A Conquista/XXVI

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Uma tarde, já Anselmo havia "encerrado o expediente" do jornal e passeava pela rua do Ouvidor, o seu jardim, admirando a "mancenilha humana" quando o servente da Cidade do Rio, que o procurava em todas as confeitarias, entregou-lhe uma carta do Neiva, com a nota de urgência. Abriu e leu, comovido, estas palavras rápidas e tristes: "O Lins está agonizando. Vem!" e o endereço do moribundo.

Anselmo ficou um momento hesitante. Talvez fosse pilhéria do incorrigível boêmio, mas... se fosse verdade? Desceu a rua e encontrou o Duarte que subia carregado de embrulhos.

— Sabes? O Lins está agonizante, disse-lhe ex-abrupto.

— Como?! Não é possível! Quem te disse?

— O Neiva. Escreveu-me. Está aqui a carta.

— Não creias, homem; é troça. Ainda anteontem estive com o Lins numa cervejada. Não creias.

— Que horas são?

O Duarte arrancou do bolso um monstruoso relógio de níquel e, consultou-o, dizendo:

— Cinco mil e quinhentos.

— Hem?

— Cinco mil e quinhentos.

— Que história é essa?

— É simples. Este relógio custou-me doze mil réis, a mil réis por hora, assim eu, em vez de dizer, como toda a gente: São quatro, são duas horas, dou o preço correspondente ao tempo, que é dinheiro, como sabes. Em vulgacho são cinco e meia.

— Pois eu vou à casa do Lins. Pode ser verdadeira a comunicação do Neiva e não quero ficar com um remorso eterno. Queres vir comigo?

— Não posso, tenho uma irmã que faz anos hoje. Não vês como vou aqui carregado? Em todo o caso, se houver alguma coisa, manda-me um recado ao largo dos Leões, onde vivo, atualmente, como Daniel.

— Então, adeus!

Apartaram-se. Anselmo desceu a rua para tomar o bonde que o devia deixar à porta da casa do Lias, à rua Senador Pompeu. Era uma casa assobradada, bateu. Uma mocinha veio recebê-lo e, tanto que o viu, posto que não o conhecesse, acenou convidando-o a entrar e perguntou com uma vozinha branda:

— O senhor vem ver meu primo?

— Sim, senhora.

— Entre.

Levou-o pelo corredor sombrio. Na sala de jantar já o gás estava aceso. Havia gente conversando surdamente em torno da mesa redonda alegrada por um vaso de flores. Burburinhou um sussuro de vozes e Anselmo, sempre guiado pela mocinha, passou a outro corredor, entrando em um quarto, cuja porta ela abrira conservando-se fora.

Numa cama de ferro, ao fundo do quarto triste, sem móveis, iluminado por um bico de gás, agonizava, anquilosado, o poeta paraibano. As mãos cruzadas sobre o peito magro, as faces cavadas os olhos fundos, movendo-se sinistramente, eles apenas, em toda a imobilidade rígida daquele corpo, como se fossem os primeiros vermes que se houvessem alojado nas órbitas e andassem a roer em silêncio. O resto de vida refugiara-se-lhe nas pupilas negras, último reduto da alma, de sorte que eram os olhos que falavam, que sorriam, que perguntavam, que respondiam, que vertiam lágrimas dizendo adeus para o sempre, despedindo-se pelo coração que batia ainda, lentamente, flébil.

Agonizava quando Anselmo entrou e o Neiva, soluçando, com a vela na mão, tomou-lhe o braço, puxou-o para o peito de modo que ele pudesse empunhar o círio alumiador da última hora.

Vendo Anselmo fez um gesto desanimado, trincando os lábios e, mostrando, com um olhar, o companheiro que acabava. Fora houve um surdo rumor de passos, gente chegava à porta como para ouvir o sarrido da dispnéia e o soluço final do que atravessara a vida atordoando a agonia com o estrépito das gargalhadas. Num derradeiro esforço o moribundo volveu os olhos para Anselmo, parando-os, fitos nele. Veio um resto de luz à tona, mas foi, aos poucos, minguando, minguando até que as pálpebras caíram como duas tampas de esquife.

