A Conquista/XXVIII

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Quando deixaram o escritório da Cidade do Rio, lentos, curvados como enfermos, ainda erravam entusiastas e alguns tão desequilibrados que começavam um viva numa calçada e iam terminá-lo na outra.

Sentados nas soleiras das portas, populares estafados faziam guarda às botinas ou resmungavam cabeceando. Como em cidade que se prepara, às pressas, para um assédio, em todas as esquinas havia montes de sarrafos e de tábuas; homens subiam por escadas altas e à luz fumarenta e escura de candeias, martelavam com fúria, cantarolando, assobiando.

No Largo de São Francisco um grupo, com violas e flautas, em zangarreio jocundo, atraía a atenção dos retardatários; e como uma voz fanhosa, que acusava zangurriana, levantasse um viva a José do Patrocínio, o abolicionista tremeu aterrado, e para que não fosse conhecido acolheu-se escondidamente aos companheiros, assombrado, pedindo, em voz surda, que não o deixassem exposto, o livrassem de mais um discurso e demais abraços. Passaram sem que os da serenata vissem o tribuno. Junto, porém, ao pátio exterior da Escola Politécnica, um noctâmbulo. reconhecendo-o, levantou o chapéu acima da cabeça e escancelou a boca, mas não pôde gritar: Montezuma, furente como Ajax, agarrou-o pelo colete e, com voz temerosa e rouca, ameaçou-o:

— Se grita, morre!

Mas o homem, de olhos esbugalhados, explicou que ia levantar um viva ao grande brasileiro.

— Aqui não há grande brasileiro, não há nada. Só te digo que se gritas morres...

— Então a gente não pode ter opinião?

— Não... Quarenta e seis! Sabes tu que são quarenta e seis discursos?

— Não, senhor.

— Pois sei eu que os fiz. Vai e lembra-te das minhas palavras: Nem um viva...!

— Pois sim, senhor... Boa noite. E desculpe.

— Está desculpado.

O pobre homem afastou-se intrigado com aquela agressão. Caminhava; mas, como se o entusiasmo o picasse, de quando em quando voltava a cabeça e lançava um olhar ao grupo em que se achava o abolicionista. Perto da rua da Conceição não se conteve — preparou-se para a corrida e, a plenos pulmões, lançou aos ares sossegados um estrondoso: "Viva José do Patrocínio!" Montezuma sapateou de cólera e quis sair em perseguição do recalcitrante, mas os amigos opuseram-se. Felizmente ninguém ouvira o grito. Ao longe a serenata continuava, lânguida.

— Queres saber, José? Acho melhor tomares um tílburi.

— Mas não há.

— Eu vou ver, disse Anselmo.

— E eu, ajuntou o Neiva.

— Então depressa.

Partiram os dois; e Montezuma ficou acompanhando o amigo e escondendo-o.

Pouco depois dois tílburis chegavam à disparada. Patrocínio precipitou-se para o primeiro, dizendo desafogadamente:

— Estou salvo!

— Boa noite!

— Dize antes: bom dia, emendou Anselmo, porque os galos começam a cantar.

— Bom dia então. Até logo.

— Não venhas hoje à cidade.

— É melhor.

— Eu, por mim, declaro que, enquanto houver festejos, não ponho os pés na rua. Estou com a garganta em mísero estado. Deixa-te ficar em casa. Já fizeste a grande obra; está a pátria livre; não queiras tu ser o cativo. Não venhas!

— Pois sim. Adeus!

E o cocheiro fustigou o cavalo, que partiu a galope. Pardal, que estava fatigado e ameaçado de enxaqueca, despediu-se também.

Diante do outro tílburi ficaram os três, Neiva, Anselmo e Montezuma, discutindo o grande fato. Montezuma, porém, não achava extraordinário o acontecimento: parecia-lhe muito mais importante a sua eloqüência.

— Meus amigos, a libertação dos negros era coisa esperada, a campanha havia de ter um desfecho, mas quarenta e seis discursos de improviso... ufa! No Rio da Prata, em presença do Urquiza, numa festa política, fiz quatro brindes e todos declararam, assombrados, que eu era um fenômeno. Os jornais comentaram, e, nos salões, durante mais de um mês, o assunto das palestras foi a minha exuberância. Que diriam aqueles homens se soubessem que, num dia e sem jantar, pronunciei quarenta e seis discursos com imagens? É um absurdo.

