A Dança do Destino/O Comunista
Arthur e Mario.
Dois futuros cidadãos em embrião.
Da mesma edade ambos, com pequena diferença. Para ahi uus onze anos cada um.
Arthur tinha ollos azues, Mario tinha os olhos castanhos.
Eram os olhos de Mario como os da mãe, uma excelente criatura, casada com um empregado do correio, homem de habitos sedentarios e sentimentos conservadores. Tão apegado a Deus como ao pé de meia, que bom proveito lhe faça, por isso que vai engrossando de ano para ano, graças à agiotagem para que nasceu com um geito especial.
O azul dos olhos de Arthur provem-lhe do pae, tipo com lume no olho, cobrador de associações revolucionarias e orador das ditas, em politica carbonaria e comunista.
As suas casas juntavam-se pelos quintáes, bipartidos por um muro baixo, por cima do qual se visitavam os dois pequenos para a brincadeira e para a conversa.
O pae de Mario dava um cavaco enorme com isso. Havia de mudar-se de casa, só para acabar aquela intimidade com o filho do comunista.
Cada vez que Mario ouvia esta ameaça, ficava triste e cabisbaixo, e nas paginas, brancas, do livro do seu destino marcava um dia infeliz.
Deixar de brincar com o Arthur! O que ficaria sendo então a sua vida?
O vacuo, as trevas, o implacavel nada... um horror!
Mas a mãe, que era uma santa, fazia sempre o milagre de desviar as paternas tempestades de cima da sua cabecita de cabelos louros, contrastando com os seus olhos castanhos.
E êle sorridente e feliz deitava a correr para o quintal, onde, num pronto, aparecia, acima do muro, a cabeça do Arthur emoldurada de cabelos negros, a contrastarem com o azul dos olhos.
Mario era feliz com aquela amizade pelo sentimento da sociabilidade, tão necessario à sua natureza afectiva para que a vida fosse uma alegria como o perfume é indispensavel à rosa para que ella seja, eternamente, a rainha das flores.
Arthur, pelo contrario, apreciava a amizade de Mario pelas utilidades inherentes e consequentes que lhe cahiam todos os dias na blusa, como uma chuva de dádivas, sob a forma de gulodices, que este apanhava á mão, ás escondidas da mãe, e de cigarros esquecidos pelo pae, com os quais os dois bregeiros ensaiavam o veneno da nicotina, escondidos num recanto do quintal, desvanecidos e enlevados nas espiráes cinzentas do fumo, que se azulava á luz radiosa do sol.
Um dia, era um domingo, Mario perguntou ao Arthur:
— Porque é que o meu pae chama comunista ao teu?
— Ora, porque é um idiota — respondeu aquele.
Foi um momento terrivel!
Mario teve a tragica vizão do dasabar da sua existencia, sentindo a imperiosa necessidade de esbofetear o amigo.
Arthur comprehendendo a inconveniencia e o perigo, a cessação das brincadeiras, dos cigarrinhos longamente saboreados, emendou logo a mão, rapidamente, e com uma naturalidade que desfez imediatamente a iminente tempestade:
— Comunista é o mesmo que idiota — explicou sorrindo, teu pae quer com isso chamar idiota ao meu.
Tudo isto teve apenas a duração de um relampago.
Mario nunca tivera curiosidade de saber a significação da palavra com que o pae designava o pae do amigo e contentou-se com a explicação d'este, achando talvez injusta, ou pelo menos ofensiva tal designação para o pae de Arthur.
De repente notou um movimento desusado em casa d'este, uma grande afluencia de visitas, muitos homens, algumas mulheres do povo, caras feias, pálidas, expressões duras, ritus de sofrimentos.
— Quem é que faz anos na tua casa? — perguntou.
Arthur poz-se a rir.
— Não são anos nenhums! E' meu pae que váe fazer um discurso, respondeu.
Mario guardou silencio, e poz-se a seguir, com o olhar vago, um pardal que saltava de ramo em ramo a folhagem escnra da nespereira que cobria, com uma mancha de sombra, o quintal do Arthur.
