A Derradeira Injúria
E ainda, ninfas minhas, não bastava...
CAMÕES, Lusíadas, VII, 81.
I
Vês um féretro posto em solitária igreja?
Esse pó que descansa, e se esconde, e se some,
Traz de um grande ministro o formidável nome,
Que em vivas letras de ouro e lágrimas flameja.
Lá fora uma invasão esquálida braceja,
Como um mar de miséria e luto, que tem fome,
E novas praias busca e novas praias come,
Enquanto a multidão, recuando, peleja.
O gaulês que persegue, o bretão que defende,
Duas mãos de um destino implacável e oculto,
Vão sangrando a nação exausta que se rende;
Dentre os mortos da história um só único vulto
Não ressurge; um Pacheco, um Castro não atende;
E a cobiça recolhe os despojos do insulto.
II
Ora, na solitária igreja em que se há posto
O féretro, se alguém pudesse ouvir, ouvira
Uma voz cavernosa e repassada de ira,
De tristeza e desgosto.
Era uma voz sem rosto,
Um eco sem rumor, uma nota sem lira.
Como que o suspirar do cadáver disposto
A rejeitar o leito eterno em que dormira.
E ninguém, salvo tu, ó pálido, ó suave
Cristo, ninguém, exceto uns três ou quatro santos,
Envolvidos e sós, nos seus sombrios mantos,
Ninguém ouvia em toda aquela escura nave
Dessa voz tão severa, e tão triste, e tão grave,
Murmurados a medo, as cóleras e os prantos.
III
E dizia essa voz: — “Eis, Lusitânia, a espada
Que reluz, como o sol, e como o raio, lança
Sobre a atônita Europa a morte ensangüentada.
“Venceu tudo; ei-la aí que te fere e te alcança,
Que te rasga e te põe na cabeça prostrada
O terrível sinal das legiões de França.
“E, como se o furor, e, como se a ruína
Não bastassem a dar-te a pena grande e inteira,
Vem juntar-se outra dor à tua dor primeira,
E o que a espada começa a tristeza termina.
“És o campo funesto e rude em que se afina
Pugna estranha; não tens a glória derradeira,
De devolver farpada e vencida a bandeira,
E ser Xerxes embora, ao pé de Salamina.
IV
“No entanto, ao longe, ao longe uma comprida história
De batalhas e descobertas,
Um entrar de contínuo as portas da memória
Escancaradamente abertas,
“Enchia esta nação, que aprendera a vitória
Naquela crespa idade antiga,
Quando, em vez do repouso, era a lei da fadiga,
E a glória coroava a glória.
“E assim foi, palmo a palmo, e reduto a reduto,
Que um punhado de heróis, que um embrião de povo
Levantara este reino novo;
“E livre, independente, esse áspero produto
Da imensa forja pôde, achegando-se às plagas,
Fitar ao longe as longas vagas.
V
“Era escasso o torrão; por compensar-lhe a míngua,
Assim foi que dobraste aquele oculto cabo,
Não sabido de Plínio, ignorado de Estrabo,
E que Homero cantou em uma nova língua.
“Assim foi que pudeste haver África adusta,
Ásia, e esse futuro e desmedido império,
Que no fecundo chão do recente hemisfério
A semente brotou da tua raça augusta.
“Eis, Lusitânia, a obra. Os séculos que a viram
Emergir, com o sol dos mares, e a poliram,
Transmitem-lhe a memória aos séculos futuros.
“Hoje a terra de heróis sofre a planta inimiga...
Quem pudera mandar aqueles peitos duros!
Quem soubera empregar aquela força antiga!”
VI
E depois de um silêncio: — “Um dia, um dia, um dia
Houve em que nesta nobre e antiga monarquia,
Um homem, — paz lhe seja e a quantos lhe consomem
A sagrada memória, — houve um dia em que um homem
“Posto ao lado do rei e ao lado do perigo
Viu abater o chão; viu as pedras candentes
Ruírem; viu o mal das cousas e das gentes,
E um povo inteiro nu de pão, de luz e abrigo.
“Esse homem, ao fitar uma cidade em ossos,
Terror, dissolução, crime, fome, penúria,
Não se deixou cair coos últimos destroços.
“Opôs a força à força, opôs a pena à injúria,
Restituiu ao povo a perdida hombridade,
E donde era uma ruína ergueu uma cidade.
VII
“Esse homem eras tu, ó alma que repousas
Da cobiça, da glória e da ambição do mando,
Eras tu, que um destino, e propício, e nefando,
Ao fastígio elevou dos homens e das cousas.
“Eras tu que da sede ingrata de ministro
Fizeste um sólio ao pé do sólio; tu, sinistro
Ao passado, tu novo obreiro, áspero e duro,
Que traçavas no chão a planta do futuro.
