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A Dança do Destino/A Cotovia

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A cotovia
A cotovia
 

 
I

Não conheceram a Cotovia?

Era uma velhinha deliciosa! Muito curvadinha, arrimada a uma bengala, andava por ahi a vender cautelas.

A pele já apergaminhada, mas tão clara como uma noite de luar.

A cabeça, vergada para o chão, parecia andar a perscrutar o lugar da sua proxima e ultima morada.

Quando queria olhar para nós, tinha de ficar com a cabecinha ao lado e então a ponta do seu lenço escuro cahia-lhe artisticamente sobre o hombro, dando a ilusão de um manto a cobrir a cabeça de uma santa.

Era muito bonita a velhinha.

Que edade teria ? oitenta, noventa, cem anos? Parecia tê-los todos, mas ouvindo-a o reparando bem nela, logo a doçura da sua voz e a inteligencia que brilhava ainda no seu meigo olhar nos davam a impressão de menos idade.

Gostava imenso da musica. Onde a ouvia parava logo a escutar e ficava-se embevecida, o olhar vago, um sorriso doce a pairar-lhe nos seus labios delgadinhos, alheada de tudo que a rodeava, vivendo talvez, uns instantes, dos sonhos que a musica be vinha recordar do sen passado, tão longinquo e, quem sabe? tão cheio de saudades!...

Afastava-se, por fim, repetindo muito de mansinho os motivos da musica que ouvira. Não reparava em ninguem, nem se importava, se, por acaso, as suas notas em surdina despertavam o riso.

 
II
 

Uma vez, ha tantos annos! quantos? Ainda eu era quasi creança. Atrahida pelas canções tremelicadas do velho Gaspar da viola, o popularissimo menestrel das ruas, que andava com a mulher e uma filha formando o trio desafinado e caracteristico da miseria cantante, num dia em que o pobre Gaspar, mais entusiasmado e mais rouco do que nunca, cantava na rua em que eu morava, assomei à janela, quando passava justamente a já curvada e velhinha Cotovia. Ela parou a ouvir o esfarrapado trovador, e, encostada ao bordãosito, muito limpa e modesta. no seu vestido escuro, poz-se a contempla-lo com um olhar benevolo.

Ele, ao vê-la, desfecha-lhe logo a seguinte quadra, muito orgulhoso do seu engenho repentista:

— Escutando o meu talento,
esta scentelba divina —
folga a gente miudinha
e una dama pequenina. —

A gente miudinha eram os garotos.

Depois continuava, animado pelo bom acolhimento do auditorio:

— Senhora que estaes de luto,
já decerto sois viuva!
Quando os porcos todos bailam
anunciam muita chova.

A Cotovia sorriu, tirou 10 réis e deu-lh'os. Ele então, fazendo-lhe grandes reverencias, os cabelos em mólhos grisalhos cahindo lhe nos olhos, desfazia-se em improvisos de agradecimento.

 

Já ela se afastava lentamente, segnida por alguns dos garotos, na espectativa de serem atingidos pela generosidade da dama pequenina, e ainda o Gaspar, entre ironico e carinhoso, clamava:

— Nossa rica bemfeitora,
parece una flôr singela;
e os petizes que a rodeiam
são da mesma altura d'ela.

Depois reparou em mim e ao vêr-me rir, continuou na vertiginosa correria da sua inspiração e na doce perspectiva de uns cobresitos a cahirem da janela:

— Ó menina, tão loirinha,
tenha do pobre piedade,
e Deus the dê a idade
d'aquela boa velhinha.

E a mulher repetia numa voz muito aguda, de falsete:

— Tenha dó, tenha piedade!

 

Logo assomava uma creadita curiosa a outra janela, e êle gritava:

 

— Sopeirinha da janela,
dá-nos algo de jantar,
deixa ferver a panela,
vem ouvir o teu Gaspar.

E a voz esganiçada e choramingas da mulher repetia:

― Dá-nos algo de jantar!

As janelas dos predios visinhos iam-se abrindo e as moedas de vintem, dez réis e cinco réis saltavam sobre as pedras da calçada.

Então sucediam-se as árias, com trémulos comoventes, as cordas da viola chocavam-so frementes de entusiasmo, e o pobre Gaspar, curvando-se em evoluções serpentinas, sempre de melenas a baterem-lhe nos olhos revirados para o céu, vibrava, verdadeiramente sublime de comoção delirante.

