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A Conquista/VIII

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No dia seguinte, às quatro da manhã, todos de pé e alegres começaram a encaixotar os livros e, às nove, pararam à porta as duas andorinhas. Dona Ana, avisada pelo filho, quis embargar a mudança, mas os carregadores não atendiam e, placidamente, iam descendo os trastes que ficaram folgados nas duas imensas carroças.

João de Deus já se preparava para tomar um lugar à boléia, quando o Toledo apareceu com o esqueleto embrulhado num lençol, confiando-o ao negro para que o levasse cuidadosamente. O africano, que não via com bons olhos aquele despojo de finado, fez uma careta significativa, entendendo que era melhor escondê-lo no bojo de um dos transportes, mesmo para que a polícia, alarmada, não fosse acompanhando a mudança na suspeita de um crime. O anatomista, porém, convenceu-o com palavras brandas:

— Não, João, tem paciência!... Não quero perder o esqueleto. Na carroça, com os solavancos, pode haver fratura de algum osso e lá se vai o meu precioso manequim. Tem paciência, leva-o contigo. Isto é a minha enxada, João. Isto é que me há de dar o pão para a boca. Toma cuidado, meu velho.

O negro submeteu-se e, enrolado o esqueleto, lá foi ele para a boléia muito rijo e, com a ossada sobre as pernas, parecia, mal comparando, o Anúbis egípcio com uma múmia ao colo.

Na sala deserta, por onde voavam esparsas folhas de papel garatujadas, reuniu-se o conselho para resolver se deviam despedir-se da viúva ou sair sobranceiramente sem palavra. Anselmo opinou pela retirada sobranceira. Ruy Vaz, porém, grato aos antigos acepipes, grato aos passados tempos de fartura e paz, quis levar à viúva os seus agradecimentos e, como o Toledo concordasse, houve maioria e os três desceram e foram bater à porta da sala de jantar, mas Dona Ana rugiu furente: "Que fossem para o diabo!", e ganiu uma praga cruel.

Seguiram, então, apartando-se daquela casa sem adeus. Da rua lançaram um saudoso olhar à sacada e viram Vidinha, com o rosto formoso encostado à vidraça, seguindo-os com um olhar de melancolia. De repente, porém, João irrompeu, de cigarro à boca, franziu a cara numa careta e sacudiu um gesto vil.

— Peralta! — disse baixinho o Toledo mas Anselmo, indignado, com os olhos relampejantes, pálido de fúria, estacou ameaçador:

— Eu vou quebrar a cara daquele patife!...

— Estás louco, homem? Vamo-nos embora! E o João dançava na sacada com acenos indecorosos e caretas horripilantes.

Antes de tomarem rumo foram ao café e Anselmo, para fazer lastro, engoliu três empadas e um copo de leite e, reconfortados, como na véspera havia caído do céu uma nota de vinte mil réis, foram os três repousadamente, a bonde, descendo na rua Santo Amaro. Quando chegaram, já as andorinhas despejavam os trastes com grande pasmo dos vizinhos que viam tanta velharia e tão desencontrados móveis entrando para aquele prédio nobre e de tão alto preço, de onde havia saído a família de um fidalgo, seguida de uma dezena de andorinhas que, ainda assim, foram poucas para levar os finos erables, os magníficos jacarandás, o precioso carvalho florejado, as raras perobas tigre, o pau rosa, o ébano, um retumbante Erard e cristais, bronzes, mármores, estofos, tapeçarias e a baixela e a faiança e os quadros, porque, depois de haverem desfilado lenta e longamente os transportes, que rangiam atestados, homens ainda desceram carregados e até a primeira hora da noite, tendo a mudança começado com os brilhos suaves da manhã, como de uma cidade que a peste ou a guerra houvesse ameaçado, foi um constante transitar de gente: negros com chocalhos e brancos e mulatos, homens de várias terras, falando várias línguas, arquejando, curvados sob pesos inauditos, ladeira abaixo, em passo rítmico e seguro.

Quando o tapete, que representava a voluptuosa cena do serralho, foi estendido no vastíssimo salão do pavimento superior, usa dos homens das andorinhas apresentou a Ruy Vaz o recibo. O romancista guardou-o, o homem, porém, não se moveu coçando a cabeça empastada, com os olhos muito abertos, um cigarro mole ao canto da boca.

— Que é? Está entregue, pode ir.

— É que... é que ainda não está pago o serviço, murmurou com um sorriso parvo.

— Como! Não está pago?

— Não, senhor.

— Pois volte com o recibo, porque a pessoa que tratou lá deve ir pagar.

— Não dá alguma coisa para matar o bicho? — murmurou o homem em tom pedinte.

— Não, respondeu Ruy Vaz sisudamente — sou da sociedade protetora dos animais.

O carroceiro lançou um olhar rancoroso ao romancista, tomou o papelucho, meteu-o no bolso profundo e, dando volta nos calcanhares, rosnou: "Às ordens..." e desceu. Ruy Vaz mandou João de Deus trancar as portas e começou a arranjar a casa.

Toda a mobília não dava para encher um dos quartos e a casa imensa ficava desoladamente vazia, apesar de haverem os rapazes espalhado, com sabedoria, as cadeiras e as estantes.

— Não se sacia este monstro! — rosnou Ruy Vaz desesperado. Estão aqui os móveis de três homens e nem parece. E um abismo!

O tapete no salão era como uma pequenina ilha na imensidade do oceano. João de Deus tomou conta de um dos quartos do primeiro pavimento, pousou a rodilha no chão liso e, como estava esfalfado, estirou-se e dormiu. Os rapazes desceram e como queriam provar todas as delicias da casa, foi Anselmo para a barra fixa, Toledo pendurou-se no trapézio, enquanto Ruy Vaz estudava o estilo das pinturas da sala de jantar.

Já a tarde roxa caía quando, sem esperança de que aparecessem os preciosos móveis de Crebillon e a louça e o trem da cozinha, resolveram mandar à venda buscar ovos e pão para que João de Deus arranjasse uma omelete rápida, mas o negro lembrou ponderosamente que não havia frigideiras nem pratos, propondo umas sardinhas de Nantes.

