A Conquista/X
João de Deus, sempre gemendo, ia passando os trastes para casa de Gretchen e, ao meio dia, já estavam armadas, no quarto acanhado, as camas de Anselmo e de Ruy Vaz e as duas mesas, o divã e as cadeiras guarneciam a sala no meio da qual foi estendido o tapete com a cena lúbrica do serralho.
Toledo quis ver a instalação dos companheiros e achou-a confortável, sentindo, porém, não poder acompanhá-los, porque, como estava em vésperas de exame, ia, com o seu esqueleto, para a casa do primo, habitar o chalezinho que lhe fora oferecido com a comida, à sombra quieta do pomar.
Crebillon não aparecia. Teria ido, como dissera, dar cabo dos monadíssimos porcos que devastavam a roça de Fontainha? Eles não podiam ficar em conjecturas à porta do quarto do abolicionista — tinham de arranjar os novos aposentos e despediram-se da casa com a tristeza com que Boabdil abandonou Granada.
Adeus, salões incomensuráveis, largos e desafrontados como planícies! Adeus, vastíssimos e arejados quartos! Adeus, sala de jantar que faria as delícias de um voluptuoso Apício! Adeus, fogão monstruoso e flamejante; adeus, cachoeiroso banheiro, jardim redolente, adeus! O negro, fidelíssimo e resignado, no momento em que os dois rapazes despediram-se, pigarreou comovido.
— João, não te esqueças de nós; aparece de vez em quando porque no dia em que a sorte nos sorrir, tu, que tão dedicadamente nos acompanhaste nos tempos amargos da desventura, hás de participar do sorriso da fortuna. Por enquanto não podemos demonstrar generosamente a nossa gratidão, mas não vêm longe os dias prósperos: confia e espera.
João, de olhos baixos, ouviu sem palavra e, como os rapazes lhe estendessem as mãos, o pobre negro ficou tão lisonjeado que, apesar da enxaqueca e da fome, sorriu desvanecido.
— Adeus, Toledo.
— Adeus, Anselmo. Adeus, Ruy.
— Aparece.
— Sim, hei de aparecer. E abraçaram-se.
— Ficas à espera de Crebillon?
— Não, mudo-me amanhã. João de Deus toma conta da casa.
— Eu? — exclamou o negro aterrado. E se o dono vier?
— Não há perigo, João.
— Não, nhonhô, eu tenho muito medo de negócios com a polícia. Para acompanhar vosmecês, estou pronto, mas para ficar aqui sozinho, isso não.
— Quem sabe se tens medo de almas do outro mundo?
— Eu! Não, senhor: tenho medo da polícia. Sozinho, não senhor. Com vosmecês tudo está direito, mas comigo, um pobre preto velho... O homem chega aí, bate língua e me atira no cosmorama. Deus me livre! Sozinho, não!
— Então com quem há de ficar a chave?
— Fica na venda.
— Isso não.
Para pôr termo à discussão Toledo resolveu demorar mais dois dias na casa à espera de Crebillon e, depois de novos abraços, trazidos até à porta da rua pelo anatomista, pelo negro e pelo gato, os dois partiram saudosamente para a casa contígua.
Arranjando as estantes Ruy Vaz começou a fazer considerações literárias.
— Vê tu, se um de nós fizesse aparecer num romance esse misterioso João de Deus, a crítica havia de bradar contra a inverosimilhança, porque, deixa lá! Esse negro é fantástico.
— Está ali um famoso idiota ou um santo.
— Um santo, Anselmo, um virtuosíssimo santo.
— Receberá ele os sessenta mil réis do ajuste?
— Sessenta mil réis! Crebillon não daria isso por toda a costa da África.
— Pobre João de Deus!
— Paupérrimo!
Bateram à porta do corredor. Anselmo foi abrir: era Carlota com uma salva na qual fumegavam cheirosamente duas xícaras de café. Anselmo sentiu violenta pancada no coração como se houvesse estourado um dos vasos vitais e, trêmulo, muito agradecido, tomou a bandeja das mãos delicadas de Carlota; ela, porém, para poupar-lhe o trabalho, relutou e, entrando, consentiu apenas que ele retirasse a xícara que lhe cabia indo, ela mesma, oferecer a outra a Ruy Vaz.
O romancista, que estava de cócoras arranjando os últimos raios da estante, ergueu-se alvoroçado, e, chuchurreando o café, que estava delicioso de gosto e de aroma, dirigia amabilidades a alemã, confessando que começava a achar encantador o aposento e propício ao trabalho com aquele silêncio imperturbável da rua e da casa.
— Os senhores são estudantes?
— Não, senhora: jornalistas. Dizemos jornalistas porque no Brasil o nosso mister não tem ainda classificação. Somos forçados a tomar de empréstimo à imprensa um título de apresentação. Em verdade nada temos de jornalistas: fazemos romances e contos e lá de vez em quando um folhetim.
— Ah! Fazem romances?
— Sim, senhora.
Carlota lançou a Ruy Vaz um olhar cheio de incredulidade.
