A Falência/IV
Era meio-dia, quando o dr. Gervásio saltou do bonde e encaminhou os seus pés bem calçados para a rua dos Beneditinos.
Já o trabalho descia torrencialmente por toda a larga rua. Carroções fragorosos abalavam os paralelepípedos, ameaçando esmagar tudo que topassem adiante, numa chocalhada, aos arrancos dos burros alanhados pelas correias dos chicotes. Carroceiros vermelhos, de grenha suja e pés gretados, esbofavam-se agarrados aos grilhões dos varais, saltando diante das rodas, na bruteza selvagem da sua lida.
Ao alarido das vozes confundidas, misturavam-se o cheiro do café cru e a morrinha do suor de tantos corpos em movimento, como que enchendo a atmosfera de uma substância gordurosa e fétida, sensível à pele pouco afeita a penetrar naquele ambiente.
Através dos cristais da sua luneta de míope, o dr. Gervásio olhava para tudo com o seu ar curioso, de cabeça erguida e narinas dilatadas, como se o olfato o ajudasse também um pouco a conhecer o porquê e o destino de todas aquelas coisas.
Com a bengala suspensa, os dedos das luvas irrompendo-lhe do bolsinho do veston, a cartola luzidia, a gravata clara, picada pelo brilho faulante de um rubi, ele atravessava como um estrangeiro aquelas ruas, só habituadas aos chapéus de coco, às roupas do trabalho diário, alpacas e brins burgueses, ou aos trapos imundos dos carregadores boçais.
Como tivesse perdido o endereço do velho Mota, teve o dr. Gervásio de subir ao escritório de Francisco Teodoro. No armazém, em baixo, a grita do negócio tocava à loucura: pareciam todos impelidos por molas flexíveis de movimentos rápidos; eram máquinas, não eram homens, aquelas criaturas nunca dobradas ao peso do cansaço...
O dr. Gervásio, presumindo-se de forte pela sua ducha fria e a sua ginástica de quarto, espantava-se da maneira lépida por que aqueles homens tiravam as sacas do alto das pilhas e as punham aos ombros. O seu braço fino, mas valente, sentia-se humilhado diante daqueles bíceps de atletas.
Francisco Teodoro sorria-se do seu espanto, e para que ele não perdesse de novo o endereço, chamou um rapaz do armazém, o Ribas, e mandou-o acompanhar o médico até a casa do enfermo.
— Será melhor assim; disse ele, não haverá perigo de errar o caminho, porque, conquanto você seja carioca, nesta parte da cidade, olhe que é mais estrangeiro do que eu!
O Ribas sacudiu a poeira do chapéu, enterrou-o até as orelhas enormes, e, balançando os longos braços sem punhos, dentro dum casaco enfiado à pressa, caminhou adiante, todo vergado, como um velho...
E por toda a rua de S. Bento, ele guardou aquela compostura, sem relentar os passos nem voltar a cabeça. Entrado na da Prainha, modificou a atitude de caixeiro em serviço, foi-se deixando ficar atrás, até marchar ao lado do médico, morto por lhe pedir um cigarrinho.
O dr. Gervásio percebeu-lhe a vontade.
Deu-lhe cigarros.
Atravessavam o largo da Prainha, que o sol alcatifava de ouro. Fazia calor. Ribas lembrou:
— Se o senhor quiser tomar alguma coisa, aquele botequim é muito bom.
— Não tenho sede.
— É que lá para diante não há nenhum que preste...
"O rapaz quer cerveja, pensou consigo o médico;. pois façamos a vontade ao rapaz".
Entraram no botequim. Em uma salinha estreita, com cromos nas paredes e papéis de cor no lampião de gás, havia três mesinhas vazias e uma ocupada por dois ciganos angulosos, que gesticulavam largamente, sacudindo-se nas suas longas sobre-casacas ensebadas. Tudo às moscas. O dono da casa veio, com ar sonolento, pedir as ordens; o dr. Gervásio deu-lhas, olhando para um violão pousado no balcão, e de que se dependurava uma larga alça de cadarço vermelho.
Aquele instrumento abandonado sugeriu-lhe a idéia das noitadas de modinhas amorosas pelas estreitas ruas do bairro. Ou na treva, ou à claridade baça do luar, aqueles prédios teriam ouvidos com que escutassem músicas vagabundas? Afigurava-se-lhe que não. A fadiga dos seus dias rudes tornaria de chumbo o seu sono, impassível a sua alma cansada. Por mais que o trovador berrasse, a sua voz chegaria lá dentro como um leve zumbir de abelhas...
O dono do botequim julgou ver no olhar do médico um reparo ao desleixo da sala e arrebatou a viola para dentro.
