagens... O homem quer, a todo transe, que venham negros à cena com maracás e tambores, dançar e cantar. Imaginem vocês: um antropologista puxando fieira e uma senhora, que vive a cuidar a sua árvore genealógica como quem cuida de uma roseira, que mostra, com enfunado orgulho, os retratos dos avós a quantos freqüentam a sua casa, a cortar jaca desabaladamente. É ignóbil! Revolta! E querem teatro...

— E tu?

— Eu! Não cedo uma linha! A peça já está em ensaios e há de ir como a escrevi: sem enxertos. Diz ele que o público não aceita uma peça serena, sem chirinola e saracoteios... Mas que tenho eu com o público? Cruzou os braços e, ferrenho, encarou o estudante como se ele fosse a representação do próprio público ignaro que exigia aquelas misérias. Não hei de estar a fazer concessões vergonhosas simplesmente porque o nosso público, saturado de vícios, entende que o teatro deve ser como um templo devasso. Isso não!

— Mas a peça cai, observou prudentemente o Duarte.

— Que caia! Que o diabo a leve para o fundo do porão, mas não cedo! Saíram os três. O romancista remoía a sua indignação e, como se precisasse do ar da noite sempre pura, numa necessidade de agitação, frenético, irascível, resmungando, propôs um passeio. O luar seduzia. Que belo seria poder ficar uma hora à beira-mar, lançando os olhos pela vastíssima planície, toda de prata e trêmula, sentindo a aragem salitrada, ouvindo as cantilenas dos que partiam nos barcos, ao sopro amável da brisa, desdobrando as redes! Ou, sob um caramanchel, em subúrbio tranqüilo, em plena natureza, ouvindo os grilos, ouvindo as rãs, ouvindo o gado, o murmúrio dum fio de água e o sussurro do arvoredo galvanizado pela claridade, fulgurando e cheirando. Que belo!

— Onde queres ir? — perguntou o Duarte afagando a idéia romântica de uma subida à Tijuca para verem, do alto, resplandecer a aurora.

— Sei lá! Pararam hesitantes em meio do largo. Tílburis moviam-se lentamente; de quando em quando um partia à disparada. A ronda passava vagarosa; os animais caminhavam como sonâmbulos, maquinalmente, a cabeça baixa e os soldados, derreados, iam como embebidos na luz magnífica que o astro branco vertia.

O S'adt Coblenz, a Maison Moderne, o Caboclo regurgitavam iluminados; às portas, grupos discutiam aos berros, agitando bengalas e, mais adiante, o Príncipe Imperial transbordava. O povo enchia o saguão e despejava-se amontoadamente espraiando-se em direções diferentes. E as luzes do frontão do teatro extinguiram-se subitamente ficando a rua em treva. Rodavam carros abertos; bondes enchiam-se e, de longe, vozes diferentes anunciavam com furor "Empadinhas de camarão".

— Mas para onde vamos? — perguntou de novo o Duarte. Não havemos de ficar aqui plantados, que isto até nos pode abalar a reputação.

— Pois sim! — murmurou o romancista lançando distraidamente os olhos para o monumento que avultava, muito negro, ao luar, com a imensa estátua dominando o largo. Anselmo aventurou, desejoso de fazer uma grande volta pela cidade àquela hora fresca e sossegada:

— Se tomássemos um bonde?

— Prefiro uma sopa, disse o romancista. Em vez de irmos à Tijuca vamos ali ao Coblenz que está mais à mão. Quando se tem o estômago vazio não há luar que valha um bife com batatas fritas. Vamos ao Coblenz! Mas o Duarte fez uma careta explicando: que não podia com a cozinha alemã; detestava aquela casa, mais os seus guisados. Não podia tomar ali um copo de cerveja sem lembrar-se de Sedan. Ó Alemanha cruel! Preferia a Maison Moderne que lhe dava a impressão de Paris. O romancista fitou-o:

— Quanto deves à Alemanha?

— Eu! — e espalmou a mão no peito. Uma miséria: creio que duas ceias e...

— E então por isso que não queres entrar?

— Não, mas o meu alfaiate costuma aparecer por ali. Aquilo é uma casa macabra: à noite é um cemitério, tantos são os cadáveres.

— Pois, meu amigo, estamos incompatibilizados. Tu não podes ir ao Coblenz porque ceaste duas vezes... e o teu alfaiate aparece, eu não posso ir à Maison por motivos idênticos. Como havemos de fazer?

— Separemo-nos.

— É com grande pena, mas não há remédio. Até amanhã.