Nem um frêmito: extinguiu-se preso na paralisia. Alguns soluços quando correu a notícia; vozes abafadas, passos leves, segredos. Vieram os círios que põem quatro lágrimas de fogo junto aos mortos, veio a água benta com um ramo de alecrim num vaso de cristal.

Um Cristo de bronze, secular, gasto de muitos beijos, foi pousado à cabeceira do poeta. Neiva e Anselmo guardaram o corpo do companheiro, vestiram-no chorando. Os de casa pareciam desafogados, choravam por obrigação: deixavam a gota crescer nos olhos até que se precipitava pelas faces, punham-na, então, em evidência para que vissem que sabiam ser delicados, que conheciam as regras convencionais do sentimento, como depois provaram indo à missa e vestindo o luto.

Eram oito horas da noite quando o Neiva, atarantado, chamou Anselmo ao vão de uma janela para falar-lhe em segredo, porque os parentes do poeta suspiravam no quarto, esfregando os olhos secos.

— Não saias daqui; eu vou aos teatros. À meia-noite virei render-te.

Anselmo recuou assombrado:

— Pois vais aos teatros hoje!?

— Então, homem? Que queres? Vou arranjar algum dinheiro para comprar duas ou três coroas: uma por mim, outra por ti e outra pela imbecilidade humana. Que os idiotas prestem, ao menos, este culto a um poeta que teria sido genial se nascesse em outra terra. Até já.

Tomou o chapéu e, em pontas de pés, deixou a câmara fúnebre. A casa encheu-se, porque toda a vizinhança quis ver "o moço". As velhas chegavam ao leito de mãos cruzadas, um ar muito compadecido, a cabeça inclinada; ficavam um instante a mirar o cadáver, aspergindo-o com água benta e voltavam para o grupo, onde se discutia política e a vida livre de certa vizinha. Anselmo sentia-se mal naquele meio e, como ninguém lhe dirigia a palavra, procurava afazeres, ora espevitando os círios que crepitavam, ora arranjando a roupa com que haviam vestido o poeta, tão ancha, amarfanhada em gelhas no corpo raquítico, roupa de esmola, talvez de um tio, gordo e baixo que ia e vinha pelo corredor escarrando forte. A noite ia alta: os que faziam quarto ao morto conversavam francamente, com exceção do velho gordo que roncava numa cadeira de vime, de pernas abertas, a cabeça caída, as mãos papudas enclavinhadas no ventre rotundo, quando o Neiva entrou, de leve, com um embrulhinho e, depois de haver contemplado o cadáver, chamou Anselmo à parte sussurrando-lhe:

— Tens aqui uma porção. Come porque esta gente nem uma xícara de café é capaz de oferecer.

Anselmo, retirando-se, foi devorar deixando o boêmio à cabeceira do Lins, muito comovido, a enxugar lágrimas teimosas. Inesperadamente houve um tinir de louça e uma negrinha entrou na câmara mortuária com uma bandeja oferecendo café. O Neiva sussurrou a Anselmo:

— Teriam eles ouvido a minha observação?

— Talvez.

— Melhor. Que diabo! Não podemos passar toda a noite a fazer cruzes na boca. Nem parecem nortistas. No Norte oferecem-se ceias lautas aos que fazem quarto. E aqui mesmo, já apanhei uma indigestão em casa de uns minas no dia da morte de um deles. Foi um banquete, meu amigo! Um verdadeiro banquete! E aqui... nem um biscoito.

— Arranjaste para as coroas?

— Se arranjei! E já encomendei flores, flores em profusão; devem trazê-las aqui. Descansa: o nosso Lins não fará figura triste, isso não. Eu estou aqui!

O sono não conseguiu vencer os rapazes que viram nascer a luz coando-se pelos vidros baços da janela. O Neiva, então, sentindo-se mole, convidou Anselmo para o Ravot:

— Vamos tomar a nossa ducha para resistirmos. Estou esbarrondado. Há seis noites que não durmo.