"Foi-se a única nota pitoresca", pensou Gervásio, atirando os níqueis para a mesa.
Continuaram calados o seu caminho. E era um caminho todo novo para o médico, que o achava interessante na sua fealdade, extravagante no seu conjunto de velharias e sobejidões.
A novidade do meio dava-lhe um prazer de viagem: becos sórdidos, marinhando pelo morro; casas acavaladas, de paredes sujas; janelas onde não acenava a graça de uma cortina nem aparecia um busto de mulher; caras preocupadas, grossos troncos arfantes de homens de grande musculatura, e ruído brutal de veículos pesadões. faziam daquele canto da sua cidade, uma cidade alheia, infernal, preocupada bestialmente pelo pão.
Subiam a rua da Saúde. Chegando à esquina do beco do Cleto, dr. Gervásio olhou: ao fundo, no mar muito azul, barrava o horizonte um vapor do Lloyd.
Pontas finas de mastros riscavam de escuro o espaço límpido. Em terra vinham marinheiros aos grupos, baloiçando-se nos rins. Portugueses levavam cargas, em carrinhos de mão, para um trapiche.
Foi logo adiante que um grupo de moleques irrompeu furioso, cercando o Ribas, exigindo-lhe os dez tostões do jogo da véspera. Eram quatro: um caboclinho de olhos negros e vivos, um negrinho retinto, um menino loiro, que os outros denominavam o Bota - por trazer uma bota velha suspensa de um barbante a tiracolo -, e um italianinho sardento, sem pestanas.
— Venham os dez tostões! venham os dez tostões que você ficou devendo ontem no jogo... reclamavam.
E o Ribas defendia-se, hipocritamente:
— Que jogo? Eu?!
— Sim, senhor, não se faça de engraçado!
O menino loiro exigiu a entrada do dinheiro para a bota: ele era o caixa; os companheiros romperam em assobios e chufas.
Dr. Gervásio apressou o passo, deixando o Ribas numa roda-viva de provocações.
Que se arranjasse.
A curiosidade instigava-o a andar para diante; por bom humor talvez, sabia-lhe bem aquela caminhada. Tinha um olhar curioso para cada fachada arruinada, e parou com um sorriso, vendo em uma janela de vidros quebrados um vaso de cravos brancos.
As flores trouxeram-lhe à idéia as mulheres.
Reparou então que só topava com homens, caixeiros apressados ou embarcadiços de pele queimada, ou mulatos chinelando nas calçadas, mostrando os calcanhares sem meias, num batepés barulhento.
Já agora não sentia só o cheiro do café, como em S. Bento, sentia também o do açúcar ensacado, o das mantas nauseabundas da carne-seca, o dos jacás de toucinho nos trapiches e nos grandes armazéns, e do de sabão das fábricas, numa mistura enjoativa e asfixiante.
Veio-lhe a impressão de atravessar o ventre repleto da cidade, abarrotado de alimentos brutos, ingeridos com a avidez porca da doidice - e olhou para si, receoso de encontrar nódoas e imundicie por toda a sua pessoa.
E assim foi andando até as Docas, já esquecido do Ribas e já esquecido do velho Mota. Ao pé das Docas parou.
No chão, perto da porta, sacas de milho sobrepostas exalavam cheiro de fermento; o caruncho, passando por entre os fios do cânhamo, passeava ao sol.
Num banquinho de pau, e toda derreada sobre os joelhos, uma baiana de ombros roliços e dentes sãos vendia gergelim, mendubi, batata doce e tangerinas aos marinheiros chegados essa manhã do Norte. Pelo grande portão em arco, viam-se lá dentro das docas os caminhões seguirem pelos trilhos para o cais, e as galerias em cima, por cujas rampas as sacas, apenas impelidas, desciam vertiginosamente.
Dr. Gervásio olhava interessado para dentro, quando sentiu uns passos arrastados; voltou-se: o Ribas estava a seu lado, tranqüilo mas amarfanhado, atando com mãos ligeiramente trêmulas a gravata suja.
— O senhor já passou a rua Funda!
— Nesse caso voltaremos.
E voltaram, sem que o médico diminuísse de atenção, achando curioso um ou outro telhado colonial, de beiral estendido, uma ou outra sacada de rótulas, com janelas baixas, de caixilhos miúdos, muito velhinhas, sugerindo lembranças, provocando divagações... Então ele parava, erguendo o queixo bem barbeado, a olhar para aquilo. O Ribas não compreendia, e ficava à espera, com ar estúpido e os braços pendurados.
Passavam por um armarinho, quando o Ribas, não se contendo. disse com orgulho:
— Esta loja é de minha irmã... ela está ali... o senhor dá licença?
— Pode ir.
