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A Esperança Vol. I/Maria Isabel/VI

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VI
Abrigo pobre, mas seguro

Um mez depois estava Maria Isabel e sua mãe trabalhando no ultimo andar d'uma casa na rua Escura. Este andar era uma especie d'aguas-furtadas, ou torrinhas muito velhas e deslavradas. Para chegar lá subia-se escada ingreme e estreita. Toda a morada consistia n'um quarto grande, onde trabalhavam as duas senhoras, um quarto ainda mais pequeno e uma casinha microscopica. Ainda assim tinha este andar algumas vantagens sobre os inferiores. Era muito mais alegre e arejado, e o seu aluguer era mais pequeno.

D. Maria Carlota tinha sahido do seu estado de desesperação, para ficar n'uma profunda hipocondria.

Sua filha se exforçava em balde por fazel-a participar da resignação e conformidade de que gosava.

A mocidade é toda vida e esperança, quando mesmo a existencia seja colmiada de tristezas e não se saiba o que se possa esperar.

Ainda não eram oito horas da manhã e já tinham almoçado um bocado de pão de sêmea com uma beberagem chamada café. Estava defronte d'ellas, em pé, com capa e lenço, Carolina, a dona do pobre albergue. Era alta, secca e tez morêna. Tinha modo sacodido e voz aspera. Fallava com certa arrogancia e doutorice ridicula. A vaidade era o primeiro de seus defeitos, ou antes o orgulho quasi soberba. Tinha vaidade de ter sido sempre mulher honrada, de ter uma casa de dois quartos e cosinha, com alguns trastes que foram do seu pae; em trabalhar muito, em ter muita saude; e mais que tudo em ter um filho muito bom moço, e muito seu amante, que fazia viagens de marinheiro, e lhe pagava o aluguer da casa, e outras muitas coisas. Mas ainda que doida por este filho, ralhava-lhe quasi sempre, e só lhe mostrava affeição na chegada e na partida.

A convivencia com esta mulher não podia ser agradavel a duas senhoras delicadas e carinhosas; mas não tiveram em que optar. Carolina foi a unica que lhes offereceu a sua casa no dia da desgraça. A deshonrosa e fraudulenta quebra de Ricardo d'Oliveira era um motive decente para affastaar da familia d'elle suas muitas relações.

― Cá se arranjarão como poderem, disse ella com o seu modo doutoral; ainda lhes ficam algumas batatas, das que lhes trouxeram de sua casa, e um pouco d'arroz.

― Sim, senhora Carolina, respondeu Maria Isabel. Como o jantar é só para mim e minha mãe fal-o-hei depressa. Mas minha mãe come tão pouco....

― Cômo bastante, minha filha.

― E' preciso comer, senhora D. Maria Carlota, e deitara para traz das costa paixões. Senhora D. Maria Isabel, está no prateleiro um bocado de sabão para lavar as mãos. Custa-me a ir para fóra porque v. s.a não está acostumada com esas coisas; mas não tenho remedio. Muitas senhoras se esganam por um vintem; não gostam de dar obra para fóra, porque querem que as criadas ajudem a coser, para lhes ficar mais barato.

― Fazem muito bem... tornou D. Maria Carlota, não terão nunca remorsos de terem gasto mal os dinheiros da casa.

― Historias! Poupam o farello e deitam ao mar a farinha. Regateiam-me o meu trabalho, tão mourijado e suado, e paga á grande ás costureiras francezas, que não são capazes de dar o ponto mais miudo do que eu. Mas faz-se tarde. Adeus, minhas senhoras. Até á noite.

Carolina sahiu com o seu ar de importancia, e vaidade satisfeita.

A esposa de Ricardo d'Oliveira suspirou profundamente. Sua filha, que lhe leu no pensamento, disse:

― O exterior d'esta mulher não dá a conhecer quanto ella é boa e compassiva.

D. Maria Carlota tornou a suspirar. A donzella exforçou-se em provar-lhe que estavam o melhor que podiam estar nas actuaes circumstancias, e que deviam desculpar as maneiras da sua hospedeira, e soffrer-lhe as suas imperfeições. Concordava a mãe em tudo, sem deixar de suspirar.

Ouviu-se algum ruido nas escadas, mas, como os visinhos eram muitos, não deram importancia a isso. Carolina deixára a porta cerrada. Abriu-se, e appareceu á porta um moço de vestia larga e chapeu d'encerado nas mãos; e com modos de franca cordealidade, e voz um tanto rude, gritou:

― Deus lhes dê muitos bons dias. Dão licença?

― A snr.a Carolina, disse a donzella, não está cá e não vem senão á noite.

― Já m'o disse o visinho lá debaixo do porão; mas tambem me disse, que ella tinha mettido gente no seu chavéco, o que muito estima cá a pessoa. A snr.a mãe está velha, e não estava bem a viver só como um eremitão. Eu quiz vêr as snr.as, mas já vejo que não são cá da nossa egualha, e que se hão-de dar mal aqui; e tenho pena, pois como lhes ia dizendo, gostava que a snr.a mãe tivesse quem lhe deitasse um cabo alguma noite de borrasca, em que se visse a dar á costa.

― Então é o snr. Francisco?...

― Para a servir.

― Acha a sua casa occupada, disse D. Maria Carlota, mas nós desoccuparemos o seu quarto...

― O meu quarto é na barca Carolina. Deixem-se as snr.as estar a seu commodo. Se dão licença assento-me... Corri da Ribeira até cá riba para abraçar a snr.a mãe: não posso faltar muito tempo. Vim com um recado do capitão, e aproveitei a maré.

― A snr.a Carolina, tornou Maria Isabel, ficará bem zangada de não estar em casa.

― Ella tamem escusava d'andar sempre a rabiar lá por fóra, agora que tem boa companhoa cá em casa. Está ainda muito rabuja e ralhadora?

Ouviram-se vozes na escada, e entre ellas, a de Carolina, que subia, respondendo aos visinhos que lhe sahiam ao encontro; uns para lhe noticiarem a vinda de seu filho, a que ella respondia:

― Já sei!.. já sei!

Outros para perguntarem o que era, e ella lhes gritava:

― Chegou o meu Francisco.

O marinheiro foi á porta que dava para as escadas, e bradou:

― Olá, snr.a mãe! Olhe lá como sóbe a enxarcia da gavia d'esta velha náo. Se desapruma dá com o costado no fundo.