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A Dama do Pé-de-Cabra/II/III

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No tempo dos reis godos bom tempo era esse! havia em Biscaia um conde, senhor de um castelo posto em montanha fragosa, cercado pelas encostas e quebradas de larguíssimo soveral. No soveral havia todo o gênero de caça, e Argimiro o Negro (assim se chamava o rico-homem) gostava, como todos os nobres barões de Espanha, principalmente de três coisas boas segundo a carnalidade: da guerra, do vinho e das damas; mas ainda mais do que de tudo isso, gostava de montear.

Dama, possuía-a formosa, que era a linda condessa; vinho, não havia melhor adega que a sua; caça, era coisa que na selva não faltava.

Seu pai, que fora caçador e fragueiro, quando estava para morrer, chamou-o e disse-lhe:

"Hás me de jurar uma coisa que não te custará nada." Argimiro jurou que faria o que seu pai e senhor lhe ordenasse.

"É que nunca mates fera em cama e com cria, seja urso, javali ou veado. Se assim o fizeres, Argimiro, nunca nas tuas selvas e devesas faltará em que exercites o mais nobre mister de um fidalgo. Além disso, se tu souberas o que um dia me aconteceu... Escuta-me que é um horrendo caso...

O velho não pôde acabar; porque a morte lhe cravou neste momento as garras. Murmurou algumas palavras emperradas, revirou os olhos e feneceu. Deus seja com a sua alma!

Passaram depois anos: certo dia chegou ao castelo do moço conde um mensageiro del-rei Wamba. Chamava-o el-rei a Toledo para o acompanhar com sua mesnada contra o rebelde Paulo. Os outros nobres-homens das cercanias eram, como ele, chamados.

Antes, porém, de partirem, ajuntaram-se todos no castelo de Argimiro para fazerem uma grande montaria, com mais de cem alâos, sabujos e lebréus, cinqüenta monteiros, e moços de besta sem conto. Era uma vistosa caçada.

Saíram no quarto d'alva: correram vales e montes: bateram bosques e matos. Era, contudo, meio-dia e ainda não haviami alevantado porco, urso, zebra ou veado. Blasfemavam de sanha os cavaleiros, praguejavam e depenavam as barbas.

Argimiro, que, por longa experiência, conhecia os sítios mais profundos da espessura, sentiu lã por dentro uma tentação do diabo.

"Os meus hóspedes, pensava ele, não partirão sem beberem alguns canjirões de vinho sobre uma ou duas peças de caça. Juro-o por alma de meu pai."

E, seguido de alguns monteiros, com suas trelas de cães, afastou-se da companhia e deu a andar, a andar, até que se lançou por um vale abaixo.

O vale era escuro e triste: corria pelo meio unia ribeira fria e mal-assombrada. As bordas da ribeira eram penhascosas e faziam muitas quebradas.

Argimiro chegou à primeira volta do rio; parou, pôs-se a olhar de roda e achou o que procurava. Abria-se uma caverna na encosta fragosa, que descia até a estreita senda da margem por onde o cavaleiro caminhava. Argimiro entrou na boca da cova e, a um aceno, entraram após ele monteiros, moços de besta, alãos, sabujos e lebréus, fazendo grande matinada.

Era o covil de um onagro: a fera deu um gemido e, deixando as suas crias, estendeu-se no chão e abaixou a cabeça, como quem suplicava.

"A ela!" — gritou Argimiro, mas gritou voltando a cara.

A matilha saltou no pobre animal, que soltou outro gemido e caiu todo ensangüentado.

Uma voz soou então nos ouvidos do conde, e dizia: —"Órfãos ficaram os cachorrinhos do onagro: mas pelo onagro tu ficarás desonrado."

"Quem ousa aqui falar agouros?" — gritou o rico-homem, olhando iroso para os monteiros. Todos guardavam silêncio; mas todos estavam pálidos.

Argimiro pensou um momento: depois, saindo da cova, murmurou: — "Vá com mil Satanases!"

E, com alegres toques de buzina e latidos da matilha, fez conduzir ao castelo a preia que tinha preado[1]

E, tomando o seu girifalte prima em punho, ordenou aos monteiros fossem dizer aos nobres caçadores que dentro de duas horas voltassem, porque achariam em seu paço comida bem aparelhada.

Depois, seguido dos falcoeiros, começou a encaminhar-se para o solar, lançando nebris e falcões e ajuntando caça de volateria, que a havia por aqueles montes mui basta.

Notas

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  1. Um jumento silvestre não seria mui delicado manjar para uma mesa moderna; mas o uso da carne asinina na Idade Média era vulgar. [N. do A].