— Como são os seus romances?
— Naturalistas.
— Ah! E o senhor também? empertigou-se:
— Não, senhora; eu sou romântico.
— Ah! Romântico... Aqui os senhores podem fazer muitos romances.
— Pois não.
— Bem, até logo.
— Até logo, miss.
Carlota tomou a bandeja com as duas xícaras escorropichadas e foi-se graciosamente, deixando um leve perfume na sala e no corredor.
— É amável, hem?
— Amável! Pois sim. Pois não percebeste que essa gentileza foi um pretexto!
— Pretexto... para quê?
— Para ela fazer o inventário dos nossos haveres, que são a fiança dos oitenta mil réis mensais. Pensas, talvez, que a pequena quer começar o flirt com um de nós? Estás enganado — o que ela quer é garantir-se. Enquanto falava, os seus lindos olhos azuis; mais avaros do que dois judeus, iam examinando minuciosamente os móveis, os livros, os quadros e tudo mais que aqui há e pesando, como conchas de balança, o valor de cada objeto. Ah! Meu amigo, essas criaturinhas românticas não têm alma de Jéssica, têm a usura de Shylock. Onde pensavas que existia amabilidade, só havia ronha e muita! Naquele peito farto não há coração: há uma bolsa. Garanto-te que essa suavíssima Carlota saiu daqui sabendo, melhor do que nós, o que há nesta sala e naquele quarto. Não te fies em olhos azuis nem em vozes que lembram citaras — essas criaturinhas são feitas de ganância e de hipocrisia. Sob essa aparência mística de anjos rafaelinos, há almas asquerosas e repugnantes como as figuras de Goya.
— E tu que és pessimista!
— Enganas-te: adoro a vida e agradeço-a a quem ma deu. Nunca me ouviste blasfemar, nunca me ouviste pedir a morte desesperado e enfarado do mundo — acho a criação maravilhosa, mas, meu caro, mestre Epicuro entendendo que o prazer é a base de todo o bem, não desconheceu a dor, não suprimiu as perfídias nem negou a existência do mal. A grande ciência do viver está justamente em saber a gente joeirar o seu trigo e escolher os frutos que deve saborear, para que lhe não suceda achar veneno onde só queria encontrar o sabor delicioso.
A rosa é uma maravilha de composição, é a forma, é a cor, é o aroma, mas se a colheres estabanadamente, podes espetar-te nos espinhos que a defendem; sábio é o que a obtém sem mágoa. Eu não falo mal de Gretchen, mostro apenas que ela tem espinhos, porque tenho grande prática da vida... e conheço as rosas. Hás de ver. Estás enamorado, quem te leva é o coração. És como um cego que vai guiado por um infante; hás de sentir a pancada quando ele levar-te pelos labirintos estreitos. Pensas, com certeza, que ela está, como a sunamita, a enlanguescer de amor...? Pois sim. Mete dinheiro na bolsa para o fim do mês. Mete dinheiro na bolsa.
Anselmo amuou. Não podia acreditar que criatura tão formosa e delicada fosse capaz de representar o indigno papel de arroladora de móveis. Via-a meiga, amável, carinhosa, mas, infelizmente, não durou muito a ilusão.
Dois dias depois de se haverem instalado, à tarde, puseram-se os dois a discutir o entrecho de uma revista de ano, porque Ruy Vaz entendia que era inútil trabalharem numa peça emocional, como queria Anselmo, um drama forte no qual jogassem paixões e aparecessem, sobre um fundo da vida social, caracteres minuciosamente estudados.
— Meu amigo, façamos uma revista. Não temos empresário nem público para a Arte. Onde entendes que deve entrar, com sutileza, o escalpelo da análise, metamos um ruidoso adufe; em vez do diálogo brilhante, demos um rondó brejeiro; em vez do lance dramático arranjemos um jongo, e teremos aplausos e o principal. O nosso teatro não é o que pensas. Leste nos críticos teatro é uma escola de Arte e de moral... isso não diz conosco. A barraca de Nicolo Musso, de que fala Hoffmann, onde representou Salvador Rosa, valia mais do que qualquer dos nossos teatros, que não são outra coisa mais do que casas bufas e de erotismo disfarçadas sob lantejoulas.
Quais são os nossos primeiros atores? São os que mais impressionam pela dicção, pelo gesto adequado e comedido, pela sobriedade da expressão, pela naturalidade? Não, são os mais palhaços, os mais grotescos. Tal, é grande porque deforma o rosto em máscara de sânie; aquele outro faz delirar a platéia com uma frase decomposta, com um gesto indecoroso ou com um meneio impudico. Colaboram com os autores, os libretos são apenas indicações, a obra teatral é feita no palco. O escritor dá o esqueleto sobre o qual os atores atiram a imundície a que chamam "graça" e, com razão, porque o povo ri. As nossas primeiras damas, quais são elas? São as que melhor interpretam? Não, são as mais bem feitas e as que se desnudam com mais impudor. Quando ouvires dizer, tu que ainda não conheces os segredos e a gíria dos bastidores: "Fulana é a artista de mais talento dos teatros", convence-te de que a citada estrela é a mulher de pernas mais grossas e não faz questão de as mostrar ao público lascivo. As ovações delirantes são feitas à nudez, as flores que juncam os palcos vão com direção aos leitos. E as artistas conhecem tão bem o seu público que não dão um passo em cena que não seja requebrado e garantem as peças com saracoteios. Quando anunciarem a queda de uma dessas moxinifadas, que dão aos seus autores o título de "laureados", podes dizer, com certeza, que os interpretes estavam reumáticos e por isso não puderam desconjuntar-se.
