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A Falência/V

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Noca foi ao quarto de Mário, avisá-lo que a mãe lhe queria falar.

— Você sabe pra que é? perguntou-lhe o moço.

— Desconfio; há de ser por causa da tal francesa... Parece que ainda foi outro dia que você nasceu, e já anda por aí na extravagância!

— Vai pregar a outra freguesia.

— Verdade, verdade, seu pai tem razão...

— Eu logo vi que o sermão havia de vir empurrado por papai, disse Mário com ironia, dando o último retoque à toilette. Nisso abriram a porta, ele voltou-se; era a mãe.

Noca deu uma volta pelo quarto, puxou as cobertas da cama até os travesseiros, sacudiu com a toalha o estofo da poltrona, escancarou a janela e saiu, deixando uma ponta de ordem no desalinho do quarto.

— Eu ia subir; Noca veio chamar-me agora mesmo.

— Achei melhor falarmos aqui. Não seremos interrompidos.

— Como quiser. Sente-se, mamãe.

Camila sentou-se e fixou no filho um olhar magoado. Ele, pegando-lhe nas mãos, perguntou-lhe com um sorriso contrafeito:

— Então?

— Estás nos dando sérios desgostos, Mário.

— Eu?

— Sim; bem sabes de que se trata.

— Calculo; mas, francamente, não vejo razão para tamanho alvoroço...

— As tuas faltas são muito repetidas. Não te emendas!

— As minhas faltas são tributos da mocidade, fáceis de perdoar.

— Enganas-te.

Mário largou as mãos da mãe e tornou-se muito sério.

— Então não compreendo.

— Compreendes. Falo... falo dessa mulher com quem andas agora... dizem todos que ela arruinará a tua saúde e a nossa fortuna...

— Oh! mamãe...

— Não é criatura por quem um rapaz da tua idade se apaixone. Eu quando a encontro na rua nem sei onde ponho os pés.

Mário corou, e murmurou qualquer coisa que a mãe não ouviu.

— Receio sempre ver-te aparecer a seu lado; porque eu sei que tens tido a coragem de te apresentar em público com ela. Vê a que horror expões tua família, já não digo teu pai, que é um santo, mas que enfim, é homem; mas a tua irmã e a mim. É feio da tua parte sujeitar-nos a uma decepção dessa ordem...

Mário mordia os beiços, brancos de raiva.

— Mamãe...

— Não me interrompas; já agora direi tudo. É preciso acabar com a exploração daquela mulher, Deixa-a quanto antes, hoje mesmo, ouviste? Teu pai exige isso de ti, ele sabe que por causa dela tens cometido já indignidades. É uma vergonha, todos os dias são dívidas e mais dívidas!

Mário continha a custo a sua cólera, apertando com as mãos, nervosamente, as costas de uma cadeira.

— Põe os olhos em teu pai. Segue-lhe o exemplo.

Mário sorriu com desdém.

— Meu pai está velho; já não se lembra do que fez na mocidade.

— Bem sabes que ele nunca teve mocidade; trabalhou sempre como um animal.

— Os portugueses nasceram só para isso; eu tenho outros gostos e outras aspirações. Meu pai não me compreende.

— Mas o dinheiro que esbanjas de quem é?!

— Ah, o dinheiro! logo vi que havia de ser por causa do dinheiro! disse ele com redobrado escárnio.

— Por isso e por outras coisas; exclamou Camila, espicaçada pela ironia do filho.

— Mas que outras coisas, mamãe!? retrucou ele, plantando-se diante dela, com raiva.

— Já te disse, já te disse! não te finjas de surdo! Por causa da tua saúde, que é fraca, e da tua reputação.

— Reputação! ora, mamãe, e é a senhora quem me fala nisso!

Camila estacou, sem atinar com uma resposta, compreendendo o alcance das palavras do filho. A surpresa paralisou-lhe a língua; o sangue arrefeceu-se-lhe nas veias; mas, de repente, a reação sacudiu-a e então, num desatino, ferida no coração, ela achou para o Mário admoestações mais ásperas. Percebia que a língua dizia mais que a sua vontade; mas não podia contê-la. A dor atirava-a para diante, contra àquele filho, até então poupado.

Recebendo em cheio a cólera materna, Mário julgou perceber nela insinuações de outrem. Havia de andar por ali a intervenção danada do dr. Gervásio. Quando Camila acabou de falar, ele começou, destacando as palavras, que saíam pesadas:

— A senhora pode censurar-me em nome de meu pai, visto que ele não teve coragem para tanto.; mas em seu nome, não!

— Mário!

— Em seu nome, não! Quem me lançou neste caminho e me fez ter os gostos que eu tenho?

— O excesso do meu amor por ti está bem castigado!... Mas não é isso agora que desespera teu pai...

— Meu pai é cego para as culpas dos outros; por que não será também cego para as do filho? A pessoa que tanto o indigna é menos nociva à família que...

— Basta!