O seu espirito estava concentrado numa unica ideia. Um discurso !
E êle que nunca ouvira nenhum! Tinha agora, ali, un mesmo à mão!...
Era só saltar o muro e pronto.
Então, voltando se subitamente para o Arthur, numa ancia de curiosidade que lhe punha risos nos olhos e comoção na garganta, disse:
— Se fossemos ouvir?...
O outro encolheu os hombros, assumindo uma expressão cortante de ilusões:
— Isso sim! aquilo é só para os grandes.
Mario baixou a cabeça desalentado, murmurando:
— Que pena!
No semestre seguinte teve um grande desgosto: a familia do amigo mudava-se.
Quando chegou o dia fatal da separação, chorou muito, abraçado ao Arthur, que a cada momento se desenvincilhava d'êle, declarando-o piegas e massador.
Que diacho! êle não ia embarcar para o Brasil!
— Olhem a grande cousa, saltar apenas umas ruas!...
Demais Mario ia passar a frequentar a escola e era muito facil o verem-se sempre. Era só combinarem uma hora, à saida, para se encontrarem no jardim da Estrela e já poderiam brincar à vontade.
Êle resignou-se, e assim passou a fazer, quando alguns dias depois começou a ir ao colegio. Todos os dias, à volta para casa, se encontrava com o Arthur á porta do jardim da Estrela, onde entravam os dois, garotando o mais que podiam, para aproveitarem o tempo disponivel de Mario.
Uma vez, o Arthur disse lhe que não podia esperar no dia seguinte.
— Porquê? — perguntou Mario contrariado.
— Porque ha lá um discurso em casa, ― respondeu aquele.
— Outro discurso! — murmurou Mario pensativo.
— Olha, d'esta vez, se quizeres, podes ouvir, porque na casa nova ha lá um esconderijo d'onde podemos ver e ouvir tudo, sem darem por nós.
Êle exultou de contente. Combinaram a hora e o pretexto com que Mario havia de saír de casa — uma mentira, está bem de ver — e, no dia seguinte, lá estava Mario em casa do amigo.
Ao fundo de uma sala quadrada, mesmo á entrada, que servia de sala de visitas e de jantar, estava uma pequena mesa, bastante despolida pelo uso e pelas mudanças, que servia de secretária ao pae de Arthur, sobre a qual se via um copo cheio de agua na extremidade direita, e alguns papeis ao meio, seguros pelo pezo d'uma campainha.
Em frente, tres duzias de pessoas, de todas as edades, sentadas em bancos de pinho, e por detraz da bancaria, um esconso que servia para arrecadações, tapado com um reposteiro de chita encarnada.
Foi ahi que os dois rapazes se esconderam.
Num dado momento, a campainha soou, anunciativa, impondo silencio.
As conversas cessaram, todos os olhares se dirigiram para a meza, e Mario e Arthur, cada um de seu lado, espreitando pelas aberturas formadas pela estreiteza da cortina, puderam observar tudo, sem serem notados nem presentidos.
O pae de Arthur, de pé, em atitude soléne, as mãos ambas espalmadas sobre a meza, pesando com o olhar, baixo e profundo, a alma do pequeno auditorio, soltou as primeiras palavras do seu discurso, com voz cava e rouca, quasi tétrica:
— Lá fóra o sol ilumina a terra, e a sua luz cobre, por igual, todos os homens. Todavia, nós estamos mergulhados na sombra, a nossa vida decorre em trevas perpetuas, porque, gente má e pérfida, nos rouba o nosso quinhão de sol, o nosso quinhão de luz, o nosso direito à vida. Éles disseram: isto é nosso, fiquem vocês com o resto: e o resto era nada! Uma mentira, uma burla, uma infamia! E nós ficamos sem cousa alguma, e êles ficaram com tudo; êles têm sobejos, nós só temos faltas; para êles todos os confortos, todos os prazeres, todas as alegrias; para nós só as dores, só a miseria, só as lagrimas!...
Isto póde ser? Não! O mundo é de todos, todos teem direito á vida. Portanto não ha meu nem teu: tudo é nosso.