Dr. Gervásio olhou. Em um balcão tosco e estreito almoçavam um homem macilento e uma mulher moça, grávida, vestida de chita preta, sentada em um banco, com crianças nuas agarradas à saia. O almoço parecia parco, - não havia toalha nem vinho; o médico surpreendeu de relance dois copos dágua e qualquer coisa pálida dentro de um prato. Para não errar o caminho resolveu-se a esperar o guia, olhando entretanto para a meia dúzia de objetos expostos, na vidraça modestíssima da porta: linhas de redes, de crochete de costura, anzóis e agulhas, cigarros, objetos de pescaria e cartas de A B C.
O Ribas não se fez esperar; pareceu ao médico que o não tinham recebido bem...
Seguiram dali por diante silenciosos, até que o Ribas avisou:
— Aí está a rua Funda.
Dr. Gervásio olhou e sorriu a uma observação que as reminiscências de um quadro lhe sugeriam.
Aquela rua Funda, subindo estreita pela encosta do morro da Conceição, ladeada de casas de altura desigual, de onde em varais espetados pendiam roupas brancas recentemente lavadas, desenhando-se negra no fundo muito azul do céu, lembrava-lhe uma viela de Nápoles velha, onde o pitoresco não é por certo maior, e de que ele tinha uma aquarela em casa.
— É interessante, murmurou baixo, enquanto o Ribas, na frente, ia galgando a rua e batia à porta do sr. Mota, um sobradinho amarelo, de janelas de guilhotina e flores no peitoril, em latinhas de banha.
O velho Mota dormitava no canapé da salinha de visitas, com a perna estendida sob uma colcha de retalhos de chita. As palmas do médico a filha acudiu pressurosa, cuidando ter de receber a Deolinda do armarinho, que ficara de ir acompanhar o velho um bocado do dia; vendo o dr. Gervásio, ela estacou interdita, com os olhos arregalados e aconchegando com as mãos tontas a gola do paletó de chita.
— Quem procura?
Dr. Gervásio explicou-se.
— Faça o favor de entrar...
A filha fez sentar a visita e correu a fechar a porta de uma colhendo as mostras de desmazelo da casa: aqui um pé de meia caldo da cesta de costura, acolá um pano de crivo roto, pendurado de um braço de cadeira.
O velho, despertado com sobressalto, mal atinava com o que dizer.
Sim, ele conhecia o médico, e agradecia o cuidado do patrão.
A filha fez sentar a visita e correu a fechar a porta de uma alcova em desordem. Era trintona, picada de bexigas, com as mãos desenvolvidas pelo uso da vassoura e da cozinha. O médico acompanhou-a com a vista, depois apressou-se em examinar o aparelho do doente, achando tudo em ordem, bem prevenido. Ainda bem; ele desacostumara-se dos seus trabalhos profissionais. A clínica irritava-o, como se tivesse pelos homens um interesse medíocre.
Sentindo os dedos do médico percorrerem-lhe a perna, seu Mota descrevia, numa lengalenga, a sua queda e a sua falta de recursos. Supunha fazer falta, caíra exatamente em uma ocasião de grande movimento no armazém....
A filha trouxe café em xícaras de pó de pedra; dr. Gervásio bebeu uns goles por gentileza e o velho sorriu, aprovando-lhe a amabilidade.
O Mota pedia desculpas da casa... não morava ali por gosto. Oh, se o dr. Gervásio o tivesse conhecido em Pernambuco, quando a sua velha vivia! Com a morte dela tudo desandara...
O médico abreviou as lamúrias, prognosticando cura rápida, e despediu-se, sem notar que a moça reaparecera na salinha, com outro casaco enfeitado a crochet.
Embaixo respirou de alívio e começou a descer a rua, por entre o palavreado gutural de papagaios suspensos às janelas.
Sempre as mesmas cantigas, sempre as mesmas cantigas! Era preciso fugir daqueles abomináveis bichos; e ele apressou-se; mas logo na esquina pensou em andar por ali e fixar o bairro. Entretanto, desandava pelo mesmo caminho por que viera, quando viu uma rua cortada a pique na rocha e desejou saber que mundo haveria lá em cima. Subiu.
Crianças, nuas, ainda mal firmes nas perninhas arqueadas, desciam sozinhas, ladeando precipícios.
No alto o dr. Gervásio passou a outra rua, de grandes pedras engorduradas e denegridas, onde mulheres despenteadas falavam alto e gatos magros se esgueiravam rente às paredes.
Pareceu ao médico que a atmosfera ali era mais fria, de uma umidade penetrante, cheirando a velhice e a hortaliças esmagadas. Mal concebia que sé pudesse dormir e amar naquele canto sinistro da cidade, mais propício às minhocas do que à natureza humana, quando reparou para uma mulher moça, que, com uma lata de querosene, aparava água em uma bica. Era pálida e linda. Também ela olhava para ele com um olhar de veludo, sombrio e fixo, varado de tristeza.