— Até amanhã. E o Duarte estendeu a mão a Anselmo oferecendo-lhe a casa: — Moro em Botafogo para a estatística e outros efeitos sociais, mas resido à rua Teófilo Ottoni, no armazém de vinhos de meu pai. Quando quiser fazer de filoxera apareça por lá: há cama, mesa e cento e tantas pipas. Boa-noite! E foi-se recitando:

"Vous qui volez là-bas, légères hirondelles..."

— Agora nós, disse Ruy Vaz. Vamos ao Coblenz fazer um lastro. Dizem os médicos que, em tempo de epidemia, é um perigo andar-se com o estômago vazio e, como a febre grassa pavorosamente e eu tenho muito amor à vida e sou grande observador dos boletins higiênicos, vou trincar um bife. Não tenho fome, é como se fosse tomar uma cápsula de quinino.

Entraram e o romancista, sentando-se a uma das mesas, encomendou uma sopa a l'oignon e um bife à baiana e, enquanto preparavam os pratos, foi discorrendo:

— Grande é a incapacidade dos homens que nos dirigem. Se eles sabem que a febre amarela ataca de preferência os que têm o estômago vazio por que, em vez de andarem com fumigações, não estabelecem hotéis públicos, grandes hotéis profiláticos, nas praças, acabando, de vez, com essa ignomínia das farmácias? Não te parece?

— Sim, é lógico. Servido, pôs-se a tomar a sopa vagarosamente, saboreando, depois atirou-se ao bife e comia quando o Lins surgiu, muito risonho, arrastando a perna rija, a brandir a bengala:

— Isto acaba mal! — exclamou em voz engasgada que parecia vir do fundo do peito. Plantou-se diante da mesa e, rindo, com o rosto todo encarquilhado, repetiu: — Isto acaba mal! Anselmo ofereceu uma cadeira e o poeta, todo encolhido, perguntou:

— Pode-se pedir alguma coisa ou estamos em maré baixa?

— À vontade! — disse o estudante. Ruy Vaz, que ficara indeciso, com um pedaço de pão entre os dedos, trincou descansadamente, e o poeta, atirando uma palmada ao ombro do estudante, sempre a rir, meneando com a cabeça, elogiou-o:

— Tem muito talento! O caixeiro acudiu: Cerveja! esgoelou o Lins e atirando os braços para o ar: Muita cerveja! Eu hoje quero beber e, pungido, com uma grande expressão de dor: Estou muito triste. Imaginem vocês o meu gato! Fui encontrá-lo morto hoje de manhã. Um gatinho que era um encanto. Tão meigo que nem aos ratos fazia mal. Vocês não gostam de gatos? Rompeu a rir e, num berro atroador, atirando o busto sobre a mesa, estendendo os braços, encharcando as bordas do punho no molho do bife, repetiu a pergunta: — Vocês não gostam de gatos?

— Que é isso, Lins? — observou baixinho o romancista e o poeta, depois de o fitar espantado, olhou em volta dizendo:

— Que tem? Então eu não posso falar das minhas mágoas? Eu gosto muito dos animais. E furioso, tentando erguer-se, com o punho ameaçador, rugiu: — Perto de mim ninguém faz mal a um bicho, não admito! Agarro por uma perna e faço assim... Fez o gesto violento de quem torce e concluiu: — Ainda que seja... o imperador da China. Não admito! Mais calmo, porém, tornou ao assunto: — Então vocês não gostam de gatos? Miau! Miau! Chamfleury, Baudelaire, Gautier eram doidos por eles. Um angorá, hem?

— O teu era angorá? — perguntou Ruy Vaz.

— O meu? Qual nada! Era um gato muito ordinário que só me dava trabalho. Morreu! — disse juntando as mãos e elevando beatamente os olhos. Imaginem vocês... um gato que comia duas vezes ao dia. Ao ver a cerveja que o caixeiro trazia rompeu a rir apresentando o copo. Bebeu um gole e repetiu com os bigodes brancos de espuma: — Estou muito triste. Imaginem vocês: uma menina loura, muito loura, dona dos mais belos olhos azuis que tenho visto... uma figurinha de keepsake! Leonor, chama-se Leonor, imaginem vocês! Suspirou e sorveu novo trago. Hoje estou disposto a beber, bebo tudo... Não gosto de conhaque, pois bebo! Mas imaginem vocês, os mais belos olhos azuis que tenho visto! Uma menina loura, loura! Atirou um murro à mesa:

— Ofereci-lhe em um soneto a minha mão de esposo. Sim, porque é uma mão de artista; espalmou a mão para que Anselmo examinasse; ofereci-lhe, porque ela é mulher para viver sobre sedas e veludos, cercada de todos os carinhos, ouvindo versos líricos. É uma mulher divina, digna de um de nós, de todos nós! Palavra de honra e... imaginem vocês. Sacudiu um gesto indignado: — Isto não é vida, isto não é sociedade! Ah! Paris! Paris..