O teatro nacional assenta sobre as cadeiras das mulheres. A nossa arte é uma saturnal com fogos de bengala e jongo. O jongo é tudo. Estamos como os de Israel em Faran — desanimados e desprovidos. Deixemos a Arte, que é a deusa única e verdadeira, e adoremos o bezerro de ouro que é uma infâmia. Sejamos romanos em Roma. Vamos escrever uma revista.
Assim falava Ruy Vaz quando bateram à porta. Era Crebillon, ia despedir-se. Entrou um momento sem tirar o chapéu, lançou um olhar aos tristes aposentos e exprobrou:
— Deixarem um palácio por este tugúrio... Francamente?.
— Mas aqui temos paz.
— E lá também teriam se houvesse ordem.
— E louça...
O abolicionista falou da sua caçada e, despedindo-se, ofereceu a casa em que se havia aboletado — na rua da Assembléia, por cima de um armazém de víveres. Vivenda principesca.
Correram serenos os primeiros dias. Anselmo abrasava-se em amor pela meiga e loura Gretchen, que enchia a casa com a sua voz cristalina, quando, uma manhã, Ruy Vaz, que se havia levantado muito cedo para corrigir as provas de um romance, que vendera ao Garnier, vendo que ele não aparecia, chamou-o da sala anunciando-lhe o sol. O estudante não respondeu. O romancista, impressionado, foi ao quarto. Anselmo, muito encolhido, voltado para a parede, ardia em febre.
— Tu estás com febre, homem.
— Sinto-me muito mal; dói-me todo o corpo, não posso mover este braço.
— Mas que é?
— Linfatite.
— Como diabo foste arranjar isso?
— Sei lá. Não conheces por aí algum médico?
— Conheço. Queres?
— Sim.
— Vou ver se encontro o Teixeira.
O estudante tiritava e encolhia-se, enquanto o romancista preparava-se para ir ao banho.
— Queres que diga lá dentro que estás doente?
— Sim; é bom; pode acontecer-me alguma coisa.
— Qual! Isso passa com uma xaropada qualquer.
— Não é tão fácil assim. Já estive entre a vida e a morte com um acesso destes. É coisa séria e dói como o diabo!
— Pois eu falo à Gretchen, à tua Gretchen.
— Sim.
E o romancista, tomando a saboneteira, atirou a toalha ao ombro e seguiu para o banheiro.
Logo que o romancista saiu, Anselmo que, nesse tempo, andava extasiadamente pelas sagas, todo enlevado no amor ideal de Carlota, pôs-se a compor um poema como o de Tristão. E, para que nada lhe perturbasse o doce sonho, nem a visão, nem o ruído, voltou-se para a parede fugindo ao real para isolar-se no imaginário. Estava ali como o valente guerreiro depois da luta tremenda com Morolt. A dor que sentia não era a de um abcesso que se ia formando, senão a de uma ferida ganha no estupendo duelo em que se empenhara com o monstro, mas, dentro em pouco, ela surgiria com o bálsamo paregórico, ela, a divina Isolda, Isolda cuja voz abrandava a cólera das vagas, Isolda que fizera, com temeridade, com que ele aparelhasse uma nau e saísse ao mar afrontando tormentas e a desigual peleja com o gigante que era o terror e o flagelo da Irlanda.
Era tão suave aquele idílio espiritual que operava como um sedativo. As dores iam cedendo e ele sentia um bem estar geral de corpo e de alma enquanto devaneava, fugindo à realidade. Mas o romancista reapareceu, esfregando a cabeça desesperadamente:
— Estás melhor?
— Ora! Pensas então que isto vai assim? Olha o cordão linfático; voltou-se e, arregaçando a manga da camisa, mostrou o braço nu, empolado e rubro.
— Ó diabo! — exclamou Ruy Vaz. Isso até parece aneurisma. E deu-se mais pressa em vestir-se, impressionado com o que vira.
— Falaste lá dentro?
— A pequena saiu com o pai. Está lá a velha, a Babel, confundindo línguas e cerzindo meias. Não falei, porque estou certo de que pioravas se aquela nixe viesse fazer-te companhia. Bem, agora fica tranqüilo um instante enquanto vou, num pulo, À Rua da Glória ver o Teixeira. Acendeu um cigarro e, da porta quarto, perguntou à meia voz: Tens dinheiro?