As razões do negro foram julgadas procedentes: optaram pelas sardinhas e, quando as latas apareceram abertas, cada lata acompanhada de um pão louro e trepidante, houve alegria no grupo. E porque não chegara a mesa de imbuia, a grande mesa dos futuros banquetes, foi sobre o fogão monstruoso e de pé, como os israelitas comiam o cordeiro da Páscoa, molhando o pão no azeite, que os quatro devoraram silenciosamente, enquanto uma cigarra cantava na araucária e as magnólias abriam-se com suave aroma.

Quatro longos, ansiosos dias passaram sem notícia de Crebillon. Aflitos, os rapazes dispersavam-se todas as manhãs indo aos pontos que o abolicionista costumava freqüentar mas ninguém informava; o próprio charuteiro nada adiantou sobre o mistério. E a casa, imensa e nua, à noite iluminada profusamente, parecia um palácio maldito, despovoado e silente onde, a horas altas, com tinidos de ferros e uivos, espectros vinham purgar crimes sobre tesouros escondidos nas muralhas grossas ou sob o soalho forte.

Mas João de Deus encarregou-se de afugentar os duendes, não com hissopes e rezas, mas com um gato, magro e gafento, que entrou num saco, miando, e foi despejado no salão, desaparecendo em seguida. Mas como não cessava de miar ora debaixo fogão, ora no banheiro, ora no corredor, calaram-se os rumores e o assombramento desapareceu.

Uma tarde, já cintilavam estrelas, os rapazes digeriam no jardim uma gorda feijoada que haviam saboreado no hotel do G. Lobo, à rua do General Câmara, casa de modesta aparência e módica, onde um homem podia empanturrar-se com quinhentos e oitenta, sobremesa inclusive, quando João de Deus, sobressaltado, anunciou a mudança de Crebillon.

Posto que achassem a hora imprópria para a entrada de tão preciosos móveis, abalaram à pressa chegando ao corredor justamente quando o abolicionista, com o seu vozeirão atroante, recomendava a um homenzinho "que tivesse cuidado com os trastes", encarregando João de Deus de ir ao pavimento superior mostrar o quarto ascético que se reservara. Dando com os rapazes respirou esbaforido, limpando o suor da fronte.

— Ó homem, onde te meteste? — perguntou Ruy Vaz.

— Ah! Meu amigo: sou um ressuscitado. Vamos lá para o jardim enquanto arranjam o seu quarto.

— E os outros móveis? — perguntou Anselmo.

— Vêm depois. Se estou a dizer que sou um ressuscitado.

— Mas que houve? — indagou com interesse o Toledo.

— Que houve, hem?! Quase me vou desta para a melhor.

— Como?

— Vamos lá para o jardim; preciso de ar.

Caminharam. Na sala de jantar Crebillon reconheceu que aquilo não podia continuar como estava e perguntou como se haviam arranjado.

Imagina! Sem nada em casa.

— Sim, mas vamos pôr isto em ordem amanhã mesmo. Amanhã...?! elevou os olhos, alisou a pêra e disse com desgosto:

— Amanhã não é possível, tenho um negócio de madeiras. Depois de amanhã.

— É domingo.

Na segunda-feira então.

— Mas o teu caso... lembrou Ruy Vaz.

— O meu caso... Ah! Meu amigo, se eu não fumasse charuto era hoje cadáver. Estava frito! Devo a vida a um charuto.

— A um charuto...?

— A um charuto, é verdade! Os rapazes encararam-no esgazeados. Vamos para o jardim. Isto aqui é uma estufa. A um charuto... E há imbecis que combatem o fumo. Se eu não fumasse, ah!

Desceram ao jardim e, à falta de bancos, sentaram-se na relva tépida. Só Crebillon, de pé, ia e vinha, narrando:

— Ouçam vocês, e pasmem. Tenho um amigo na Bocaina, Simas Fontainha, um gigante, que negociou em negros e possui hoje uma fortuna que os herdeiros calculam em oitocentos contos, parte em dinheiro, parte em terras magníficas de lavoura e gado. Esse homem, que orça pelos sessenta anos, com todos os dentes e sem um fio de cabelo branco, é um dos mais intrépidos caçadores que tenho conhecido, e eu caço desde os quinze anos, tenho caçado em todas as florestas do Brasil, desde o Amazonas até o Prata, como no hino. Sempre que o Fontainha pretende fazer uma surtida, manda-me aviso, porque, diz ele, não há quem atire como eu. Atiro regularmente, isso atiro! — afirmou com orgulho, alisando a pêra, e, de olhos altos, vendo passar um morcego, fez um parêntesis. Num cavalo à rédea solta mato andorinhas no vôo, andorinhas ou morcegos, conforme a hora. Isso é nada para mim. Mas voltando ao caso. Justamente no dia em que aqui estive com vocês, chegando à casa, encontrei uma carta de Fontainha. Cá está ela! tirou do bolso profundo a carta atribuída ao Nemrod da Bocaina e pôs-se a fazer a leitura com um vozeirão trovejante:

"Crebillon. Anda por aqui uma onça terrível, que me tem levado a flor dos rebanhos: é um carneiro por noite, às vezes novilhos. Pus a minha gente em campo e já lhe descobriram o paradeiro. Vem dai, quanto antes, para ajudar-me a dar cabo da fera, senão fico sem uma vaca de leite. Não é pela vaca, mas pelo leite. Bem sabes que não posso dispensar o meu copázio pela manhã, mungido pelas minhas próprias mãos, no curral. Se a onça levasse as vacas e deixasse os ubres eu não iria incomodar-te pedindo o teu poderoso auxílio e a tua pontaria, mas vão-se também as tetas e eu não estou em idade de ser desmamado. Vem. Conto contigo."