Pela assistencia passou um frémito de comovido enthusiasmo; as palmas rebentaram freneticas, pavorosas, e na sua retumbancia, chocavam-se gritos de aplauso emitidos em todos os tons.
Serenada a manifestação, o orador passou a explicar o que era o comunismo, as suas vantagens e a racionalidade d'esta teoria, a unica verdadeiramente social e humana, e que melhor correspondia ao pensamento creador do Universo.
A exposição foi lúcida, sugestiva, e fez crescer agua na boca dos ouvintes: mas quando êle foi verdadeiramente soberbo, foi na peroração. Ahi foi assombroso e terrivel.
— Era preciso resolver já, gritava de olhos esbogalhados. A hora não era para hesitações, nem delongas. Quem quizesse que o seguisse, quem fosse covarde e poltrão, que ficasse. O ideal estava além, em frente, bem perto, sugestivo e luminoso.
«Numa das mãos uma espada, na outra um facho, caminhemos, avancemos em coluna cerrada, formando um unico pelotão, unidos como um só homem, ferindo para todos os lados, incendiando, destruindo, aniquilando até não ficar pedra sobre pedra do velho e iniquo edificio social, para sobre os seus escombros levantarmos outro novo, feito de luz e de justiça, de alegrias e amor, sem deuses nem diabos, sem capitalistas nem indigentes, sem senhores nem escravos. Tudo novo, tudo claro, tudo limpo e tudo farto!»
O auditorio vibrava de comoção, a sua alma gemia sob o poder magnetico da eloquencia, as lagrimas humedeciam olhos tristes, quasi apagados inda ha pouco, e brilhantes agora, de olhar inflamado, com pupilas de lume.
O ar trezandava a revolução e benzina, respirava-se uma atmosfera de combates e roupa suja.
Pela vidraça da janela em frente, via-se sangue no horisonte, laivos vermelhos no ceu, feridas escancaradas nas nuvens, toda a atmosfera carregada de pavores, ameaças, visões tragicas de cataclismos.
Havia arrepios em todas as medúlas e torcegões de estomago, lembrando o jantar.
Um verdadeiro sucesso e um aperitivo.
A tarde tombava sobre a luz, lentamente, melancolica, quando os ouvintes dispersaram, despedindo-se admirativos do grande orador que lhes recebia os cumprimentos e felicitações, sorridente, glorioso e cheio de suor.
Os pequenos aproveitaram a confusão d'esse momento para saírem do esconderijo, fazendo as suas despedidas, na rua, à pressa porque já era tarde para Mario. Ele estava com medo que o pae já tivesse chegado e désse pela sua falta.
Arthur só teve tempo de lhe perguntar:
— Gostaste?
— Muito! — gritou Mario, deitando a correr.
O pae ainda não tinha chegado: Que fortuna! Mas não tardava que aparecesse: isto é que era sorte!
Nessa noite levou muito tempo, primeiro que conciliasse o somno.
Não via senão a pae de Arthur, de melenas desgrenhadas, braços estendidos, gesto nervoso, olhar chamejante e voz terrivel, arremessando-se para o vago, o desconhecido, de murro fechado, ameaçador, gritando:
— Bandidos, bandidos! Para aqui o que me roubastes! acabou o meu e o teu. O mundo é para todos, a terra é comum, o direito é igual: nada do que existe é teu, tudo o que está debaixo do sol é nosso, é de todos, é da comunidade.
Estas palavras não lhe saiam da lembrança, atordoavam-lhe os ouvidos como um tiro de canhão.
E poz-se a comparar. Aproximou situações conhecidas, tateou-lhes as superficies, porque não sabia ainda medir as profundidades, e reconheceu que o pae de Arthur tinha dito a verdade.
O seu instinto descobriu desegualdades odiosas, injustiças que faziam estremecer.
Só adormeceu pela noite adeante.