— Nada... E tu?
— Ora! Isso é que é o diabo. Tu não podes ficar sem remédios e inanido. Como há de ser? Também para perder o dia na cidade à caça de uns cinco ou seis mil réis magros e tu aqui abandonado não me parece razoável.
— Olha, leva o meu Musset ao Cunha.
— Quanto pode dar o Musset?
— Não sei. Se queres leva também Os Miseráveis.
— Acho melhor. E que queres da cidade?
— Cigarros.
— Não, para o estômago.
— Sei lá! Não tenho apetite. Traze café.
— Bem, mas o essencial é o médico. Até já.
Ruy Vaz foi à estante de Anselmo, tomou os dois poetas, fez um embrulho e partiu.
Só, o enfermo tornou ao sonho, mas não com a mesma tranqüilidade nem com o mesmo gozo, porque outra visão surgia, por vezes, fazendo desaparecer a meiga Isolda: era o casal unido dos velhinhos: ele morto, ela longe!... Ah! Se eles o vissem naquela extremidade, em tamanho abandono, sem ter à cabeceira uma pessoa amiga que dele cuidasse, que lhe refizesse o leito, que lhe chegasse aos lábios escaldados o copo de água fresca, que pensasse na hora dos remédios, que lhe preparasse a dieta! Entanto a mãe, sempre que praticava a caridade, dizia: "Deixem-me dar aos que precisam... Tenho um filho, não sei que há de ser dele neste mundo... Assim, se ele, algum dia, tiver fome ou frio, Deus há de deparar-lhe alguém que lhe faça o mesmo que agora faço"... E ele ali estava sozinho, talvez perto da morte, sem uma pessoa que lhe pusesse na mão a vela que ilumina a sombra derradeira, sem uma pessoa que lhe ouvisse a última palavra, só, numa casa estranha, entre gente estranha.
E julgava-se vítima da injustiça dos homens. Sentia que não era um nulo, tinha grande confiança no seu espírito e como que pasmava de que o não julgassem como merecia. As idéias fervilhavam-lhe no cérebro. Ali mesmo, sob aquela formidável pressão moral, moral, sentia-se como um gênio e via as suas "criações" desfilarem aereamente, vindo de todos os lados, baixando do teto, surgindo dos cantos, saltando das paredes e ouvia um sussurro de vozes à distância, mas tudo se desfazia, sumia-se. Tornava ao real, com a sensação de alívio de quem atravessa um túnel e, depois da asfixia subterrânea, ganha, de novo, o pleno ar, a luz dos campos.
Voltou-se no leito doridamente. Um relógio soou. Que horas seriam? A sede começava a abrasá-lo. Passando a língua pelos lábios sentiu-os secos, gretados. Ergueu-se com sacrifício, o braço encolhido, encheu o copo e bebeu avidamente, conservando-se um de pé, defronte do espelho, a mirar-se.
Achou-se desfigurado, muito pálido, os olhos cavados, o cabelo crescido e hirsuto; apalpou as pomas das faces passou a mão pela fronte derreando o cabelo e, lentamente, tornou ao leito, mas uma sinistra idéia no espírito.
Estirando-se, passou e repassou a mão pelos ossos das pernas, moveu a rótula, abarcou as coxas, tomou entre dois dedos o ápice dos ilíacos, depois, de uma a uma, as costelas, tocou os ossos da face e das têmporas, circulou as órbitas afundando o indicador, por fim pôs-se a arrepelar o couro cabeludo como se quisesse sentir todo o esqueleto.
Era a morte — ela ali estava, debaixo daquela camada de carne que mal a encobria. Teve medo, sentou-se no leito lançando olhares vagos, procurando ouvir rumores, num grande e ansioso desejo de viver. E como que lhe ia faltando o ar, o ambiente refazia-se. Ergueu-se, atafulhou os pés nas chinelas e saiu para a sala.
A luz reanimou-o, respirou largamente, livremente e lançou os olhos às estantes procurando um livro, mas bateram à porta. O coração teve um sobressalto, e, comovido, ergueu-se da cadeira onde se havia deixado cair e, pé ante pé, sutilmente, encaminhou-se para o parto; deitou-se e cobriu-se. Bateram de novo, falou então:
— Entre.
Era Carlota. Não o vendo na sala, a menina deteve-se perguntando: Se podia entrar.
— Entre, miss. Estou de cama.
— Está doente?! — exclamou ela penalizada.
— Bem doente.
— Que tem?
— Não sei Meu companheiro foi chamar um médico. Entre.
— Ela atreveu-se, vagarosamente, como em receio: vendo-o, porém, deitado, acreditou avançando então até o leito impressionada. Estava mais linda que nunca. Os cabelos brilhavam-lhe como se neles houvesse um pouco do sol que andava lá fora dourando as árvores; os olhos pareciam mais azuis, os lábios tinham mais cor e evolava-se-lhe um tal perfume do corpo que, mesmo à distância como ficara, lá chegava ao enfermo beneficamente o delicioso aroma. Olharam-se algum tempo. Ele esteve para falar-lhe do seu amor, propondo desposá-la, mas o ar sereno, frio, indiferente da jovem desconcertou-o.