Dobrando a carta, atafulhou com ela no bolso interior da calça e continuou: Devo grandes obséquios a Simas Fontainha. Tratava-se, não de um simples divertimento, mas da salvação da fortuna do meu amigo. Não hesitei. Fiz uma pequena bagagem, encerrei no estojo a minha espingarda inglesa e, às cinco da manhã, seguia eu para a estrada de ferro que me deixou na Cachoeira de onde, a cavalo, parti para as terras devastadas do meu amigo. Quando passei a porteira houve um grande clamor no terreiro da fazenda: "Está morta a cotó! Está morta a cotó!" E o numeroso bando dos caçadores veio ao meu encontro, saudando-me com delírio. Simas tinha lágrimas nos olhos e, quando me apertou nos braços, senti que tremia aquele homem extraordinário que, com um murro da mão canhota, aos vinte e cinco anos, derrubou dois touros.

— Dois! — exclamou Anselmo.

— Sim, dois: um, o que levou o murro, outro porque estava atrás do primeiro e foi por ele esbarrado tão violentamente que caiu como se o houvesse fulminado um raio. Não prometi grande coisa, mas disse: "Fontainha, meu amigo, a onça que peça a Deus que eu não lhe ponha os olhos em cima." Como é ela?

— É uma onça sem rabo.

— Sem rabo? Amanhã será mais do que isso — será uma onça sem cabeça. Corto-lhe a cabeça com uma bala!

— Com uma bala!?

— Com uma bala! Pois então? Achas impossível? — perguntou a Ruy Vaz. Pois, meu amigo, é só questão de pontaria. Eu, com uma boa espingarda, faço o que quero. Não digo que corte a cabeça, mas derrubo a onça e depois é só um talho de faca. Pensam vocês que é coisa do outro mundo cortar a cabeça a uma onça? É facílimo; questão de calma. Mas vamos ao caso. Fontainha, levando em conta a viagem fatigante que eu fizera, marcou a caçada para a noite seguinte, mas eu protestei logo, com energia:

"Não senhor, há de ser hoje mesmo, vamos ao antro!" O meu amigo quis ainda argumentar, mas eu fui inflexível: "Há de ser hoje mesmo." Meti-me num banho morno, devorei duas costeletas e, às onze horas, com o luar, partimos para a serra com vinte e tantos cães. Éramos dezoito ao todo, dezoito homens ferozes. Fomos seguindo os passos relentados do cavalo do guia, e, para a madrugada, chegando a uma estreita garganta, senti o meu cavalo estremecer e logo um dos cães partiu galgando umas rochas e desapareceu. Estávamos junto de uma grande árvore e olhávamos na direção que havia seguido o cão, quando o vimos reaparecer murcho, farejando os caminhos; os outros andavam longe. Vendo eu que ainda não havíamos encontrado a fera, acendi um charuto e dei o sinal de partida...

Mas tu fumas quando caças, Crebillon?

— Eu fumo sempre. Já os nossos cavalos iam caminhando quando o cão investiu contra a grande árvore, ladrando, ganindo furiosamente, a arranhar o tronco como se quisesse subir por ele acima. "A bicha está ali!" — disse um dos homens e tornamos todos, pondo cerco à grande árvore. Levantando os olhos, e procurando ver por entre as folhas, descobri a fera entre os altos ramos. Os olhos luziam-lhe como duas brasas e o meu cavalo tremia que era uma vergonha. Ainda assim levei a arma à cara e pum! A onça veio abaixo...

— Morta?

— Qual morta! Viva como um alho... Pois se o meu cavalo tremia que era um horror. Ah! Meus amigos, que berro! O cavalo empinou e eu senti as barbas do animal no meu rosto. Estou morto! — disse com os meus botões, mas sem perder a calma, soprei uma baforada de fumo, e foi a minha salvação! A onça começou a tossir e a espirrar dando-me tempo para arrancar dos coldres a garrucha e, sem precipitação, encostei-lhe o cano da arma à fronte e disparei. O animal rolou pesadamente na terra. Era um monstro! Aí têm vocês toda a minha aventura. A quem devo a vida?

— Ao charuto, sem dúvida.

— Ao charuto! E dizem que o fumo faz mal.

— E quando chegaste da Bocaina? — perguntou Ruy Vaz.

— Ontem à noite.

— E ainda haverá por lá alguma onça?

— Não, aquela era a última.

— Bem, então agora podes cuidar da casa.

— Sim, posso. Encarou o romancista e exclamou: Que diabo! Parece que vocês desconfiam de mim!

— Não, ninguém desconfia de ti, Crebillon. Mas deves compreender que é um suplício vivermos em uma casa como esta sem uma cadeira e com esse soleníssimo fogão apagado. Confiamos em ti, mas...

— Mas quê?

— Nada...

— Pois na próxima segunda-feira os senhores terão aqui os trastes. Eu só tenho uma palavra.

Era noite fechada. João de Deus já havia iluminado a casa quando os rapazes entraram e subiram ao pavimento superior para ver os preciosos móveis do presidente. Crebillon não parecia muito disposto a mostrar os seus haveres, tinha certo pudor querendo adiar para o dia seguinte a exposição, mas Ruy Vaz forçou a entrada e, no quarto, o romancista pasmou da sobriedade:

— É isto, Crebillon?

— Sim senhor, nada mais.

— Nem cama, ao menos?

— Nunca me deitei em camas. Nasci em rede e em rede hei de morrer.

A rede oscilava entre a porta e a janela. Havia uma pequena mesa de pinho envernizado, duas cadeiras, uma canastra e vários embrulhos que Crebillon começou a desfazer resmungando:

— Vocês têm a mania do fausto... pois, meus amigos, não há como a modéstia. O luxo excessivo entibia o caráter e amolece o físico. Lancem vocês um olhar ao passado e hão de ver que as nações começam a enfraquecer à medida que se vão tornando suntuosas: Babilônia caiu com o devasso Nabonahid. Sempre vivi assim detestando a pompa e sou um forte, sou um homem! Acho que o luxo deve ser comedido — uma boa sala de jantar, um salão deslumbrante, mas no quarto de dormir um duro grabato ou uma rede, nada mais. As camas enfraquecem e depravam. Aqui está a minha mobília: a rede, a mesa em que somo parcelas e escrevo à família, duas cadeiras, a minha espingarda inglesa, os couros das feras que tenho abatido, um gogó de macaco...