— Não basta; a senhora assim o quis; conhece o meu gênio., podia ter evitado esta explicação. Talvez seja melhor assim; afinal eu precisava dizer-lhe alguma coisa, eu também. E isto: - odeio o dr. Gervásio, e dou-lhe a escolher entre mim e ele.

Camila fixou no filho olhos de espanto.

Houve um largo silêncio. Depois ele repetiu, martelando as palavras:

— Ou ele ou eu.

A mãe, com uma lividez de morta, não voltava da sua estupefação. Todo o corpo lhe tremia, e lágrimas vieram pouco a pouco borbulhando, grossas e pesadas, nos seus olhos estáticos. Tentou defender-se, chamar de calúnia aquela idéia; mas as palavras morreram-lhe na garganta, e ela encolheu-se na poltrona, cingindo os braços ao busto, como se tentasse esmagar o coração ofendido.

Mário caminhou nervosamente pelo quarto; depois, voltando-se para a mãe, ia falar ainda, mas viu-a de aspecto tão miserável, que uma súbita misericórdia se apoderou dele.

Ela chorava, muito encolhida, fazendo-se pequenina, no desejo de desaparecer.

— Perdoe-me, mamãe; mas que queria que eu dissesse!!

Camila levantou para o filho os olhos humilhados, e murmurou quase imperceptivelmente:

— Nada...

Mário recomeçou a passear, com as mãos nos bolsos, a cabeça baixa. Camila, ainda na poltrona, com as costas para a janela, os cotovelos fincados nos joelhos e o queixo nas mãos, procurava uma palavra com que pudesse convencer o filho da sua inocência. Tudo lhe parecia preferível àquela humilhação. Daria a luz dos seus olhos, - ah, antes ela fosse cega! para que Mário a julgasse pura, muito digna de todo o respeito das filhas, muito honesta, toda de seu marido e das suas crianças.. Compreendia bem que o sentimento e a imaginação nas mulheres só servem para a dor. Colhem rosas as insensíveis, que vivem eternamente na doce paz; para as outras há pedras, duras como aquelas palavras do seu filho adorado. Antes ela fora surda: não as teria ouvido!

Quantas vezes o marido teria beijado outras mulheres, amado outros corpos... e aí estava como dele só se dizia bem! Ele amara outras pela volúpia, pelo pecado, pelo crime; ela só se desviara para um homem, depois de lutas redentoras; e porque fora arrastada nessa fascinação, e porque não sabia esconder a sua ventura, aí estava boca do filho a dizer-lhe amarguras...

Lia e Rachel corriam no jardim, batendo por vezes na veneziana do quarto.

Mário aconselhou:

— Será bom aparecer; as meninas estão notando a sua ausência...

— Antes eu tivesse morrido no dia em que nasci! pensou Camila levantando-se.

Empurraram a porta. Era o Dionísio que vinha saber se o patrão precisaria do carro. Ouvira falar na véspera em um almoço na Gávea.

Mário respondeu com impaciência e sem abrir:

— Não preciso de nada! Depois voltou-se e foi direito à mãe; puxou-a para si, beijou-a na testa e, com carinho:

— Diga a meu pai que hoje mesmo me despedirei dela...

Quando Camila saiu do quarto, sentiu-se agarrada pelas filhas gêmeas, que a puxavam para o jardim, gritando com entusiasmo:

— Venha ver, mamãe!

— Que coisa linda, mamãe!

— O homem disse que foi papai que mandou!

— Adivinhe o que é!

— Diga; sabe o que é, mamãe?

A mãe não respondia; deixava-se levar sem curiosidade, toda trêmula ainda, revendo no fundo da sua alma o rosto do filho ao dizer-lhe aquelas palavras terríveis. As crianças riam, e aquelas risadas eram como um clangor de sinos reboando em torno dela. Os sons avolumavam-se, repercutiam no seu cérebro dolorido. Ele sabia! Mário sabia! Quem lhe teria dito? que boca imunda profanara aquele segredo, em que há tantos anos se encerrava? Seria a da Noca? E os outros da casa saberiam também?

— Veja, mamãe, que lindeza! gritou Lia apontando para um grande relvado do jardim onde tinham posto um grupo de bonecos pintados a cores, um menino e uma menina resguardados pelo mesmo chapéu de sol azul.

RacheI bateu palmas e deliberou que o menino se chamaria Joãozinho e a menina Maria.

— Maria, não! há de se chamar Cecília, protestou Lia.

— Há de ser Maria, há de ser Maria e há de ser Maria!

— É verdade, mamãe, que a menina se há de chamar Maria?

Camila não respondeu; sentou-se em um banco, e, em vez de olhar para os bonecos, pôs-se a olhar para as filhas, muito lindas, com os seus bibes brancos, e os cabelos soltos.

— Vocês gostam muito de mim? perguntou-lhes ela de repente. puxando-as para si.

— Eu gosto muito!

— Eu gosto mais!

— Mentira! quem gosta mais sou eu!

— Eu acho mamãe muito bonita!

— Eu também acho.

— E se eu fosse feia... bem feia... se... por exemplo, eu tivesse bexigas e ficasse marcada, sem olhos, com a pele repuxada... ainda assim vocês gostariam de mim?

