A Dama do Pé-de-Cabra/I/IV
Ora deveis de saber que o senhor de Biscaia tinha um alão a quem muito queria, raivoso no travar das feras, manso com seu dono e, até, com os servos de casa.
A nobre mulher de D. Diogo tinha uma podenga preta como azeviche, esperta e ligeira que mais não havia dizer, e dela não menos prezada.
O alão estava gravemente assentado no chão defronte de D. Diogo Lopes, com as largas orelhas pendentes e os olhos semicerrados, como quem dormitava.
A podenga negra, essa corria pelo aposento viva e inquieta, pulando como um diabrete: o pêlo liso e macio reluzia-lhe com um reflexo avermelhado.
O barão, depois da saúde urbi et orbi feita aos monteiros, esgotava um quírie comprido de saúdes particulares, e a cada nome uma taça.
Estava como cumpria a um rico-homem ilustre, que nada mais tinha que fazer neste mundo, senão dormir, beber, comer e caçar.
E o alão cabeceava, como um abade velho em seu coro, e a podenga saltava.
O senhor de Biscaia pegou então de um pedaço de osso com sua carne e medula e, atirando-o ao alão, gritou-lhe: — "Silvano, toma lá tu, que és fragueiro: leve o diabo a podenga, que não sabe senão correr e retouçar."
O canzarrão abriu os olhos, rosnou, pôs a pata sobre o osso e, abrindo a boca, mostrou os dentes anavalhados. Era como um rir deslavado.
Mas logo soltou um uivo e caiu, perneando meio morto: a podenga, de um pulo, lhe saltara à garganta, e o alão agonizava.
"Pelas barbas de D. From, meu bisavô! — exclamou D. Diogo, pondo-se em pé, trêmulo de cólera e de vinho. —A perra maldita matou-me o melhor alão da matilha; mas juro que hei-de escorchá-la." E, virando com o pé o cão moribundo, mirava as largas feridas do nobre animal, que expirava.
"A la fé que nunca tal vi! Virgem bendita. Aqui anda coisa de Belzebu." — E dizendo e fazendo, BENZIA-SE E PERSIGNAVA-SE.
"Ui!"— gritou sua mulher, como se a houveram queimado. O barão olhou para ela: viu-a com os olhos brilhantes, as faces negras, a boca torcida e os cabelos eriçados.
E ia-se alevantando, alevantando ao ar, com a pobre D. Sol sobraçada debaixo do braço esquerdo: o direito estendia-o por cima da mesa para seu filho, D. Inigo de Biscaia.
E aquele braço crescia, alongando-se para o mesquinho, que, de medo, não ousava bulir nem falar.
E a mão da dama era preta e luzidia, como o pêlo da podenga, e as unhas tinham-se-lhe estendido bem meio palmo e recurvado em garras.
"Jesus, santo nome de Deus!" bradou D. Diogo, a quem o terror dissipara as fumaças do vinho. E, travando de seu filho com a esquerda fez no ar com a direita, uma e outra vez, o sinal da cruz.
E sua mulher deu um grande gemido e largou o braço de Inigo Guerra, que já tinha seguro, e, continuando a subir ao alto, saiu por uma grande fresta, levando a filhinha que muito chorava.
Desde esse dia não houve saber mais nem da mãe nem da filha. A podenga negra, essa sumiu-se por tal arte, que ninguém no castelo lhe tornou a pôr a vista em cima.
D. Diogo Lopes viveu muito tempo triste e aborrido, porque já não se atrevia a montear. Lembrou-se, porém, um dia de espairecer sua tristura, e, em vez de ir à caça dos cerdos, ursos e zebras, sair à caça de mouros.
Mandou, pois, alevantar o pendão, desenferrujar e polir a caldeira, e provar seus arneses. Entregou a Inigo Guerra, que já era mancebo e cavaleiro, o governo de seus castelos, e partiu com lustrosa mesnada de homens d'armas para a hoste del-rei Ramiro, que ia em fossado contra a mourisma de Espanha.
Por muito tempo não houve dele, em Biscaia, nem nvas nem mensageiros.