— E eu? — exclamou o Neiva. Cheguei a fazer dois discursos a um tempo, para andar mais depressa. E Patrocínio...?!

— Ah! Mas o Patrocínio tem o hábito da tribuna.

— O hábito não faz o monge, observou Anselmo.

— Aí vem você com os disparates. Vamo-nos embora. É tarde.

— Acho que é muito cedo. Começa a amanhecer. Se fossemos às ostras, no Mercado?

— É uma idéia.

— Toca para o Mercado.

E os três, despedindo o tílburi, desceram a rua do Ouvidor, que começava a enfeitar-se azafamadamente para a celebração da grande festa. E romperam a cantar, roucos, de braço dado, seguindo a passos largos:

Alions enlants de la Patrie Le jour de gloire est arrivé...

Um bêbedo, cambaleando, levantou um viva ao Brasil e começou a algaraviar um discurso. Tiniram campainhas e, no silêncio da rua, a voz de um tropeiro, que vinha tangendo a récua, rompeu afinada e dolente:

Eh! dona do xale branco,
Cumu é seu coração?
S'é máu, porque me buscou,
S'é bom, porque me diz não?
Eh! dona, eu não comprendo
Tamanha vacilação!...

— Deixemos passar a bucólica, disse o Neiva encostando-se à parede.

E a tropa, com um alegre tinir de campainhas, passou a trote lento.

Quando chegaram à rua Direita ainda havia sombra noturna. Italianos seguiam em grupos com os cestos pendentes dos paus. Carroças rodavam vagarosas, parando aqui, ali. Os três tomaram pelo largo do Paço. Montezuma, enfezado, resmungava:

— Que já não era homem para aquelas estroinices, estava com cinqüenta anos, era tempo de tomar juízo. Que havia de dizer em casa quando aparecesse? Contava com a guerra civil. Sempre que fazia alguma ao voltar caíam-lhe todos em cima: a mulher e os filhos, e era uma grita de enlouquecer. E com razão. Um homem como ele devia dar-se a respeito. Que diriam se o vissem, àquela hora da manhã, batendo a calçada, em troça?

— Ora, Montezuma! Deixa-te de escrúpulos. A vida é isto.

— Pois sim.

Chegavam ao largo do Paço.

Ao fundo, no mar, confundindo-se com as estrelas, luziam faróis de barcos e o relógio da companhia Ferry, iluminado, parecia uma grande lua muito baixa. Uma carroça, atulhada de verdura, passava aos solavancos. Tiniam campainhas e, de longe, no ar, vinha o cheiro acre da maresia. Cães rosnavam nos monturos. O mercado acordava. As diferentes barracas enchiam-se e, à luz do gás, os mercadores iam arranjando a hortaliça verdoenga, empilhando molhos de alface, de agrião, de couves. Os repolhos rolavam nos cestos, os rabanetes e os nabos confundiam-se e, constantemente, iam e vinham carregadores, com enormes cestos acogulados: arriavam, descarregavam e iam, a trote, algaraviando e rindo. Bácoros coinchavam, grasnavam patos, ganiam cães e os galos, pressentindo a manhã, cocoricavam triunfantemente. Uma negra, sentada num tamborete, mexia, com imensa colher de pau, a panelada de angu; outra adiante, cercada de negros e pescadores, enchia canecas de mingau de tapioca, respondendo, com calma, aos gracejos da freguesia. Nos açougues a carne sangrenta destacava-se: eram metades de reses, carneiros e porcos estaqueados e, no cepo, os homens iam esquartejando, espostejando a manchil e logo corriam aos ganchos espetando os grandes quartos que ficavam oscilando e sangrando.

— Onde vamos nós?

— Às ostras.

— E já haverá?

— Como não? Há ostras como há médicos: a qualquer hora do dia ou da noite, afirmou Montezuma. Eu conheço isto. Vamos ver o grego.

— Que grego...?

— Um que aqui há, do Pireu. Vende ostras quando não está na Detenção, ou no júri. É homem que abre barrigas com a mesma facilidade com que Hércules estrangulava leões. Dou-me com ele.