— Gogó de macaco! Para que diabo queres gogó de macaco?

— Para a minha asma. Quando me vem o acesso bebo um d'água pelo gogó e fico logo curado.

— E aquele couro que ali está, perto da mesa; é de alguma fera?

— É de cutia. Uma cutia levada dos diabos, que matei no Desengano. Persegui-a durante todo um dia a cavalo, com vinte e quatro cães e só ao cair da noite consegui matá-la à beira de um açude.

E, à medida que ia desfazendo embrulhos e pacotes, complicadamente enleados, contava a história de cada um dos objetos que expunha à admiração do grupo. Eram peles curtidas, presas de onças, colmilhos de caititus, bicos de tucanos, cascos de tartarugas, garras de rapaces, caveiras de monos e uma vértebra de baleia que era o seu banco predileto; várias facas e um ferro de lança enferrujado e roído. Quando tomou entre os dedos essa antigalha épica, disse com solenidade:

— Isto que vocês vêem foi achado no campus ubi Troya fuit! É o espículo de uma sarissa grega, talvez da que foi de Agamenão ou de outro qualquer dos chefes que sitiaram e arrasaram a cidade de Príamo. Um inglês ofereceu-me quatro mil libras por este ferro e teria elevado a oferta a dez mil, se eu não lhe houvesse dito que não me desfazia deste objeto nem que ele me oferecesse a própria Inglaterra com todas as suas colônias.

Anselmo arregalou os olhos admirando a preciosíssima peça e quis vê-la de perto, tomou-a e só achou aspereza e ferrugem, mas recordando Homero, lembrou-se de que aquele pedaço de ferro velho talvez houvesse pertencido ao filho de Peleu, talvez houvesse atravessado o corpo de Heitor e, enquanto Crebillon ia mostrando aos outros vários objetos curiosos, o autor de A Profecia, à luz do gás, revolvendo entre os dedos o ferro da lança, recapitulava a Ilíada, rapsódia a rapsódia, ouvindo não somente o armistrondo e o alarido como a voz dolorosa de Cassandra que profetizava e os gritos e o guaiar de Hécuba infeliz.

Ruy Vaz, posto que não fosse indiferente ao ferro clássico, preferia, em vez dele, um simples contador ou outro qualquer móvel de mais utilidade. O ferro era precioso, mas não enchia os grandes vácuos da casa. Mas como Crebillon havia prometido não quis enfezá-lo mais e, deixando-o com o seu museu de antigüidades, estirado na rede, em ceroulas, com o cachimbo nos beiços, contando a Anselmo uma terrível caçada nas matas bravias do Piauí, foi trabalhar no seu novo romance, que era a vida fantástica de um padre vítima de uma empusa, como Menipo que foi salvo miraculosamente por Apolônio.

Na manhã seguinte, ainda havia névoas, e já Crebillon bradava por João de Deus para que lhe arranjasse café.

O negro subiu receoso e trêmulo para dizer que não havia nada em casa — nem chaleira, nem xícaras. Crebillon achou impossível que não houvesse coisas tão insignificantes e perguntou como se haviam arranjado os moços nos outros dias para tomar café? João de Deus balbuciou:

— Eles não tomam café.

— É a eterna falta de ordem. Assim, meus amigos, começamos mal, disse Crebillon bem alto para que os rapazes ouvissem do quarto. Assim começamos mal. Sem ordem não arranjamos nada. Não há lá em baixo uma garrafa? O negro afirmou: que havia na dispensa. Pois lave-me bem uma garrafa, vá a um botequim ali na rua do Catete e traga-ma cheia de café. Café fresco, viu? Se não for fresco volta.

— E xícaras? — ousou perguntar João de Deus.

— Xícaras... ainda mais essa. Pois traga três xícaras e quatro pães com manteiga. Vá depressa; tome o dinheiro.

Os rapazes ouviam o diálogo do presidente e do negro.

Só, passeando descalço ao longo do corredor, Crebillon resmungava:

— É isto. Quando eu digo que a ordem é tudo, clamam que impertinente, que me quero impor como mandão e não sei mais, e é isto. Metem-se em uma casa como esta sem uma chaleira, ao menos. Assim não é possível. E queixam-se depois da sorte — porque não podem trabalhar, que são infelizes, e... patati e patatá. Três homens dentro de um palácio sem uma chaleira. Assim não é possível.

Ruy Vaz, que tudo ouvira, saiu ao encontro de Crebillon, no corredor:

— Que é isto, homem?

— Que é isto! Pois vocês nem uma chaleira têm!

— Não!...

— Isto é demais!

— Também acho.

— Vocês hão de viver sempre em dificuldades.

— Sem chaleira?

— Não é sem chaleira, é sem ordem.

— Eu penso como tu.

— Pensas como eu, pensas como eu, e se eu quis tomar café tive que mandar João de Deus a um botequim com uma garrafa, quando possuímos o primeiro fogão da América do Sul.

— Que culpa tenho eu disso?

— Que culpa tens?

— Sim, que culpa tenho?

— Já sei que me vens com a lenga-lenga da mobília.

— De certo. Conheces perfeitamente as nossas condições. Quando nos propuseste a mudança, disseste que tomavas à tua conta a montagem da casa, da cozinha à sala de recepção. Que fizeste? Foste caçar a cotó na Bocaina. Ofereceste-nos as andorinhas e não as pagaste, fazendo-me passar por um vexame indizível e ainda vens bradar irritado por que não há chaleira? Como queres que haja chaleira se nada trouxeste?

— Mas hei de trazer.

— Pois bem: quando trouxeres haverá.

— Pois sim, mas sem ordem nada se faz. A minha questão é de ordem.