— E eu! — exclamou Anselmo apanhando o chapéu e, sem se despedirem, foram saindo cautelosamente, deixando o morto desacompanhado, porque só uma criança estava junto dele e dormia profundamente, estirada no chão, com um braço passado pela cabeça.

Eram quatro horas da tarde, linda tarde de Setembro quando o corpo do poeta foi conduzido ao coche pelos boêmios. As coroas levadas pelo Neiva faziam desaparecer a da família do morto, feita de saudades roxas, mas tão fanadas, que o Duarte, indignado, murmurou:

— Isto até parece de aluguel.

O saimento não foi numeroso: quatro carros apenas acompanharam a S. João Batista o eterno enamorado. À beira da cova o Neiva, rompendo em soluços, despediu-se do amigo e o Duarte, com um pranto sincero, pediu ao finado que o viesse buscar, porque já estava enfarado da vida imbecil. Um velhinho abeirou-se da cova, pigarreou como se preparasse a garganta, os coveiros encostaram-se às pás, esperando o discurso, mas o velhinho meneou com a cabeça e retirou-se. A sineta tinia.

— Vamos, meus amigos; convidou o Neiva. Houve um rufo sinistro que se foi tornando soturno e abafado e a terra tomou posse do corpo amado. No carro Anselmo e o Neiva travaram uma discussão transcendente:

— Eu não temo a morte, disse Anselmo, o que me apavora é a idéia de morrer, é a certeza em que estou de que hei de acabar. O que me aterra é a sensação angustiosa do momento. Não penso na morte, penso na vida. Queres ver a coisa? Está claramente exposta em um sonho que me persegue. Vejo-me no fundo de um poço tenebroso, frio, lutando, debatendo-me, sem ar até que encontro a ponta de um cabo — agarro-o aflito e começo a guindar-me, mas, com o atrito das mãos, o cabo começa a esgaçar-se, a delir-se... Chegam-me aos ouvidos vozes, avisto a luz do sol, fraca e longínqua, sinto o perfume das flores. Já à borda do poço, vejo que o cabo está por um fio tenuíssimo — mais uma flexão e tudo estará perdido.. E ouço e sinto a vida... Ah! O instante horrível deve ser esse: a espera, sentir o estalar dás últimas fibras do cabo, estar à beira da luz e dentro da treva. À queda é uma vertigem, mas antes da queda, o momento da resistência da fibra mais forte...

Tenho passado muitas e muitas noites em claro a pensar nesse drama sinistro. A saudade da vida é que me assombra: o acabamento deve ser rápido, muito rápido.

— Não concordo contigo, disse o Neiva, não concordo.

— Como não concordas?

— Não... Medo da morte não tenho, porque sou católico — o Além não me aterra, o que me tortura é a idéia da destruição vagarosa, gradativa. Explico-me. Para mim a morte é como a lenta extinção de uma fogueira; desaparecem as labaredas, mas ficam as brasas, faíscas percorrem os troncos carbonizados, apagadas as faíscas fica a cinza quente, ainda é vida. A morte parcial... o aniquilamento das células... hum! Imagina um pobre corpo imóvel a extinguir-se: aqui um fato que se apaga no braseiro da memória, ali outro, mas crepitando ainda uma saudade e terrível, como uma formiguinha presa num recipiente hermeticamente fechado, a correr aflita de um lado para outro, a última idéia no corpo morto, a idéia ambiciosa de viver, descendo pelos nervos, do cérebro à sola do pé, subindo ao coração, indo ao fígado, aos pulmões, ao baço, aos rins, aos intestinos e achando em tudo o frio e o silêncio. A ânsia de fugir... Ah! Meu amigo, dessa sobrevivente é que eu tenho medo! Até que ela acabe, até que sucumba no grande frio mudo... Ah!...

— Pois é isso justamente o fio tênue do cabo, disse Anselmo: é o "instinto" que luta até...

— ... não poder mais! — exclamou o boêmio, com um arrancado e desesperado suspiro. E atirando os braços bradou: — Com todos os diabos, mudemos de assunto. Falemos da vida, das coisas da vida, do esplendor da vida. E o carro chegou ao Largo da Carioca justamente quando os sinos dobravam as Ave Marias!