— Pois vamos lá ao grego.

Chegaram à praia justamente quando começava o leilão de peixe. As canoas, enfileiradas na rampa, estavam abarrotadas de pescado. Uma multidão fervilhava em volta, discutindo, berrando. Eram gritos, impropérios, pragas, ameaças e, vencendo o rumor, a voz tonitroante de um alentado cabo-verde apregoava. Em grandes cestos, em cambulhada na rampa, homens faziam escolha de ostras, abriam-nas entalando-lhes o facão entre as valvas e, arranjando-as em tampas, apregoavam: "Ostras frescas! Mariscos!"

— Vamos ao grego. E Montezuma encaminhou-se para o sítio em que estava o primeiro tabuleiro, mas deteve-se:

— Oh!

— Que é?

— Não é o grego. Querem ver que já está na Detenção?

Um homem alto, barbado, abria as ostras com um facalhão. Montezuma abordou-o.

— Bom dia, patrício.

— Deus lhe dê bom dia.

— Sabe dizer-me se o grego ainda vive?

— O grego...? Vossoria quer falar do Alexandre...

— Não sei se é Alexandre: o grego.

— Sim, senhor: o grego, é como l'o chamam. Ah! Foi filado desde pelo carnaval.

— Foi filado?!

— Sim, senhor.

— Está preso?

O homem, sempre a abrir as ostras, encolheu os ombros.

— Que quer vossoria... a polícia mete-se em tudo. A gente tem uma quistãzinha com um camarada, às vezes intê amigo e, cando mal se precata, está aí a patrulha com maus modos, azangando tudo...

— É verdade, apoiou o Neiva. Se não fosse a polícia não haveria tantos conflitos como há. O elemento de ordem é o principal desordeiro.

— Tal e qual! Vossoria fala como um adbugado.

— Mas que houve com o grego?

— Que hoube...? O que há sempre... Vossoria sabe, quem se mete com mulher fica com um pé cá fora e outro lá dentro. O Alexandre, em vendo mulher, até esquece o nome. Aqui assim ao lado ficava um rapazinho que tinha um diabo de mulata que até fazia tonteiras, palavra de honra; a gente punha-lhe os olhos em cima e aquilo era uma vez. Vossoria quer ostras? Estão frescas.

— Sim, queremos.

— P'ros três? Isto é um maná p'ro peito. Olhe, aqui vem todas as manhã um moço doutor que esteve disinganado, porque a tísica lhe comeu um pulmão, lá nele. Não tomou drogas, não Senhor, veio às ostrinhas e está que é um texugo: até parece que tem agora quatro pulmões. Se algum dos senhores tem moléstia do peito, não queira saber d'óleos de fígado, nem d'oitras mixórdias, atice-lhes... uma ou duas dúzias d'ostras pela manhã e um calixto do bom, e diga-me depois se o Timóteo tem ou não olho p'rá coisa.

— Chama-se Timóteo?

— De Azevedo e Almeida, p'rá servir a vossoria.

— Mas vamos ao caso do grego.

— Ah! Sim, ao caso do Alexandre... Mulheres, mulheres.

— O diabo são — disse sentenciosamente Anselmo.

— O caso foi o conseguinte. Os dois, o grego mal o mulato, fizeram-se de boa amizade, sempre juntos, mas não era pelos olhos do mulato que o grego andava perdido, que ele até, Deus não me castigue, tinha uma cara de desmamar crianças, o grego andava de olho mas era na cachopa, que era destorcida. E vai daqui e vai dali um dia zás! O grego meteu-se em casa e começaram os presentes e o homem ficou embeiçado duma vez, que até o serviço esquecia e, quando vinha à banca, em vez de tratar da vida, punha-se a arrancar suspiros e até tratava mal a freguesia. Estava virado duma vez. O mulato não dava pela coisa e a marosca já ia adiantada. Uma manhã, foi o diabo que se meteu no meio, o mulato estava aqui muito bem, a fazer o seu mercado quando, de repente, atirando a faca p'rá cima da banca, chamou um companheiro, entregou-lhe o negócio e coriscou por aí fora que nem um cão danado lhe tivesse ferrado os gravetos. Ainda me lembro que o Zé da Terceira perguntou se ele fugia do arrecrutamento. Eu sabia do caso, mas nunca pensei que o diabo do grego houvesse arranjado as coisas tão depressa. Eram onze horas, mais ou menos, quando a notícia bateu no mercado — que o grego havia esvaziado o bucho do mulato com uma língua de ferro.