— Tem febre?
— Muita, miss.
— Mas o médico vem, não é?
— Vem. Meu companheiro foi buscá-lo.
— Então... sorriu e disse, com um leve acento: Não há perigo. Se o senhor fosse estrangeiro, isso sim! Mas brasileiro, não há perigo. Com licença.
— Pois não, miss.
Saiu para a sala. Anselmo ouvia desvanecidamente o roçar leve da vassoura e o farfalho dos papéis varridos, depois as cadeiras arrastadas e as surdas pancadas do espanador nos móveis, até que ela apareceu de novo à porta do quarto:
— Dá licença?
— Pois não.
Tomou a bacia, despejou-a no balde, segurou-o pela alça e, com o jarro na outra mão, saiu em passos leves. Outra vez só, ele empenhou-se em uma luta íntima dialogando com um outro eu prudente e covarde que lhe abrandava e arrefecia os estos passionais.
"Ora! Que tem? Falo, digo-lhe a verdade: não pode zangar-se. Que mal há nisso? Se fosse uma proposta infame, mas... dizer-lhe que a amo muito e muito, consultá-la antes de pedi-la ao pai?" "E se ela revoltar-se?" "Revoltar-se por quê?" "Mas admitamos que se revolte..." "Não há razão para isso..." "Ora, não há razão... Não é em um quarto de um leito, que um homem faz propostas de casamento a uma menina... "Mas se eu estou doente..." "Espere. Não é decente. Não é correto..." "Correto... pois falo...! Que pode acontecer? Se ela tomar a mal e queixar-se ao pai, digo tudo, caso e está acabado..." "Pois sim..." "Pois sim mesmo..."
Mas o balde tilintou no corredor.
— Dá licença?
— Pois não, miss.
E Carlota entrou, pôs em ordem o lavatório, substituiu a toalha e, enquanto, de costas, fazia, às pressas, a cama de Ruy Vaz, Anselmo, com os olhos nas tranças louras, dialogava com o outro eu tímido e vitorioso:
"Então? Por que não lhe falas agora? Fala!..." "Falo mesmo..." Mas não ousou sair do silêncio e foi Carlota quem o quebrou:
— E o senhor não come?
— Não sei ainda, miss; se o médico permitir..
— Pois sim. Nós podemos arranjar alguma coisa, não será bem feita, mas como o senhor não pode sair...
— Muito obrigado.
A campainha tiniu e soaram passos fortes no corredor da entrada.
— Parece que está aí o seu companheiro com o doutor. Bem, então, se precisar alguma coisa..
— Sim, miss.
— Até logo... Estimo as suas melhoras.
— Miss... sussurrou o enfermo, mas era tarde. Ruy Vaz bradava do corredor:
— Então! Como vamos? Oh! Miss...
— Diabo! Justamente quando eu ia dizer-lhe tudo!
O Teixeira, médico e filósofo, era um belo homem, moreno e atarracado, de espessos bigodes negros, olhos vivos, gestos largos. Entrou descerimoniosamente, pisando forte e Anselmo, que mal o conhecia, sentou-se para recebê-lo.
— À vontade. Então que há?
Ruy Vaz apareceu com uma cadeira, mas o médico já se havia sentado à beira da cama, enquanto Anselmo arregaçava lentamente a manga para mostrar-lhe o braço. Ele curvou-se e examinou com cuidado, tocando o cordão que cedia molemente ao tato.
— Dói?
— Muito, doutor!
— É a primeira vez que tem isto?
— Não senhor; tive em criança, mas não assim com esta violência.
— Neste mesmo braço?
— Sim senhor.
— Teve febre?
— Tive.
Tomou o pulso e ficou um instante atento; depois, voltando-se para Ruy Vaz, que se conservava de pé junto ao leito:
— Tem ainda alguma, mas pouca. Isto não tem valor. Vou fazer uma receita. Levantou-se e, enquanto lavava as mãos, perguntou: Também é poeta?
— Não, senhor: estudo Direito.
— Qual estuda! — contrariou Ruy Vaz. Abandonou a academia no terceiro ano para fazer literatura. É mais um para a fome.