— Mas a menina...? — perguntou Ruy Vaz. O poeta encarou o romancista sorrindo e, de repente, derreando a cabeça, batendo com a bengala:

— Ah! Sim; eu queria fazê-la feliz... Imaginem vocês, tenho talento, posso fazer uma mulher feliz. Não posso?

— Sim, podes, disse Ruy Vaz.

— Pois ela não quis: vai casar com um taverneiro. Isto não é vida! Eu ainda faço uma desgraça. Mais cerveja! — reclamou.

Quando saíram o Lins, sempre risonho e oscilando como um pêndulo, propôs um passeio ao campo. Gostava da natureza àquela hora silente, tão favorável à meditação. Iriam para o arvoredo, sonhar.

— Não achas melhor sonhar na cama? — perguntou Ruy Vaz.

— Qual cama! Detesto esse móvel. O sono é uma fraqueza indigna dos homens de espírito. O sono é o resultado de uma anemia cerebral e, para as anemias, os médicos aconselham os tônicos e os exercícios. Eu já tenho os tônicos, vamos agora à outra medicação. Um poeta não dorme; o poeta é vidente e o vidente deve estar sempre com os olhos abertos. Rompeu a rir, logo, porém, muito sério, atirando uma punhada que o levou, no ímpeto, de encontro à parede, rugiu: — Eu queria andar. À noite é que a gente caminha à vontade porque as ruas estão desertas. Detesto a multidão! — e cuspiu enojado. A multidão é ignóbil! Não há como a solidão para um homem de talento. Vamos a Niterói: há ali muita poesia e eu tenho ainda uns restos de 1632... podemos fazer a travessia.

— Tiraste a sorte grande? — perguntou Ruy Vaz.

— Eu?! Deus me livre! Saiu ao Capitão Negro. Eu escrevi os versos fazendo a apologia da sorte do quiosque. Ganhei vinte mil réis. Vocês não leram os versos na Gazeta? Estão bem bons para o preço. Há apenas uma rima pobre demais para um poema da fortuna; rimei, imaginem vocês, rimei estrela com vela. O e estrela não faz boa liga com o de vela, um é grave, outro é agudo, mas também, por vinte mil réis, não posso estar a escolher rimas milionárias. Mergulho a mão no saco e o que sai é magnífico. Demais vela e estrela dão luz, ambas são luminosas. A vela é a estrela da terra, a estrela é a vela do céu, disse com ênfase. Mas o diabo é que eu empreguei o verbo. Vamos ou não a Niterói?

— Eu não vou, disse Ruy Vaz. Anselmo declarou que sentia bastante não poder acompanhar o poeta, mas tinha grandes afazeres no dia seguinte, precisava acordar cedo.

— Gente fraca! — disse ele com desprezo. Pois eu vou. Boa-noite! E, muito desequilibrado, entrou na Maison Moderne. Ruy Vaz e Anselmo seguiram.

A cidade dormia. Começavam a varrer as ruas. Densa nuvem de poeira empanava o brilho dos lampiões e, dentro dessa bruma espessa, de um tom alourado, moviam-se homens cantando e atirando vassouradas: carroças rodavam parando de quando em quando. Raras mulheres, debruçadas às janelas, cochilavam. Tílburis passavam à disparada e os dois, em passos apressados, seguiam cosidos aos muros, com os lenços à boca. Apitos trilaram ao longe e, com estrépito sonoro, os soldados da ronda passaram a toda brida através da poeira como cavaleiros fantásticos. Vinham rapazes cantando em vozeirão atroador.

Livrando-se da poeirada, os dois moderaram o andar e Ruy Vaz, queixando-se da vida que levava naquela casa, onde mal podia trabalhar, à falta de conforto, quis saber onde morava o estudante. Estava provisoriamente em um cômodo, no Estácio de Sá, mas pretendia tomar todo o segundo andar de uma casa na rua Formosa, que lhe oferecera uma velha viúva por preço vantajoso, com pensão. O romancista deteve-se e, encarando o estudante, perguntou:

— Conheces os cômodos?

— Conheço: sala de frente com duas janelas para a rua e uma para o telhado, alcova, sala de jantar, outra alcova e um mirante sobre o telhado.

— E pensão?

— Sim, com pensão.

— Por quanto?

— Eu tratei para dois: duzentos mil réis.

— Isso é um achado! E se morássemos três? — aventurou o romancista.

— Posso falar à viúva.

— Para quê? Depois de lá estarmos fala-se: é questão de mais um talher à mesa. Tens mobília?

— Alguma.

— E o outro? Quem é?

— Um estudante de Medicina, meu amigo, primo deste Duarte.

— Um alto, magro, de olhos tristes: Toledo, creio.

— Esse mesmo.