— Por causa da rapariga? — perguntou Montezuma.

— Por minha causa não foi, isso garanto a vossoria. O mulato encontrou o grego no quente e, como dói à gente gastar o seu dinheiro com uma traidora, o rapazinho, queimado, desmunhecou com a navalha em cima do grego, que não ficou partido de meio a meio porque o diabo tem santo. Saltou da cama e, ligeiro que nem um raio, espetou o mulatinho, que ficou com tudo exposto e acabou sem ter tempo de tomar o Cristo. O grego veio logo p'rá praia, meteu-se num bote e mandou cortar para a ilha do Governador. Mas os manos foram dar com ele e lá o têm na casa-grande até que o Senhor seja servido.

— O mulato morreu?

— Se morreu!? Pois vossoria queria que um homem naquelas condições vivesse? Morreu e bonito.

— E a mulata?

— A gente sabe lá dessas criaturas? Anda por aí, hoje com um, aminhá com oitro. Já me andou por aqui a fazer fosquinhas, mas eu não quero endrominas com mulher que já puxou sangue. Que se arranje por lá com quem quiser. Comigo é que não, não tenho estômbago para essas coisas. Não há nada como a gente viver com o que é seu, deixem lá.

— É casado?

— Casado? Eu! Não, senhor. Vivo como casado, mas sou independente. Quando não me servir, boa noite! Passe muito bem e venha outra. Senhor doutor, vou para os quarenta e tenho visto muita coisa. Dois homens não brigam senão por mulher. Se vossoria vir um desgraçado com um palmo de ferro no corpo pode jurar que foi por questão de mulher ou de jogo, que é outra coisa danada. Eu também já estive para me perder, cheguei mesmo a meter na cava do colete o ferro, mas Nossa Senhora alumiou-me e, em vez de fazer uma asneira fiz uma coisa de homem de juízo — fui p'rá casa, agarrei a mulher pelo gasnete, dei-lhe um pontapé e mandei-a com Deus. Foi logo p'r'uma rótula e ainda me escreveu cartas, pedindo perdão e jurando que se havia de portar como uma santa; mas eu.. moita. Não, que quem escapa duma queda não deve ir espiar o lugar donde esteve p'rá cair. Que se arranje! Vai mais uma dúzia? Estão frescas e são de rocha. Eu cá não vendo ostras de navio; não, que tenho consciência. Já um pobre senhor, por sinal que era médico, escapou da morte por ter comido umas endiabradas, que vieram do casco dum pontão. Eu cá posso garantir a minha fazenda.

— Estão boas.

— Ah! E saborosas. Afiou a faca na borda da tábua, e, com um sorriso, para continuar a palestra, disse: Antonces agora não há mais escravos?

— Felizmente! — disse Anselmo sorvendo uma ostra.

— Felizmente, diz vossoria muito bem. Eu é porque sou pobre, e não ia oferecer um rico presente ao senhor Patrocínio. Grande homem! Aquele é como o Pombal que acabou com os jesuítas. De homem assim é que nós precisamos. Era uma vergonha, isso era! Um país rico como este não precisa de escravos. Eu digo a vossoria: se fosse coisa da gente fazer com armas, eu mesmo, estrangeiro como sou, saía p'ra rua e havia de fazer o meu filé. Porque, verdade, verdade, eu, com ódio, sou homem p'ra mandar um freguês desta p'ra melhor, num tempo; mas, a sangue frio, juro por Deus! Sou incapaz de bater num cão, num cão! Que até me perco muitas vezes pelo coração, e quando lia a relação dos castigos que sofriam os pobres negros, os fígados subiam-me à goela, palavra de honra. O senhor Patrocínio ganhou o céu.

— Conhece-o?