— Bem sei... a mobília que venha que a ordem há de aparecer. Que nos pediste tu? Silêncio e moralidade. Isto em silêncio é um túmulo, os próprios ratos, que faziam rumor à noite, já não aparecem porque o gato faminto não lhes dá tréguas. Quanto à moralidade, meu amigo, a Elvira e a Amélia pedem a todos noticias nossas e ninguém as dá, porque ninguém sabe onde moramos. Bem vês que vamos cumprindo à risca o contrato que celebramos, entanto de mobília... nem um pires.

— Há de vir.

— Deus te ouça!

João de Deus interrompeu a discussão aparecendo com a garrafa e um embrulho que tiniu quando foi pousado sobre uma janela.

— Que é isto? — perguntou Crebillon apalpando o embrulho.

— Pão e canecas de folha. As de louça quebram muito, disse o previdente negro.

— Pois havemos de tomar café em canecas de folha, como Cucravos?

— Que tem...? — disse Ruy Vaz.

— Não fazes questão?

— Não, desde que o café esteja quente.

— Está fervendo, afirmou João de Deus.

— Então não faz mal. Há quatro canecas, não'?

— Sim, senhor.

— Então vá chamar os doutores.

Logo que chegaram, Toledo e Anselmo, que não contavam com aquela agradável surpresa, tiveram a sua reação e, por um momento, foi esquecida a nudez da casa. Mas no melhor do gozo a campainha retiniu estridente e João de Deus subiu a anunciar o homem das andorinhas.

— Que se há de fazer?

— Vai lá dizer que não há ninguém em casa, João. O negro hesitou, Anda!

— Eu já disse que o senhor estava aí.

— Como! Pois vai dizer que te enganaste, que quem está em casa és tu.

— Eu não posso dizer isto. O homem é capaz de querer brigar.

— Ah! Ele briga? É valente? Então manda-o cá em cima que eu o arranjo. Manda-o!

João de Deus ficou hesitante, retorcendo um lustroso boné de seda que lhe dera o Toledo enquanto Crebillon, arregaçando a manga da camisa, com uma afiada faca pernambucana, pôs-se a raspar lentamente os pêlos do braço esquerdo, mais guedelhudo do que o de um gorila.

De repente, numa resolução, pôs-se nu, fechou a carranca, rangendo os dentes e rugiu ensaiando ferocidade.

— Muito bem. Voltou-se para o negro, que pasmava boquiaquiaberto. — João, vai buscar o esqueleto. Vamos! João de Deus escafedeu-se. Agora, ouçam vocês. Não estou disposto a aturar um tipo que nos vem, todos os dias, importunar por uma miséria de vinte mil réis. Se eu os tivesse, dava-lhos, mas toda a minha fortuna reduz-se a 4$600. Com argumentos de convicção nada conseguiremos, portanto, para evitar uma cena ridícula à porta do palacete, vou empregar os recursos supremos. É necessário que esse sujeito não torne à nossa porta...

— Que vais fazer, Crebillon?

— Vou fazer uma cena tremenda com o esqueleto do meu rival. Justamente João de Deus aparecia com a ossada nos braços e Crebillon sentou-a em uma das cadeiras diante da porta. Quando eu romper aos berros é bom que vocês aparentem desgosto e tristeza, lamentando o meu estado, mas de longe. E deixem-me com o homem. Vai, João. Manda-o cá em cima.

A campainha retiniu desesperadamente.

— E se o meco não acreditar na farsa, Crebillon?

— Dou-lhe os 4$600 por conta.

— E se ele não aceitar?

— Esgano-o! O negro ia saindo quando Crebillon o chamou: Ouve cá, João. Hás de dizer ao homem, para preparar-lhe o ânimo, que estou na minha crise, compreendes? O patrão está hoje na sua crise nervosa. É bom que o senhor não se aproxime muito. Entendeste? Crise nervosa.

O negro repetiu, torcendo o boné lustroso:

— Crise nervosa...

— Isso! Vai com Deus.

O negro desapareceu. A campainha retinia sem descontinuar. Quando as escadas rangeram Crebillon, reconhecendo o inimigo, pôs-se a saltar no quarto, nu, ululando e brandindo a faca que reluzia. João de Deus não se atreveu a aproximar-se, mostrou ao homem o quarto e ficou à distância respeitável esperando o desenlace da cena. Crebillon rugia sempre e o homem olhava, esgazeado, as imensas salas desertas que apenas o sol ornava e o vozeirão tremendo do abolicionista enchia atroadoramente.

— Ah! Miserável! Grandíssimo biltre! Pensas que estou saciado? Ainda não! A morte não basta! Vou agora esconder os teus ossos... Quero ver no Juízo Final a cara da tua carne quando os anjos do Senhor tocarem a reunir... Hás de procurar os ossos debalde. Vou escondê-los no forro da casa... Lá em cima!

O homem, ouvindo palavras tais, andava com os olhos de um lado para outro como se procurasse alguém, quando Ruy Vaz apareceu demudado, preocupado, metendo os dedos pelos cabelos e, dando com o carroceiro, perguntou-lhe se queria alguma coisa.

— Sim senhor: vim receber a conta da mudança.

— Ah! Sim... Mas em que dia veio o senhor!

Crebillon urrava, sapateava, atirava botinas ao chão e falava insanamente em Juízo Final, em Clube dos Fenianos, em angu de preta mina, em Angélica da Costa...

— Ah! Meu amigo, está ouvindo?

— Sim, senhor. O preto disse-me que o patrão está algum tanto incomodado.

— Incomodado? Está perdido, irremediavelmente perdido. Já mandamos uma comunicação ao Hospício para que o venham buscar. Está impossível. Voltou-lhe a crise.

— Ah...

— Ele julga-se a Via-Láctea e diz que veio parar na terra porque um homem perverso, esse tal que ele injuria...

— O homem está lá?

— Não, quem está lá com ele é o esqueleto.

— O esqueleto do homem...?