— Muito, muito!

— Se Deus me desse uma doença repugnante... como aquela doença do Raimundo, sabem? a morféia, e que todos fugissem de mim com nojo e com medo... que fariam vocês?

— Eu havia de. estar sempre ao pé de mamãe! Havia de lhe meter a comida na boca; mudar-lhe roupa e contar-lhe histórias...

— E eu havia de dormir na mesma cama que mamãe...

— Por que é que a senhora diz isso?! Não chore, mamãe!

Camila beijou as filhas com transporte, e uma grande serenidade caiu sobre o seu rosto pálido. Poderia contar com alguma coisa, as filhas defendê-la-iam dos maus tratos do mundo.

A campainha do almoço repicava no primeiro toque; Ruth fechava o seu violino e Nina descia ao jardim com a Noca, para admirarem também o grupo do lago, mandado da cidade por Francisco Teodoro.

Nina vinha na frente, conto seu modo tranqüilo de ménagère, bem penteada, com um vestido escuro, alegrado pela nota branca de um aventalzinho circundado de rendas. Atrás dela, Noca bamboleava o seu corpo cheio, sem colete, vestida de chita clara, rindo alto de uma anedota do copeiro.

Camila teve um sobressalto.

Também aquela, a Nina, saberia tudo? Teve ímpetos de lhe ir ao encontro e perguntar-lho; mas abaixou os olhos para os cabelos negros da Rachel e da Lia, que se cosiam às suas saias, e passou-lhes as mãos na cabeça, devagar, numa carícia muda, grata ao seu amor e à sua inocência.

— Que engraçadinho! não acha, tia Mila, que há de fazer bonita vista depois de colocado no meio do lago?

— Acho...

— É de muito gosto!

Noca tinha pena. Coitadinhas das crianças! haviam de ir assim tão nuas para o sereno das noites? Muito chic!

Uns admiravam a beleza da menina, outros a do menino, e afinal concordavam que o conjunto é que valia tudo. Ruth veio por último; queixava-se de fome. A campainha vibrava pela segunda vez. Pediram a opinião dela; não era tão bonito, aquilo?

— Nunca apreciei bonecos; vocês bem sabem...

— Isso é o mesmo que ver gente! exclamou Noca, indignada, isto não é boneco! Você é enjoada! É verdade! Mário ainda não viu... Oh! Dionísio! chama aí seu Mário!

Nina voltou-se, vermelha, para a janela do primo; ele não apareceu, e Ruth, instando pelo almoço:

— Que milagre! Dr. Gervásio hoje não apareceu! exclamou sem intenção, colhendo uma Marechal Neel para o peito.

Camila estremeceu e olhou para a filha com curiosidade e mal disfarçado susto. Por que teria ela dito aquilo?

Noca abaixou-se na orla do canteiro, procurando com mãos apressadas um trevo de quatro folhas, para dar à pobre da Nina.

— Oh! se ela encontrasse o trevo, a moça seria correspondida pelo ingrato do primo, e assim o diabo da francesa iria bater a outra porta... Deus fizesse com que ela achasse um trevo de quatro folhas!

Meia hora depois estavam todos à mesa, e ainda a mulata procurava com ânsia a folhinha fatídica.

Mário atravessou o jardim; ela sentiu-lhe os passos e voltando-se chamou-o.

— Uê! porque não foi almoçar?!

— Preciso ir já para a cidade. Diga isso mesmo a mamãe...

— Não foi se despedir dela?

— Não... já nos falamos... diga isso mesmo.

— Hum!... você hoje não tem boa cara!... Lá dentro não está ninguém de fora: pode ir. E sua mãe...

— Cantigas. Adeus.

— Não. Olhe, Mário, lembre-se do que lhe diz esta mulata: - Sua felicidade está aqui... As estrangeiras só gostam de dinheiro...

— Adeusinho!

— Adeus, meu filho...

A mulata foi até o gradil, para olhar ainda para o moço que ela ajudara a criar desde o primeiro dia.

Como ele é bonito! pensava ela: as mulheres têm razão de o preferir a todos!... D. Nina não merece aquilo; mas, enfim, antes ela do que a tal sanguessuga... Este mundo é assim mesmo, a gente gosta de quem não deve... Ele morre pela outra e é esta quem morre por ele!... Verdade, verdade, ele é a flor da família... em questão de boniteza, garanto que não há pessoa que se iguale a Mário... Eu bem dizia que ele poria as irmãs num chinelo! Por que não teria vindo o dr. Gervásio... o diabo do feiticeiro deu bruxaria a nhá Mila... Se seu Teodoro sabe da história!... que estralada! Mas quem há de dizer? Boca, fecha-te! boca, fecha-te! que não seja por minha culpa... Bem! Mário tomou o bonde... lá vai ele almoçar com a outra... Ora! se isso lhe dá gosto, que aproveite!

Com um gesto decidido, ela rematou o seu pensamento egoísta e caminhou para a copa, à procura de almoço.