— A quem? Ao Zé do Pato? Ora! Meu freguês. De vez em quando aqui vem. Não come muito, é de pouco comer, meia dúzia d'ostras e já diz que tem p'ra o dia todo.

Tomou um ar grave e, limpando as mãos a um pano sórdido, disse como se jurasse:

— Agora ele pode vir aqui cando quiser; não lhe cobro vintém, sim, porque é até vergonha cobrar dum homem como aquele.

— Apoiado! — afirmou o Neiva.

E Montezuma, receoso de que o homenzinho levado pelo entusiasmo, quisesse improvisar um discurso, pagou e despediu-se:

— Às ordens de vossoria, Timóteo de Almeida.

— Sim, até outra vez.

Durante oito longos e agitados dias o povo festejou, com entusiasmo, a promulgação da lei igualitária. Anselmo, que conseguira o dom da ubiqüidade para poder gozar de todas as festas suntuosas e alegres que foram celebradas, como se já se houvesse habituado àquela vida de atropelo, acordando com o silvo agudo da máquina de uma fábrica, estirou os braços e bocejou com preguiça, deixando-se ficar na cama, a olhar o papel do quarto, manchado de umidade.

— E agora, seu Anselmo? A campanha está vencida... Quererá ainda o Patrocínio continuar com a Cidade do Rio? Com que programa? Enfim...

Levantou-se molemente, foi ao banheiro e, refrescado, vestiu-se e saiu.

A vida retomara o seu curso normal: pulsavam as grandes máquinas das oficinas, caminhões rodavam carregados, turmas de crianças, com os sacos a tiracolo, seguiam a caminho dos colégios. Reviviam os pregões dos vendedores ambulantes. Nas esquinas o calçamento estava deslocado, havia pirâmides de paralelepípedos e covas fundas; pilhas de sarrafos e panos sarapintados atravancavam as calçadas — eram os restos dos coretos que os operários desfaziam com pressa como bárbaros que destruíssem uma cidade. Escudos e lanças eram levados em carroças e calceteiros andavam a reparar as ruas esboroadas. Aqui, ali, às janelas, ainda esvoaçavam flâmulas esquecidas e bandeiras, muito espichadas e encolhidas, pendiam moles, como fatigadas. A cidade tinha um ar morno de cansaço. A rua do Ouvidor, acamada de areia, era como uma estrada fofa onde o rumor dos passos morria e toda a vida parecia decorrer, morosa e derreada, de um bocejo cavo e lento, de tédio.

Entrando na Cidade do Rio Anselmo perguntou por Patrocínio. "Já ali estivera, muito cedo, com um corretor", disse o gerente. Subiu. As salas estavam ainda desarranjadas. Grandes ramos de flores murchas jaziam pelos cantos, em abandono triste; bandeiras enchiam uma grande lata; do teto pendiam sanefas esvoaçantes e corimbos e sobre a mesa central, entre jornais, havia uma corbeille atufada de rosas dentre as quais passarinhos, de asas abertas, pareciam querer fugir para o espaço luminoso.

Anselmo procurou umas tiras e, afastando velhos ramalhetes, que entulhavam a sua mesa, pôs-se a escrever maquinalmente. Embaixo, na oficina, os compositores chalravam. Justamente terminava a crônica e começava a rubricar o noticiário quando Patrocínio apareceu esbaforido com o chapéu derreado à nuca. Atirou-lhe uma palmada ao ombro e sentou-se à secretária procurando alguma coisa nas gavetas.

— Então, José... Que vamos fazer agora?

— Hem? Escrevia, muito inclinado, de costas para o secretário.

— Qual é o teu programa?

— Que programa? Ergueu-se e, sorrindo, estendeu a mão: Dá cá um cigarro. Perguntas qual é o meu programa?

— Sim. Conquistaste o teu ideal e agora...?

— Agora?... E, rindo, inclinou-se ao ombro do companheiro, dizendo-lhe ao ouvido: Agora vou ali ao banco com esta letra arranjar dinheiro. Os rapazes estão lá embaixo trabalhando e... Já almoçaste?

— Ainda não.

— Então espera-me no Globo, ao meio dia. Ia saindo, mas voltou-se: Olha, manda limpar a redação que está imunda, ouviste?

E desceu as escadas precipitadamente.