“Tu querias fazer da história uma só massa
Nas tuas fortes mãos, tenazes como a vida,
A massa obediente e nua.
“A luminosa efígie tua
Quiseste dar-lhe, como à brônzea estátua erguida,
Que o século corteja, inda assustado, e passa.
VIII
“Contra aquele edifício velho
Da nobreza, — elevado ao lado do edifício
Da monarquia e do evangelho, —
Tu puseste a reforma e puseste o suplício.
“Querias destruir o vício
Que a teus olhos roía essa fábrica enorme,
E começaste o duro ofício
Contra o que era caduco, e contra o que era informe.
“Não te fez recuar nesse áspero duelo
Nem dos anos a flor, nem dos anos o gelo,
Nem dos olhos das mães as lágrimas sagradas.
“Nada; nem o negror austero da batina,
Nem as débeis feições da graça feminina
Pela veneração e pelo amor choradas.
IX
“Ah! se por um prodígio especial da sorte,
Pudesses emergir das entranhas da morte,
Cheio daquela antiga e fera gravidade,
Com que salvaste uma cidade;
“Quem sabe? Não houvera em tão longa campanha
Ensangüentado o chão do luso a planta estranha,
Nem correra a nação tal dor e tais perigos
Às mãos de amigos e inimigos.
“Tu serias o mesmo aspérrimo e impassível
Que viu, sem desmaiar, o conflito terrível
Da natureza escura e da escura alma humana;
“Que levantando ao céu a fronte soberana,
— “Eis o homem!” disseste, — e a garra do destino
Indelével te pôs o seu sinal divino”.
X
E, soltado esse lamento
Ao pé do grande moimento,
Calou-se a voz, dolorida
De indignação.
Nenhum outro som de vida
Naquela igreja escondida...
Era uma pausa, um momento
De solidão.
E continuavam fora
A morte, dona e senhora
Da multidão;
E devastava a batalha,
Como o temporal que espalha
Folhas ao chão.
XI
E essa voz era a tua, ó triste e solitário
Espírito! eras tu, forte outrora e vibrante,
Que pousavas agora, — apenas cintilante, —
Sobre o féretro, como a luz de um lampadário.
Era tua essa voz do asilo mortuário,
Essa voz que esquecia o ódio triunfante
Contra o que havia feito a tua mão possante,
E a inveja que te deu o pontual salário.
E contigo falava uma nação inteira,
E gemia com ela a história, não a história
Que bajula ou destrói, que morde ou santifica.
Não; mas a história pura, austera, verdadeira,
Que de uma vida errada a parte que lhe fica
De glória, não esconde às ovações da glória.
XII
E, tendo emudecido essa garganta morta,
O silêncio voltara àquela nave escura,
Quando subitamente abre-se a velha porta,
E penetra na igreja uma estranha figura.
Depois outra, e mais outra, e mais três, e mais quatro.
E todas, estendendo os braços, vão abrindo
As trevas, costeando os muros, e seguindo
Como a conspiração nas tábuas de um teatro.
E param juntamente em derredor do leito
Último em que descansa esse único despojo
De uma vida, que foi uma longa batalha.
E enquanto um fere a luz que as tênebras espalha,
Outro, com gesto firme e firmíssimo arrojo,
Toma nas cruas mãos aquele rei desfeito.
XIII
Então... O homem que viu arrancarem-lhe aos braços
Poder, glória, ambição, tudo o que amado havia;
Esse que foi o sol de um século, que um dia,
Um só dia bastou para fazer pedaços;
Que, se aos ombros atara uma púrpura nova,
Viu, farrapo a farrapo, arrancarem-lha aos ombros;
Que padecera em vida os últimos assombros,
Tinha ainda na morte uma última prova.
Era a brutal rapina, anônima, noturna,
Era a mão casual, que espedaçava a urna
A troco de um galão, a troco de uma espada;
Que, depois de tomar-lhe esses sinais funestos
Da sombra de um poder, pegou dos tristes restos,
Ossos só, e espalhou pela nave sagrada.
XIV
Assim pois, nada falta à glória deste mundo,
Nem a perseguição repleta de ódio e sanha,
Nem a fértil inveja, a lívida campanha,
De tudo o que radia e tudo que é profundo.
Nada falta ao poder, quando o poder acaba;
Nada; nem a calúnia, o escárnio, a injúria, a intriga,
E, por triste coroa à merencória liga,
A ingratidão que esquece e a ingratidão que baba.
Faltava a violação do último sono eterno,
Não para saciar um ódio insaciável,
Insaciável como os círculos do inferno.
E deram-ta; eis-te aí, ó grande invulnerável,
Eis-te ossada sem nome, esparsa e miserável,
Sobre um pouco de chão do ninho teu paterno.