Não houve tempo para mais explicações. Crebillon saia do nu, arrastando o esqueleto e brandindo a faca. O carroceiro, logo que o viu, fez menção de fugir, mas Crebillon dando com ele, pôs-se a ranger os dentes, a arregalar os olhos e era horrível de ver-se-lhe o carão purpúreo com a pêra ruiva que a chama invertida de um grande círio. Sem tirar os olhos do homem, encostando o esqueleto à parede, foi passando a lâmina da faca no braço nu e, feroz, agachado, avançava pé ante pé. O homem estava lívido e tremia quando Ruy Vaz, querendo interceder por ele, com uma seriedade imperturbável, falou a Crebillon:

— Ouve, Thomaz, ouve... Sou eu, teu amigo. Então não me conheces?

— Este não é o Serafim? O dono dos ossos? É ele mesmo... Ah! Miserável, que fizeste de Maria Angélica? Onde está Maria Angélica? Pensas que me escapas? Olha, os teus ossos já estão ali, agora o resto... Eu preciso da tua carne para cobrir o esqueleto que está com frio. Ergueu os braços e uivou: Ah! Maria Angélica...! Vais ser vingada! Serafim está aqui! Vou picá-lo em bocadinhos... Em bocadinhos, Maria Angélica, em bocadinhos!

De repente, dando um salto feroz, ia deitar a mão ao homem e tê-lo-ia alcançado se ele não deitasse a correr, precipitando-se escada abaixo, aterrado. Crebillon acompanhou-o até o patamar, brandindo a faca e urrando os nomes misteriosos de Serafim e de Maria Angélica, mas a porta bateu com violência e João de Deus, que fora espiar o homem, subiu a anunciar que ele havia desaparecido.

— Deste estamos livres. E foi o esqueleto que o aterrou.

— Similia similibus curantur, disse o Toledo saindo do quarto para apanhar a ossada libertadora. E o dia passou-se todo em comentários alegres. Para a tarde, porém, com o roxo e melancólico crepúsculo e com a fome, a alegria foi-se dissipando e a casa tornou-se um palácio de suspiros.

Os dias corriam e Crebillon ia protelando a compra dos móveis até que, uma noite, recolhendo-se muito cedo e à pressa, anunciou nova viagem à Bocaina para dar cabo de uma corda de porcos que devastavam a roça de milho de Fontainha. Os rapazes revoltaram-se, o próprio Toledo, sempre brando, teve um assomo de energia. Onde iriam eles arranjar trezentos e cinqüenta mil réis, que em tanto importava o aluguel mensal do palacete?

E Ruy Vaz falou por todos:

— Tem paciência, Crebillon, deixa lá os porcos, vamos cuidar de coisas mais sérias. Tu não hás de querer que soframos aqui um vexame. O fim do mês está aí e, além das muitas vergonhas que curtimos calados, queres ainda que sejamos expulsos desta casa, onde nos meteste seduzindo-nos com promessas de tranqüilidade e fausto? Eu já sou vítima de comentários vis aí pelas vendas.

— Tu?!

— Eu, sim. João de Deus que o diga.

— Mas que comentários? Por que a casa não tem mobília?

— Em parte, ou antes — é essa a razão porque, se tivéssemos mobília, não traríamos as janelas sempre fechadas como as trazemos. Mas queres saber? Como o Toledo sai quase sempre de manhã e só torna à noite, como tu, e eu sou o único que sai às duas da tarde, afrontando os olhos da vizinhança, porque Anselmo espera sempre a Providência em casa, sabes que dizem mim? Que sou um marido terrivelmente ciumento, que saio deixando minha mulher trancada. E o interessante é que descrevem essa criatura vítima do meu desmarcado zelo: loura, de olhos azuis, pálida, muito infeliz e, quando desço, ouço vozes rancorosas: "Lá vai ele!... Olha o carrasco!..." Tudo por quê? Porque não temos mobília e trazemos a casa constantemente fechada. A fama que essa falta de trastes me vai grangeando não é das mais agradáveis e ainda queres que nos sujeitemos as injurias de um senhorio? Tem paciência... Deixa os porcos do mato em paz e, se não podes mobiliar a casa, dize francamente porque há mesmo trato de arranjar um quarto e transfiro-me. Aqui não podemos ficar, num casarão, grande como uma cidade, com duas cadeiras, várias antigüidades e três canecas de folha.

— Eu já disse que trago os móveis.

— Há um mês que nos prometes e, até hoje, só nos tens as três canecas citadas.

— Mas querem vocês que eu roube? Hei de roubar? — clamou desesperado. Se eu agora não tenho dinheiro, como querem traga mobílias?

— Mas, então, por que nos iludiste, Crebillon?

— Ora! Eu tinha algum dinheiro, mas como não dava para despesa, empreguei-o em bilhetes de loteria. Saíram brancos. Ando infeliz, que queres? Ando infeliz. Eu tinha vontade de fazer alguma coisa, mas a sorte foi-me adversa, aí tens.

— Ah! Querias arranjar móveis com a loteria?

— Então?

— Pois sim... E vais aos porcos?

— Vou. Não posso deixar Fontainha sozinho, com uma corda de caititus. Tu não sabes o que é uma corda de caititus.

— Não sei nem faço grande empenho em saber. Mas decidamos: onde queres que deixemos a chave da casa?

— Que casa?

— Desta.

— Pois vocês querem sair?

— Certamente. Amanhã mesmo.

— Por que?

— Porque o fim do mês está aí e nós não temos vintém.

— Mas eu tenho carta de fiança, homem de Deus.

— Embora, estamos decididos.

— Ah! Se estão decididos... Querem voltar para uma espelunca igual à da rua Formosa?

— Talvez, desde que nela possamos trabalhar.

— E não podem trabalhar aqui?

— Não.

— Que falta?

— Tudo.

— Tudo! Já sei... Decididamente vocês não nasceram para a ordem. Quem diz que em uma casa como esta não se pode trabalhar, meu amigo.