O médico meneou com a cabeça e esticou o beiço desanimadamente:
— Ah! Meu amigo, a literatura, entre nós, não dá para o charuto. O nosso povo não lê por indiferença e por indolência, nem tem ainda o espírito preparado para compreender a obra da Arte. O que ele quer, por enquanto, é o maravilhoso: está ainda no período infantil do deslumbramento. Quais são os romances preferidos? São os de complicado enredo, os magnificentes, os emaranhados que não passam de ampliações de contos de fadas para crianças grandes. Não há ainda o critério estético; não sei se posso dizer assim. O leitor não se preocupa com a substância nem com a forma; a inverossimilhança é o seu ideal, quanto mais irreal melhor. Dê o senhor a um homem um bom estudo de caracteres e uma fábula bem lantejoulada que ele não hesitará um momento. Se os senhores quisessem tentar o gênero Ponson, isso sim... mas psicologias... hum! Voltou-se para Ruy Vaz, caramunhando: Agora, eu te digo: também não vou muito com as tais psicologias. A ciência tem o seu lugar no real; o romance faz-se de sonhos e, até para o equilíbrio intelectual, acha necessária a discriminação — a cada um o que lhe cabe: ao sábio, a investigação; ao poeta, a fantasia. Cada macaco no seu galho. Eu, por exemplo, depois de um livro científico gosto de repousar em uma página de Dumas ou de Mery, como depois de umas horas de trabalho no meu gabinete, sinto-me bem no meu jardim, olhando as flores, ao fresco da tarde. É um alívio. Não posso com as tais psicologias, são quase sempre falsas — os autores não estudam caracteres, fazem-nos para as situações que imaginam. Há coisas absurdas... Por exemplo... Ia demonstrar a existência das "coisas absurdas", mas Ruy Vaz puxou-o pela manga do casaco:
— Não; tem paciência: vem receitar primeiro. Quando começas com a literatura, não te lembras de mais nada. Ainda, que o rapaz está aí que não pode.
— Espera, homem; pediu o médico pachorrentamente.
— Não, temos muito tempo, receita primeiro.
— Não há pressa; já estou melhor, disse Anselmo.
— Isso não é nada. Levantou-se, deu um puxão ao colete e, coçando o pescoço, com a cabeça derreada, repetiu: Pois é isto: no Brasil ninguém Vive de letras, isto é um país sem tradição, sem fastos. Quer saber? O Brasil começou escravo, ganhou a liberdade e fez-se traficante e comboieiro, depois atirou-se a um balcão de negócio, não teve tempo de aprender a ler: é um analfabeto milionário. É possível que os netos venham a interessar-se pelas coisas intelectuais, mas por enquanto, meu amigo, só há uma preocupação — o café. Qual é o homem de letras que, entre nós, vive exclusivamente da pena? Qual é? Nenhum...
— Mas vem receitar, homem! — insistiu Ruy Vaz.
— Já vou. Nenhum... E não é por falta de talento, aqui há tanto talento como em França, ou mais! Confirmou atirando um gesto violento: Ou mais! O senhor vê por aí rapazolas, sem exame de português, fazendo versos que espantam. Meu sobrinho, o Alceu... tu conheces, Ruy... é um menino! Tem quatorze anos... pois escreve poesias que admiram. Aquela que ele publicou, a propósito do 28 de Setembro. Cravou os olhos em Ruy Vaz. Não te recordas...?
— Sim, sim...
Não satisfeito com a afirmação do romancista, o médico, unindo o polegar e o índex, numa voz melíflua, pôs-se a recitar pausadamente, balançando o corpo, fazendo sentir as rimas:
Salve! emérito visconde Que hoje nos meus versos lembro, Pai dessa lei de Setembro Que os ventres santificou, Salve! herói...
E por aí vai. Não te lembras? Vai agora fazer exame de português. É o que eu digo: no Brasil há talento de sobra... Encaminhou-se para o lavatório e pôs-se a remexer como se procurasse alguma coisa.
— Que queres?
— Vocês não têm por aí uma tesourinha de unhas?
— Tem cá fora.
— Pois é como eu digo. Forme-se, o senhor está no terceiro ano, pouco falta; forme-se, tire o seu diploma e depois, nas horas vagas, escreva o seu soneto, a sua quadra, mas ouça a palavra de um experimentado: não queira viver de literatura: o verso não paga a casa nem corre no armazém. Olhe o Alceu... Eu acho que ele tem talento, mas estou sempre a dizer ao pai: "Acaba com essa mania do pequeno enquanto é tempo, antes que se torne um vício, porque depois, meu amigo..." Mas não, acham graça... Dá em poeta e hão de ver o bonito. Vamos lá à receita.
— Ora graças a Deus! — exclamou Ruy Vaz.
— Homem, deixa-me prosar um bocado, também não é só Medicina. Isto não é nada. Amanhã está pronto. Vem uma pomada e uma poção para tomar aos cálices. Amanhã ou depois está pronto.
— E se eu piorar, doutor?
— Qual piorar! Isto não é nada. Em todo o caso, amanhã dou um pulo aqui... e trago-lhe os versos do Alceu, quero a sua opinião. O pequeno tem jeito, vai ver. Versos no gênero dos de Castro Alves, sabe? E recitou soturnamente:
É a hora das epopéias, Das ilíadas reais...
Conhece? Pois amanhã trago-lhe os versos. Mas nada disso, nada disso: forme-se primeiro, tire a sua carta e depois publique quantas poesias quiser. Antes disso, nada. Noutro tom: É bom conservar-se na cama, ouviu...? Coma pouco e tenha o braço em repouso. Vou fazer a receita. Consultou o relógio: O diabo! Que é do papel?
— Cá fora.