Após as árias italianas, vinham os duêtos com a mulher, tercêtos em que entrava a filha, e até quartêtos e concertantes de óperas monumentaes, porque êle fazia simultaneamente de tenor, baixo profundo e... soprano ligeiro!

Era interessantissimo e divertiam-me imenso aqueles originaes concertos!

Entretanto, numa das lojas do predio fronteiro, numa baiúca muito negra o sordida, tendo apenas uma porta e uma janela quasi rente do chão, morava o meu visinho, o sr. Custodio, por alcunha o mestre Escangalha, porque concertava toda a especie do cousas, e as más linguas diziam que tndo ficava, depois de concertado, em peior estado que aquelo em que lh'o tinham entregado.

Mas o sr. Custodio, apezar d'isso, levava o ano inteiro no sen pardieiro, em mangas de camisa, sentado ao pé da janela, trabalhando naqueles objectos informes, d'uma diversidade infinita, em que êle remexia continuamente, uo pavor d'aquele buraco de janela, onde só se distinguia nitidamente a sua camisa clara.

Tinha no entanto os seus dias de filosofia, em que assobiava monotonamente desde manhã até à noite, e os seus dias de azar, como êle lhes chamava, em que resmungava, como endemoninliado, durante horas consecutivas.

Nesse dia, o meu visinho não estava contente. De cotovelos encostados ao buraco da negra baiúca, os oculos subidos para a testa, olhava enraivecido para as moedas de cobre que a mulher do Gaspar levantava do chão e guardava na engordurada escarcela.

Quando, per fim, o trio se afastou, êle, desabafando o rancor contido, ao reparar na filha que estava à porta (uma pequena de 6 anos, com uma grande cabeça envolta num lenço de chita de côr duvidosa, cabeça de mulher assente num corpito microscopico e enfezado) e como ela ainda se conservasse espantada, extasiada talvez, pelo espectaculo raro que acabava de presenciar, na morta rua da Gloria, bradou-lhe enfurecido:

— Ó rapariga! Safa d'ahi! Vae ajudar a mãe, grande ralaça! Apegou-se-te a molestia da mandrice? pouca vergonha!... — e gesticulava — Lembrar-se a gente que está aqui um homem a trabalhar todo o ano, para sustentar esta malta!... e aquele maroto!... aquele velháco, então, só com duas piadas, a ganhar como um principe!...

E olhava em volta a procurar partido, mas as janelas iam-se fechando e os garotos afastavam-se ás cambalhotas, numa odiosa indiferença.

Então, o sr. Custodio sentava-se e recomeçava o seu complicado trabalho.

Com um suspiro mal abafado e um filosofico encolher d'hombros, murmurava:

— Ai mundo, mundo!

Ao longe ouvia-se a voz rouquenha do trovador das ruas, sulcada pelos guinchos desoladores da pobre tisica que o acompanhava. Seguiam, no seu fadario, os principes da miseria!

Pobre Gaspar! Aqui te deixo esta recordação, que te devo pela franca alegria que, na inconsciencia da minha infancia, me proporcionava sempre a tua lira desvairada, nesses concertos tragi-comicos, cuja evocação, ainda hoje, me traz a saudade dos tempos que não voltam mais!...

 
III
 

Uma noite, era bastante tarde, estava en no Café Martinho tomando chá. Entrou a Cotovia e ofereceu-me uma cautela de seis vintens. Por engano dei-lhe 200 réis em prata e mais um vintem.

Ela tacteou a moeda de prata, depois, chegando-a muito proxima dos seus ollos fatigados, veio apresentar m'a dizendo:

— A senhora enganon-se; isto são dois tostões.

— Guarde-os, tiasinha; devo-os á sua honradez.

— Agora sim — respondeu ela, sorrindo satisfeita — muito obrigada.

Como as velhinhas são em geral gulosas como as creanças, dei-lhe uns bolos; não os comeu. Pediu um papel, enrolando-os com todo o cuidado e levou-os. Talvez para algum bisneto.

Fiquei a scismar na grande probidade d'aquela mulher.

Não custa nada a ser honrado quando ha que comer; mas ela, que por ali andava com um seculo ás costas, a deshoras, numa noite frigidissima de dezembro, privada do conforto da sua caminha, só para ganhar uns tantos réis, vir restituir o tostão, que não ganharia talvez na noite inteira, ela, que tinha muito mais edade que a necessaria para que as ilusões todas desfeitas tivessem cedido o logar a todos os egoismos, amontoados pelas necessidades e pela desgraça, cometia um acto verdadeiramente belo e comovente!