— Mas que temos nós aqui? Não podemos comer aqueles peixes, aquelas lebres e aquelas admiráveis frutas que estão, em pintura, na sala de jantar.

— Vocês não têm comida em casa porque não querem. Não têm o fogão? Não está aí o João de Deus?

— E o resto?

— Manda-se vir da venda.

— Quem paga?

— Arranja-se um caderno.

— Sim, arranja-se um caderno... E depois?

— Depois? Deus é grande!

— Ah! Deus é grande. Pois, meu caro Crebillon, apesar da imensidade de Deus e de todo o conforto desta casa, se vais aos porcos da Bocaina.

— Vou, não posso abandonar um amigo como Fontainha.

— Pois então, quando voltares, procura a chave da casa no teu charuteiro.

— Pois sim, disse o abolicionista imperturbavelmente E vocês para onde vão?

— Havemos de achar um quarto.

— Um quarto para todos?

— Para os que quiserem.

— Pois eu vou aos porcos, é uma questão de amizade. Por outro não iria, mas tratando-se do Fontainha não hesito.

— Então estamos combinados, fica no charuteiro a chave.

— Sim, no charuteiro. E não te esqueças de deixar o teu endereço, porque, enfim, não nos apartamos brigados.

— Não.

— Eu já esperava esse movimento. Vocês não podem viver sem as raparigas e como eu exigi moralidade...

— Sim, muita moralidade. Guerra à carne, a de vaca inclusive.

— Sim, sim, isso agora é a desculpa. Têm razão, são rapazes, é natural que amem.

— E que almocemos, pelo menos.

— Pois sim. Então no charuteiro?

— Sim, no charuteiro.

— Mas vocês hão de arrepender-se. Banheiro e fogão como os desta casa vocês não encontram nesta cidade.

— Quanto ao banheiro posso emitir o meu juízo: acho-o excelente. Sobre o fogão nada adianto: não lhe conheço os préstimos.

— Pois é uma peça sem rival.

— Pode ser, mas prefiro um simples fogareiro de espírito, desde que tenha na trempe uma frigideira a rechinar. Bem, adeus. Boa viagem.

— Obrigado. No charuteiro, hem?

— Sim, no charuteiro.

Tornando à sala, enfurecido, Ruy Vaz comunicou aos companheiros a resolução inabalável do presidente:

— Pois que vá aos porcos e ao diabo! — rugiu Anselmo, eu é que aqui não fico mais um dia.

— Nem eu! — disse o Toledo. Estou magro, tenho sofrido muito. Vou para a casa de meu primo. Ele tem insistido comigo para que ocupe um chalezinho do jardim. Tenho relutado, porque não gosto de dever favores, mas também com a vida que levo, dentro em pouco estou tísico. Não vale a pena.

— Pois. eu amanhã, bem cedo, vou ver o cômodo que há ao lado, na casa dos alemães, disse Anselmo.

— Há algum cômodo? — perguntou Ruy Vaz.

— A sala da frente e um quarto.

— Toma-se. E o preço?

— Não sei.

— Vamos mandar João de Deus indagar?

— Sim, vamos. Se servir-nos podemos fazer a mudança amanhã mesmo.

— Serve com certeza. João de Deus! Ó João de Deus!

João de Deus, que andava melancólico, sempre encolhido pelos cantos, a alisar o lombo do gato que era a única criatura que, naquele imenso palácio, vivia regaladamente, engordando, porque não lhe faltavam ratos, não em casa, dali haviam eles desertado, cansados de esperar que se enchesse a despensa, como dantes, nos dias prósperos do titular, mas na vizinhança, apareceu lento e mole e, sem anunciar-se, ficou à espera na porta, mudo e cabisbaixo, retorcendo o boné lustroso. Ruy Vaz ia de novo bradar por ele, quando o viu naquela atitude desconsolada de mártir, com os olhos no soalho.

— João, vai aqui ao lado e pergunta ao homem em que condições aluga os aposentos que tem.

O negro saiu silenciosamente e os rapazes, que a cólera alucinava, atiravam-se a Crebillon atribuindo-lhe todos aqueles dias de miséria negra e vazios, porque nem trabalhar podiam, com idéia de que teriam conforto e abastança, esperando, a todo o instante, a chegada dos móveis e dos víveres, sem que nada viesse, obrigando-os a trazerem a casa modestamente fechada para que os vizinhos não vissem a nudez vergonhosa dos salões, que já começavam a tressuar umidade.

Ruy Vaz, que não desestimava o presidente, conhecendo-o do Norte, defendeu-o, aceitando parte da responsabilidade:

— Eu devia prever tudo quanto se tem dado porque conheço Crebillon. É um sonhador, meus amigos: tem a alma de D. Quixote. No Norte a sua fama é grande, todos lhe conhecem a história, que tem lances heróicos, porque esse visionário possui um coração excelente. Foi rico, herdou terras pingues de cereal e pasto. Com elas recebeu escravos, mas não querendo desmentir a tradição de humanitário, que o seu procedimento anterior havia criado, porque, antes que aqui surgissem abolicionistas, já Crebillon andava em jangadas desviando negros para o Ceará e escrevia nos jornais contra os "senhores", que o tinham como demagogo e várias vezes assalariaram capangas, que ele teve de repelir a tiro e à faca, libertou todos os negros certo de que, depois de tão espontânea generosidade, eles não o abandonariam.

Enganou-se. Em menos de um mês, não tinha em casa uma crioula que lhe fizesse o jantar, sendo forçado a tomar camaradas para que as terras não fossem invadidas pelo mato daninho e os rebanhos não aberrassem à falta de pastor. Depois, com idéias de beneficiar as terras, vendeu todo o gado e comprou maquinismos complicados, que ficaram ganhando ferrugem ao tempo por não haver quem os montasse, porque o dinheiro era escasso.