— Tenho de ir ainda a Laranjeiras. Saiu para a sala e, pouco depois, tornou com o chapéu e o guarda-chuva: Até amanhã; eu passo aqui. Tem ainda febre, mas pouca... Vêm também umas cápsulas de quinino. Isto não é nada. Pode tomar o seu leite, pode comer o seu bifezinho com batatas e... forme-se, aceite o meu conselho, depois de formado, então, faça o que lhe der na cabeça. Até amanhã. Se houver alguma novidade mande-me um recado à casa.
— Obrigado, Teixeira! — disse Ruy Vaz acompanhando-o.
— Ora, obrigado... Quando sai o teu livro?
— Não sei ainda.
— Tu é que vais vivendo, hem?
— Pois não.
— Adeus! Vou ainda a Laranjeiras. Até amanhã.
— Até amanhã.
— Que homem gárrulo! — exclamou Anselmo vendo Ruy Vaz aparecer com a receita.
— É extraordinário! Esse Teixeira é tudo: filósofo, músico, político, poeta... O tal menino Alceu de que ele falou, que é um tipo acabado de cretino, é o seu testa de ferro. Quando o Teixeira quer impingir alguma das suas composições, apela para o pequeno. Eu conheço-o! Durante a minha moléstia ouvi todo um drama do menino Alceu. É um caso!
Oito dias depois Anselmo estava restabelecido, mas não pôde gozar a delícia da convalescença, porque o alemão rosnava pelo corredor, achando longa a demora do pagamento. Carlota, carrancuda, fazia a limpeza dos aposentos sem pronunciar palavra Estavam, de novo, sitiados. Uma manhã, muito cedo, Ruy Vaz levantou-se e começou a vestir-se apressadamente.
— Onde vais tão cedo, homem?
— Vou tomar banho. Estamos aqui, como Paris em 70: sitiados pela Alemanha. Sempre que vou ao banheiro o alemão agarra-me e pede-me, numa língua medonha, o mês da casa, porque estamos quase com o segundo vencido. Não estou para isso. Vou tomar o meu banho por ai, descansadamente, num banheiro magnífico.
— Onde?
— Por aí. Que diabo! O que não falta são casas vazias.
— Sim... E depois?!
— Como depois? Pois não percebes?! Levo daqui a toalha, o sabonete e o pente, peço a chave para ver a casa, tranco-me, corro ao banheiro, regalo-me, torno à venda, entrego a chave, tomo informações sobre o senhorio e aí está. Queres vir?
— Vou. Também não tenho coragem de falar ao alemão e coro diante de Carlota. Saíram.
A vida, porém, tornava-se cada vez mais apertada e difícil. Para não encontrarem o alemão, entravam tarde, pé ante pé, e saíam cedo. Ruy Vaz, por fim, extenuado, instalou-se no palacete do visconde de Montenegro, retirando, a pouco e pouco, os livros, os quadros flamengos, A Barricada e outros pequenos objetos. Anselmo, só, ia curtindo a fome.
Uma noite, muito enfraquecido, pôs-se a procurar nas estantes desfalcadas alguns livros que lhe pudessem dar qualquer coisa: só restavam romances e alguns poetas ingleses. Lembrou-se, então, da caixa de música... Se a empenhasse? Estava perfeita, podia dar dinheiro — tomou-lhe o peso, era grande, mas como tinha um níquel, podia levá-la no bonde até à rua Gonçalves Dias e dali, nos braços, à casa de penhores. Decidiu-se e, não ouvindo rumor na casa, estando a família à mesa, saiu, pé ante pé, com o precioso fardo e, alcançando a rua, apressou o passo receoso de que o vissem.
Na cidade correu imediatamente à travessa de S. Francisco, embarafustou por um dos compartimentos e, repousando a caixa de música, propôs o penhor por três meses. O homem, muito sisudo, fez um momo rosnando: Que aquilo não valia a pena.
— Está perfeita?
— Pois não.
Ele pôs-se a examinar, deu corda. As molas perras rangeram, mas o cilindro girou e a ária da Jolie parfumeuse tilintou alegremente naquele canto mal alumiado. No cubículo contíguo uma velha resmungava.
Anselmo teve uma grande emoção ouvindo aquela ária alegre que lhe recordava os doces tempos da vida tranqüila, no seio da família. As noites calmas, quando o velho pai, estirado no canapé, enquanto a mamãe cosia à luz do lampião de querosene e o gato resbunava pela sala, mandava vir a caixa de música e adormecia ouvindo as peças que se sucediam vivamente: Les Porcheron... Ainda... Ó doce tempo!
O homem teve de perguntar duas vezes:
— Quanto quer?
O estudante, com os olhos úmidos, andava pelo passado, revendo a ventura para o sempre perdida.
— Quanto quer?
— Veja quanto me pode dar.
— Eu não costumo receber estas coisas... Enfim: vinte e cinco mil réis, serve?
Ele sentiu um sobressalto, mas emendou:
— Trinta.