— Conheço muito. ~ um excelente rapaz. Vamos viver magnificamente. Quando fazes a mudança?

— Vou amanhã falar à mulher e, depois de amanhã, pretendo estar instalado, mesmo porque ando com idéias de trabalho. Tenho uma peça pronta e um romance esboçado.

— Depois de amanhã que dia é?

— Sábado.

— Magnífico! Vai lá falar à mulher e depois de amanhã mudamo-nos. Vozes atroaram o silêncio e uma célebre trepidação de rebanho em marcha fez com que os rapazes parassem colando-se à parede e logo dois campeiros surgiram, a cavalo, estalando chicotes, cantarolando e, em seguida, uma boiada a trote, os animais muito juntos, em bolo, silenciosos. Os grandes chifres entrebatiam-se e homens atiravam os cavalos à calçada ou passavam por entre os mansos animais, bradando, como nos campos: "Ehôo!... toca! Junta... êeh!" E a manada seguia e perdeu-se na poeira dourada de onde apenas vinham os gritos dos guieiros.

— É o bife.

— Para onde vai isso?

— Para Niterói, creio eu. Um bêbado resmungava cambaleando, às guinadas. Ouviram tinidos de campainhas e uma tropa de burros desfilou, sacolejando seirões, a caminho do mercado.

Vou-me embora... Vou-me embora! É mentira, não vou não... Se eu vou m'embora, faceira, Deixo aqui meu coração.

Cantava languidamente o tropeiro escarranchado na bestinha viajeira, puxando a récua.

— Pleno sertão.

— É verdade. No Campo estava um quiosque aberto; o romancista aproximou-se e, falando, com intimidade, ao homem, pediu uma vela. Encostados às grades do parque dois sujeitos discutiam chuchurreando o café em canecas de louça e uma negra, andrajosa e trôpega, com o peito ossudo descoberto, vacilando tropeçar na barra enlameada do vestido, com a baba a escorrer-lhe da boca, ia de um a outro mastigando palavras, atirando gestos moles, risonha, de olhos quase fechados.

— Vamos?

— Vamos. Seguiram. À porta da casa o romancista despediu-se:

— Então até amanhã.

— Sim, até amanhã, no Cailtau, às três, para combinarmos.

— Ó diabo! — exclamou Ruy Vaz procurando e escarafunchando nos bolsos.

— Que é?

— Não comprei aldraba.

— Que aldraba?

— Uma bomba. É com uma bomba que bato à porta, porque o meu senhorio entende que devo recolher-me às oito da noite e ordena aos criados que me deixem ficar à porta até a hora d'alva, batendo. Com o estouro da bomba no saguão é pronto: acodem logo. Hoje já sei que vou ver a aurora. Até amanhã, ou antes: até logo.

— Até logo! E Anselmo ia seguindo quando ouviu estrondo formidável como de um desabamento; voltou-se assustado: Que é isso?

— Estou acordando o Cérbero. E, com uma grande pedra, o romancista batia fazendo estremecer o pesado portão. O estudante já ia longe e ainda ouvia as tremendas pancadas que ressoavam longamente no silêncio.

Cabisbaixo, cigarro à boca, Anselmo caminhava a passo, contente daquele triunfo. Abrira-se-lhe, enfim, a porta ebúrnea do ideal, ia entrar na ventura, na grande vida espiritual, entre artistas: poetas e prosadores, estatuários, músicos, pintores, a legião augusta dos que eternizam o sonho... Sombras andavam-lhe em torno — rapazes e raparigas, lá iam em surdo deslize, passavam, perdiam-se. Bem os conhecia, eram eles: Rodolfe, Marcel, Coline, Schaunard, ouvia o riso de Mimi, a tosse de Francine, o alarido alegre do café Momus. E seguia alheado do real, através do silêncio, raro em raro encontrando um soldado, um ébrio aos cambaleios ou retardatários que recolhiam sonolentos.

O luar, sempre branco, caía sobre os telhados e, quando ele chegou à casa, mergulhada numa grande paz de sono, subiu ao sótão, abriu largamente a janela e, alongando os olhos, pôs-se a contemplar as fitas de luzes que se estendiam como círios de uma procissão interminável que andasse pela cidade em penitência. Mas o sonho foi-se tornando maior, em grandioso crescendo: era a festa triunfal da sua vitória: a cidade esplendia, o céu irradiava. E, ouvindo o confuso rumor que chegava de longe, na aragem, como a ressonar da cidade imensa, dormindo sob o lençol do luar, parecia-lhe o marulho longínquo dos que vinham, com luzes, arrancá-lo daquela mansarda para a apoteose.

Galos cantaram. Lançou um último olhar à cidade e ao céu e recolheu-se. Embaixo, no silêncio da casa, um relógio lento bateu três horas.