Desesperado, então, vendeu o sítio com tudo que nele havia e, abotoando-se com o dinheiro, desceu à capital, onde fez correr o anúncio de um jornal tremendo, que seria redigido por ele e por outros parciais das suas idéias, jornal republicano, abolicionista, anticlerical e nativista, com o retumbante título de A Bomba.

Vinte números estouraram escandalosamente na capital. Uma noite, porém, sujeitos armados e mascarados, justamente quando as páginas desciam para o prelo, invadiram as oficinas afugentando os poucos homens que nelas havia e, derramando petróleo, lançaram fogo a tudo.

Na manhã seguinte, do escritório e oficinas de A Bomba, só havia cinzas e chumbo derretido; a mesma máquina estava desconjuntada e inútil. E Crebillon, quando chegou à sua tenda de trabalho, lançando os olhos pelas vigas carbonizadas, trepou ao balcão, que ainda fumegava e, heróico, sublime com a pêra relampejando, anunciou à multidão que A Bomba, como a Fênix da fábula, havia de renascer das cinzas. Efetivamente, três dias depois, explodia de novo o terrível jornal, saindo de um escritório, que o resistente planfletário guarnecera belicosamente como uma praça de guerra.

No artigo com que ressurgiu enumerou os apetrechos que armazenara. A lista enchia meia coluna larga e desentrelinhada, e continha de tudo, desde o montante pesado até o cartucho de dinamite; desde a lança até o cacetete e havia um pequeno canhão com que ele contava arrasar a cidade, se a farândola tornasse a ameaçá-lo no seu reduto.

— A polícia, que não podia permitir esse arsenal, porque o alarmando a população, ia provocando um êxodo, intimou-o a entregar as armas. Crebillon resistiu e a autoridade teve de invadir o escritório, onde apenas encontrou, fechado numa gaveta, um velho revólver e, resmungando a um canto, com o cachimbo nos beiços, um negro cambaio que era o virador do prelo. Crebillon sofreu um golpe rude quando soube que a polícia lhe havia vareajado a casa antes que ele houvesse transportado para o escritório as velhas armas que adquirira.

A notícia do encontro do revólver e do preto velho foi ironicamente comentada pela imprensa conservadora e pelo povo e Crebillon, sem a lenda, sentiu-se desanimado para prosseguir na sua campanha regeneradora. Reunindo, então, a fortuna começou a percorrer os sertões do Brasil.

Subiu o Amazonas, penetrando, com a sua carabina e seis índios do Madeira, selvas nunca trilhadas pelo homem civilizado e descendo, ora por mar, ora em ubás, pelos rios largos, chegou ao Rio de Janeiro de onde seguiu para o Sul, atravessando a região fria e desabrigada do minuano.

Lá teve amores e lutas, abalou com uma senhora que lhe anelava o cavanhaque e tocava Schubert em cítara e perdeu-a no Paraguai, de febre. Ainda conserva o retrato e um dente dessa criatura formosa que se chamava Diana. Desgostoso, pensou em fazer-se monge, mas a idéia de raspar o viçoso e flamejante cavanhaque, que ele chama a sua "estalagmite", fez com que, em tempo, recuasse do claustro e começou a negociar em tudo. Foi a sua última loucura porque, em pouco tempo, ficou reduzido, sendo obrigado a viver de escritas comerciais, com uma miserável retribuição que não lhe dava para ostentações, obrigando-o a andar retraído, equilibrando a despesa, sem amores, sem aventuras, sem carabinas, sem cães.

É um sonhador. Estou certo de que, se tivesse alguma coisa, não se limitaria a trazer o que inventariou no seu programa, mas muito mais. Infelizmente, porém, está esgotado, sem vintém. Passa fome conosco, mas sempre a arrotar grandezas.

Pensam vocês que esse Fontainha existe? Puro sonho. Nunca houve na Bocaina onça cotó nem porcos do mato, mas para que o havemos de vexar com o sarcasmo da nossa incredulidade? É o prazer do pobre homem contar aventuras terríveis: que matou, que esfolou, que fez e aconteceu... Conta com graça, que mal nos pode vir disso? Bem sei que nos transtornou a vida, mas não me revolto, lastimo-o. Mais do que nós vai ele sofrer. É um tropical influenciado vivamente pelo sol, homem de miragens, visionário — acompanharia D. Quixote de bom grado, suportando penúrias e tormentos com mais entono heróico do que o próprio cavaleiro andante.

É preciso aceitá-lo tal qual ele é. Eu, que o conheço, quero que vocês o tratem com acatamento. Agora, por exemplo, ele está como um enfermo, sofre porque começa a entrar no real, vê que não pode cumprir a sua palavra e espanta-se de a haver dado e intimamente está, talvez, perguntando a si mesmo: "Mas como fui eu prometer a estes rapazes mobília e manutenção se estou a tinir?" E sabem lá vocês o sofrimento que isto é? Nada ganhamos com mau humor. Temos de sair, saiamos em paz e alegres para que o pobre Crebillon não sofra.

— E não tenho queixa dele, disse o Toledo.

— Nem eu, ajuntou Anselmo.

— É um cerebrino, que culpa tem, coitado? Diz que vai amanhã aos porcos na Bocaina... Com certeza não tem no bolso um tostão para ir à cidade. Conheço-o... Acendeu um cigarro e, só então, deu pela demora de João de Deus. E João de Deus que não vem!

Da sombra partiu, muito lenta, a voz enfraquecida do negro.

— Estou aqui.

— O rapaz, andas misterioso. Então?

— O homem aluga por oitenta mil réis a sala da frente e um quarto grande.

— E as condições?

O negro baixou os olhos e balbuciou:

— Não tem, não, senhor.

— Dinheiro adiantado ou carta de fiança?

— Não perguntei não, senhor.

— Pois sim.

Anselmo, que não tirava os olhos do negro, vendo que ele palpava a testa e apertava-a, perguntou:

— Estás sentindo alguma coisa, João?

— Eu? Vou amanhã para a Santa Casa, resmungou, retirando-se lentamente, com a mão à fronte.

— Que diabo terá João de Deus?

— Ora! Que há de ser?