— Não; mesmo ela precisa de uma limpeza em regra. Vinte e cinco.
— Vá lá...
O homem encheu a cautela entregando-a a Anselmo com o dinheiro depois de lhe haver apresentado à assinatura um livro.
Saindo para a noite alegre, fresca e estrelada, procurou imediatamente um hotel e repastou-se, suando copiosamente, seguindo para o teatro saciado e feliz. Representava-se a mesma mágica em que Amélia aparecia, de fada. Foi vê-la à caixa e houve um longo idílio — ela muito queixosa, ele inventando explicações. Vendo o Heller pediu notícia de A Profecia. O empresário nem se lembrava da peça que tinha tal título e foi necessário insistir para que ele exclamasse:
— Ah! Sim. Há de ir... há de ir...
— A peça tem elementos, senhor Heller.
— Pois não: há de agradar, com uma boa música. Mas, de cabeça erguida, pôs-se a bradar: Olhem essas bambolinas!
Saindo, encontrou o Pedroso, seu antigo condiscípulo. Houve uma cena efusiva. O Pedroso arrastou-o para uma mesa, mandou vir cerveja e, bebendo, falaram dos destinos que haviam seguido. O Pedroso era professor, lecionava Português, Aritmética e Geografia. Estava em Catumbi com o irmão e um companheiro. Vivia bem, era feliz. Anselmo explicou os seus infortúnios e o outro, muito franco, ofereceu-lhe a casa, podia ficar com ele até achar colocação — era uma boemia, mas vivia-se. Anselmo encolheu os ombros. Ao fim do espetáculo, despedindo-se de Pedroso, foi para a Maison Moderne esperar Amélia. A atriz apareceu e Anselmo foi-lhe ao encontro.
— Vem cear comigo.
— Não posso.
— Por quê?
— Se me tivesses falado mais cedo...
— Com quem estás?
— Com uma besta que me persegue há mais de um mês. Queres amanhã?
— Não.
— Então quando?
— Nunca mais! Boa noite.
— Estás zangado?
Ele não respondeu — seguiu muito firme, indignado com o procedimento daquela mulher que fora, a bem dizer, a causa da sua infelicidade. No corredor, ouviu a voz roufenha do Neiva e as gargalhadas do Lins que ceavam no jardim, ao ar livre. Retrocedeu, não estava disposto para a troça, sentia-se acabrunhado, queria o isolamento, o silêncio, a noite larga e muda. Saiu. Soprava uma viração suavíssima, mas era grande o tumulto de gente e de veículos. Luziam lanternas, um grande borborinho atroava a praça, as luzes dos botequins e das brasseries assoalhavam as calçadas.
Um homem passou por ele cantando; longe trilavam apitos e, à porta do Coblenz, um rapazola embriagado, com o chapéu à nuca, a bengala erguida ameaçadoramente, cambaleava.
Anselmo sentia-se fatigado, mas não tinha ânimo de recolher-se à casa, lembrando-se do alemão. Que lhe havia de dizer de manhã quando ele lhe batesse à porta do quarto? E Carlota?
No largo de S. Francisco ouviu o relógio da torre bater uma hora. Deteve-se indeciso. Por fim, resoluto, encaminhou-se para o Ravot. Dormiria no hotel e, de manhã, escreveria ao alemão "deixando-lhe os móveis em pagamento, pedindo apenas que lhe mandasse, pelo portador, os livros e a mala de roupa".
Subindo a escada do hotel lembrou-se do oferecimento do Pedroso. Iria morar com ele até arranjar alguma coisa... O criado levou-o por um longo corredor escuro. Num quarto aberto uma mulher, em camisa, estirada na cama, com uma perna nua pendente, fumava voltada para a porta; e havia gargalhadas, vultos brancos passavam ao fundo.
Quando o criado mostrou-lhe o quarto, entrou, despiu-se e, diante da cama estreita, à luz minguada da vela, que ardia tristemente, interrogou-se de novo: "Mas que havia de fazer?" e, de um jato, acudiu-lhe ao espírito o plano da sua grande obra: uma série de romances nacionais que começasse no descobrimento do Brasil e terminasse... faltava-lhe o grande final, a luminosa apoteose.
Via a terra virgem, as galeras, a grande cruz da primeira missa, a gente selvagem e a maruja belicosa da Lusitânia. Via o explorador varejando os sertões, via as missões, depois as bandeiras ávidas e as guerras de disputa ensangüentando a Pátria; os picões de Holanda e da França e as naves portuguesas, as igaras tamoias, o tráfico africano; depois as cidades suplantando as florestas, o ouro e os diamantes atraindo aos sertões o mundo ambicioso e os primeiros mártires e a primeira corte. Depois os heróis da independência e o primeiro imperador e o segundo e os dias modernos... Mas como acabar? Onde o grande episódio...?
Acendeu um cigarro, deitou-se e, soprando a vela, ficou ainda tempo pensando no último volume dessa grande série sem, entretanto, achar o final que a pudesse encerrar com uma apoteose magnífica.