Quando no outro dia se levantou, ouviu o pae gritar entusiasmado, na sala do jantar, muito satisfeito, de jornal na mão:
— Ora até que emfim! Já era tempo. Eu bem dizia que aquêle cachorro era má bisca!... Quando êles pregam lindas teorias, vêm com a solidariedade humana, a moral social e a justiça inflexivel, é esperar-lhes pela pancada. Quando trazem todo um arsenal campanudo de gladios flamejantes para degolar erros e preconceitos, fazer triunfar a verdade e o direito, com letras grandes, é ouvir-lhes toda essa cantiga já muito estudada e sabida e compreender logo a conveniencia de abotoar bem o casaco e pedir ao primeiro policia que se encontra que nos acompanhe. — Então o que foi? inquiriu a mãe, com compassiva curiosidade, ao mesmo tempo que a criada estacava com a travessa dos bifes na mão, curiosa de saber o acontecimento.
— Ora, o que havia de ser! o que eu já suspeitava ha muito. O comunista foi preso hontem à noite, por ladrão. Uma das associações em que era empregado descobriu que êle a roubava ha muito tempo. Deu parte á policia e esta filou-o, hontem à noite, num botequim da baixa, onde êle se emborrachava de companhia com uma d'essas mulheres de vida airada, que era afinal quem lhe comia o dinheiro.
— Bem feito! — disse a creada, compondo uma expressão severa de moralista.
A ama meneou a cabeça, com tristeza, murmurando:
— Coitado!
E o pequeno Mario sentiu o coração contrair-se, numa grande angustia, lembrando-se do desgosto do pobre Arthur.
Nesse dia, nem nos seguintes, Mario não tornou a ver o amigo.
Passou-se muito tempo assim, mas êle não o esquecia.
Que seria feito do Arthur? Quanto devêra ter sofrido, e quanto choraria ainda, o pobre rapaz!...
A sua consciencia dizia-lhe que o pae tinha cometido uma má acção, que essa acção era condenavel; mas a sua inteligencia, o seu raciocinio, formado nos principios que lhe ouvira, dizia lhe que a má acção não existiria, não se teria dado, se o mundo estivesse direito, isto é, se a sociedade estivesse organisada como êle indicou no seu discurso, se não houvesse uns que tinham muito, que tinham de mais, ontros que tinham de menos; uns que tinham tudo e outros que não tinham nada.
Passados mezes, os dois amigos encontraram-se.
Mario ía radiante: Fazia anos nesse dia e o pae tinha lhe dado nma libra em oiro.
Arthur vinha cabisbaixo, soturno e desconfiado.
O primeiro teve um alvoroço, o segundo sentiu um retraimento; naquele atuava a alegria da saudade satisfeita, neste o constrangimento da vergonha e da inveja.
Mario compreendeu o primeiro, mas não suspeitou da segunda.
Arthur tinha as botas cambaias, o casaco rôto num dos cotovelos, os calções poídos e desbotados, a camisa e o colarinho sem gôma.
Mario olhou para si e viu-se bem vestido, trajado de novo, quasi um principe, comparado com o pobre amigo.
Não se poude conter perante este confronto e tamanha desegnaldade, que achou injusta, e cheio d'uma enorme piedade, muito expansivo e afétuoso, tirou do bolso a libra que o pae lhe havia dado e, entregando-lha, disse:
— Olha Arthur, nós havemos sempre de ser amigos. Como teu pae disse naquele discurso, entre nós nunca mais haverá, d'aqui em deante, nem meu nem teu: O que fôr d'um, será do outro. Que- res?
Arthur estendeu-lhe a mão, num gesto largo de franqueza e disse:
— Combinado! Tu serás o Um, o eu serei o Outro. E guardou a libra.
Em seguida despediu-se. Despedida eterna, ao que parece, porque Mario nunca mais o viu.
Quando, mais tarde, se viu obrigado a confessar ao pae o desastrado ensaio do seu comunismo, as palmatoadas retiniram-lhe nas mãos, que foi uma dôr d'alma!
Aos vinte anos, Mario estava mais agiota que o pae, e quando se lembrava da sua libra perdida, murmurava ainda, entre dentes:
— Mau negocio!... Bem dizia o velhaco! comunista, sinonimo de idiota. Minha rica libra!...