A Esperança Vol. I/Maria Isabel/VIII

Wikisource, a biblioteca livre

VIII

O noticiador officioso

N'esse mesmo dia, ao fim da tarde, passava Maximino pelos Lois, onde estavam muitos homens conversando, como é costume áquella hora. D'um dos grupos se destacou um mancebo, e foi ao filho de Custodio da Cunha, que não pensava em deter-se por alli como ás vezes fazia , tão absorvido andava em pensamentos tristes. O mancebo que se acercára fel'o deter, dizendo:

― Aonde vaes com tanta pressa? Trazes negocios entre mãos? Alguns negocios amorosos, heim?.. A morenita dos Clerigos ainda te traz á trella? Olha que é uma namoradeira da gèma. Desconfia d'ella. Tu és ainda muito novato n'estas coisas, e corres risco de comprometter o coração. Coisa que te aconselho guardes só para teu uso. E' uma viscera sem a qual não se póde viver.

― Não corre perigo o meu coração com nenhuma morena, respondeu Maximino sorrindo.

― E com alvas, [sem ser alvas de padres] com alguma loura?

― Tambem não, Alfredo. Agora não tenho amores.

― Estás em disponibilidade? Tambem é mau isso. E' quando andas mais arriscado. Fallemos, porém, em coisas mais sérias ― em negocios de dinheiro: a móla real da machina da sociedade.

― Na nossa idade é coisa que brada aos céos! e nunca te conheci genio interesseiro.

― Não é de mim que se trata, Maximino, é do teu pae que está na idade de pensar em dinheiro, porque tem uma familia a sustentar. O desinteresse e despreso pelo metal que dá as coisas precisas para a vida, é para nós, que temos quem nos dê tudo o que precisarmos; e mais confesso que não tenho tudo quanto preciso, ao menos quanto queria.

― Mas que me queres dizer a respeito de meu pae?

― Acabo de saber por um modo singular que elle não perdeu todo o dinheiro que Ricardo d'Oliveira lhe roubou. Morreu afogado e o seu corpo foi achado com grandes valores. Um marinheiro, meu visinho, póde dar informações mais amplas. Hoje de manhã sahia eu para ir á escóla e apparece-me o dito marinheiro, muito assodado, pedindo-me que fosse a sua casa vêr uma senhora que estava mal e precisava ser sangrada. PEnsei que estava lá aogum medico que requeria a minha lanceta, e fui. Chemin faisant me foi contando a historia do afogado...

― Então essa pobre senhora era a esposa de Ricardo d'Oliveira?

― Nem mais.

― E está em perigo?

― Parece-me que sim. Fiz chamar medico. Não podia receitar-lhe, nem queria chamar sobre mim a responsabilidade. Appliquei-lhe só alguns remedios que qualquer curandeira lhe applicaria. A mãe do marujo queria por força que eu a sangrasse. Desenvolvia uma sciencia medica muito doutoral, e muito parecida com a do doutor Sangrado; só em vez d'agua morna queria chá de cidreira; e eu n'isso concordei. Rir-me-hia muito, se me não entristecesse o estado da enferma e a afflicção da filha.

― Desgraçadas senhoras!..

― Parece que a minha historia te commoveu excessivamente! Não me julgava tão bom historiador, porque não invento romance, narro a coisa o mais simples e despoeticamente possivel. Era coisa tristissima aquella scena. Um bom romancista podia, com a sua exposição, arrancar lagrimas aos mais impedernidos.

― Infelizes!.. E estão na miseria?

― Pouco menos, pelo que vi. Quem as hospéda é o marujo e a mãe, a doutora que receitava a sangria; mas não é gente que possa ter grandes cabedaes; e a doença, se não fôr mortal, te de ser muito demorada. O marujo foi logo chamar medico, e não confessa fraqueza; mas é provavel que tenha mais boa vontade, do que meios de tratar da doente e de sustentar a filha.

― Que vergonha para nós!.. Esse pobre homem vai arriscar a vida sobre o mar, e gasta o fructo dos seus trabalhos arriscados a soccorrer essas pobres senhoras, e nós gastamos em divertimentos frívolos, quando não são peior que isso, o dinheiro que nossos paes nos dão! Que pena tenho d'algum que tenho malbaratado!..

― Tornas-te missionario, Maximino!..., Sempre te vi bossa para isso!.. Mas pódes guardar a tua prédica para teu gasto. A minha bolsa não anda nunca rechiada como a tua; e agora está quasi tysica.

Maximino podia dizer outro tanto da sua. Tinham seus paes deixado ha tempos de a proverem.

― Adeus, Alfredo, disse elle triste; até ámanhã.

― Parece, ficou pensando Alfredo, que aqui ha mais ou menos... Conheceria Maximino a filha de Ricardo d'Oliveira?

Maximino corria a casa para desafogar no coração de sua mãe a magoa que lhe causava a desgraça da viuva de Ricardo d'Oliveira, e para lhe pedir algum dinheiro. De Maria Isabel não fallaria, ainda que ella o occupava muito mais ainda que D. Maria Carlota.

Alfredo não limitou as suas expansões ao dialogo com o amigo. Estava soberbo por ter sido já chamado como facultativo, e por saber uma novidade que todos deviam ignorar. Ha homens que tem as qualidades attribuidas só ás mulheres ― a curiosidade, e a ambição de annunciarem aquillo que souberam. Alfredo era d'estes; o que não tirava de ser um bom moço, e bastante sensato.

Avistou Amaral, que sahia d'um magote de conhecidos. Foi ao seu encontro.

― V. exc.a, disse elle, não era credor de Ricardo d'Oliveira?

― Tive essa felicidade, snr. Alfredo. De certo não m'a inveja.

― Olá se invejo! Se o fosse é porque tinha que emprestar. E não perderá tudo, snr. Amaral; Ricardo d'Oliveira fez a tolice de se afogar, e o seu corpo appareceu nas praias d'Angra, penso eu, envolvido em oiro e prata; ou ao menos com as botas, bolsos e sinto rechiados d'essas riquezas.

― Já sabiamos isso; mas os credores são muitos, e as riquezas apparecidas não são tantas como se diz. Pouco nos indemnisará esse achado. Mas estou admirado de lhe ter já chegado isso! Pensava que no hospital se não estudava a historia dos naufragios.

Alfredo, que não desejava outra coisa senão contar o que lhe havia acontecido, passou a narrar o que lhe succedêra aquella manhã, Amaral ouviu-o com attenção, o que muito o lisonjeou, e fez-lhe depois algumas perguntas a respeito do marinheiro, e da casa em que morava; depois concluiu:

― E' situação triste a d'essas senhoras, não ha duvida, mas estão espiando seus erros de desperdicios doidos. O pardal não deve vôar alto como a aguia. Quem gasta mais do que tem, diz um dos nossos velhos rifões, a pedir vem. Adeus, snr. Alfredo.

O mancebo olhou, parado, para Amaral, emquanto o avistou, e murmurando:

― Ora ahi está como são as coisas!., O marinheiro meu visinho, eu, e Maximino. queremos alliviar as desgraças d'aquellas infelizes senhoras, e não podemos. Este podia e não quer!