Que lindas e peregrinas almas por esse mundo não erram desconhecidas!

 
IV
 

Desapareceu um dia. Levaram-na para o hospital.

Ali, com a meiga cabecinha enterrada na almofada, cuja brancura se confundia com a alvura dos seus cabelos, esperava docemente resignada a hora de transpôr os humbraes da Eternidade.

Pela calada da noite, quando as doentes dormiam, ou arquejavam em augustiosos sofrimentos, elevava-se uma vozita fraca e melancolica, como a voz d'uma creauça meio adormecida.

A macrobia cantava.

As enfermas soerguiam-se nos seus leitos e murmuravam:

— Lá canta a cotovia... amanhã devo estar melhor. Quando ela canta é bom prenuncio.

E o somno era mais tranquilo, embalado pela esperança que aquela debil musica lhes trazia, como uma caricia confortadora, como uma prece que se evola até Deus.

E quando ela cantava, escusavam as enfermeiras de a mandar calar.

Não as ouvia.

Um sorriso na comissura dos labios, um lampejo contemplativo no olhar, e as trovas, os cantos populares, as baladas melancolicas, todo um passado de sonhos, todo um seculo de recordações perpassavam em melodias suaves, que se extinguiam, perdidas no silencio das tétricas noites do hospital.

Uma vez pôz-se a rir, murmurando:

— Schiu! deixem ouvir o Gaspar!

E entre frouxos de risos, muito miudinhos, muito subtis, cantarolava:

Quando os porcos todos bailam.
anunciam muita chuva...

As doentes sorriam. Uma rapariguinha, muito pálida, que estava no leito proximo, sentou-se na cama e com uma expressão alegre esperava anciosa pelo resto. Mas ela calou-se. A rapariga então chamava:

— Ó Cotovia! — e pedia, muito empenhada: — Cante mais, ande, cante! a gente está aqui tão aborrecida!

Mas isso sim! Ela ouvia-a lá! Com as mãos cruzadas no peito, olhos meio cerrados, por onde pairaria aquele espirito vacilante! Quem o sabe!

 
V
 

Uma noite ouviram-na chorar muito de mansinho; chorava como cantava. Tudo era doce e brando naquela creaturinha. Nessa doce figura angelica de santa, tudo era brando e suave.

As doentes sobresaltaram-se. Não era costume.

Porque chorava a Cotovia?

Uma onda do tristeza carregou mais aquela atmosfera feita de suspiros e dores.

— Mau presagio — diziam elas — se alguma de nós vae morrer!

E eram suspiros abafados, lagrimas silenciosas enxngadas nas dobras dos lençoes, saudades que atravessavam os corações na triste visão das despedidas eternas... todo um drama de máguas desconhecidas, desenrolando-se na pungente desolação do abandono!

E nenhuma ousava interromper aquele choro, a não ser com algum ai de dôr, ou algum gemido mal sufocado.

Mas como se adivinhasse o mal que involuntariamente causava, a pobre Cotovia deixou de chorar e d'ahi a ponco a sua vozinha debil entoava novamente a toada predilecta, uma melopeia embaladora, como se adormecesse uma creança, que ha muito deveria ter existido, quero sabe? morta já, ou encanecida tambem!...

E as pobres enfermas, ouvindo as modulações da voz da Cotovia, sentiam como que uma dôr de menos, no alivio do presentimento, que antes as oprimia, e agora, com o canto d'ela, se desfazia.

Mas essa voz era tão fraca naquela noite, que só o grande silencio da vasta enfermaria lhes permitia ouvil-a.

Era uma vozita de sonho, e as notas foram esmorecendo tanto e tanto que se extinguiram, como num sôpro...

Sentiu-se então como que am roçar de azas que voam... Um frio glacial perpassou por esse vasto viveiro do sofrimento, quando o palido clarão da aurora envolveu a alva cabeça da Cotovia, que, imobilisada, dormia o seu ultimo e eterno somno...

Chegaram uns empregados.

E um exclamou:

— Olha! esta já pateou.

— Ah! foi a Cotovia — respondeu o outro — acabou-se a musicata: naturalmente está cantando no outro mundo.

Os passos afastaram-se.

Então a rapariguinha muito pálida, com o rosto inundado de lagrimas, murmurava, num soluço:

— Meu Deus, pobre Cotovia! Ainda ha pouco cantava, e agora...

Agora?... Uma existencia d'um seculo, diluida muma lagrima de saudade!...