Esses encontros fortuitos traziam às vezes ao médico comparações singulares. Aquela mulher era uma invocação; o seu olhar revelava uma consciência forte, a sua pele, cor de luar uma saudade infinita. Era a Agar da Bíblia; urna açucena num canteiro de lodo...
Continuando o caminho, via de um lado e de outro casas desconfiadas, corredores soturnos, escadas escorregadias, que faziam lembrar o mistério e o crime. Assaltou-o a idéia de andar por ali à noite, disfarçado de qualquer maneira. E quando o sol se esconde quê o homem se mostra bem. Ele beberia com os marinheiros nas bodegas do bairro e penetraria em um daqueles albergues.
Aos seus instintos repugnou logo esse mergulho na lama e rejeitou a lembrança, observando se a rosa da sua lapela ainda estaria fresca.
Nem por isso... Foi então obrigado a recuar de um salto; de uma alta trapeira atiravam água de barrela à rua. A água corria espumosa, em fios grossos, por entre os pedregulhos desiguais.
— Bonito!
Daí em diante apressou o passo, sentindo que de todos os lados olhos se fixavam com estupefação no seu chapéu alto. Tinha a impressão de atravessar por meio de ruínas; parecia-lhe que em toda aquela rua não haveria um único caixilho com vidros, uma única chave sem ferrugem, uma única dobradiça perfeita.
Era o resto de uma cidade, tomada de assalto por gente expatriada, resignada a tudo: ao pão duro e à sombra de qualquer telha barata. Uma pobreza avarenta aquela, que formigava por toda a encosta de lagedos brutos, entre ratazanas e águas servidas.
O dr. Gervásio interrompeu o curso das suas idéias ao ver, atônito, d. Joana sair de uma casa.
Ela vinha cansada, com o largo rosto muito afogueado.
Trazia nas mãos curtas uma salva de prata, cheia de esmolas em cobre e em níqueis.
Ela não se mostrou menos espantada de o encontrar naqueles sítios e foram andando juntos até ao cimo do morro da Conceição, onde o ar livre varria toda a esplanada em frente ao palácio episcopal, e a luz de um céu muito anilado e puro caía com todo o brilho.
Respondendo a uma pergunta do médico, que aspirava com força o ar do mar, como se quisesse lavar os pulmões do ambiente infecto por que passara, d. Joana explicou que andava a pedir para a missa cantada. Palmilhava todo o Rio de Janeiro (parecia incrível!) era sempre nessas ruas de gente miúda, miserável mesmo, que ela colhia maior número de esmolas. "A pobreza está mais perto de Deus", dizia ela no seu doce tom de devoção.
Depois, ali mesmo ao sol, sem resguardo, queixou-se da sobrinha. Camila fora sempre uma desviada, nunca tivera propensão para a igreja. Um cego via melhor as coisas da terra do que os olhos daquela alma as coisas do céu!
Que reparasse para os nomes judaicos que ela pusera nas filhas: Ruth, Lia, Rachel, quando havia tantos nomes de santas no calendário!
As crianças haviam de seguir no mesmo caminho perigoso; e era isso o que a magoava.
Precisava salvar as crianças.
Francisco Teodoro, sim, esse era bom católico; gostava de o ver na Candelária, com a sua opa de irmão. Um santo homem!
— Mas d. Mila vai à missa todos os domingos...
— Ora, a missa hoje em dia é mais um dever de sociedade que um preceito de religião. Camila só vai à igreja para se mostrar. Basta ver como ela se enfeita. Eu queria-a mais simples... A Ruth esteve algum tempo no colégio das Irmãs: pois mal sabe o catecismo e ainda não cuidou da primeira comunhão! Eu peço a Deus por eles, mas...
— Faz bem.
— O senhor é dos tais, que não querem crer.
— Isso não me impede de lhe dar uma esmola para a sua missa.
— Aceito; rezarei nela pela sua conversão. Olhe que bem precisa: o senhor está empurrando Camila para o inferno...
— Eu?!
— Quem mais!
— Oh, minha senhora, que injustiça... bem pelo contrário...
— Sim, vá falando e não me olhe com esses olhos de motejo. Pensa que eu não sei de tudo? O único cego ali é o pobre do marido, que não merecia que lhe fizessem isso. Eu estou cá no meu canto, mas sei do que se passa, e toda a gente sabe, infelizmente... Não é por falta de eu pedir a Nossa Senhora do Rosário, minha madrinha... mas os pecados vêem-se, saltam aos olhos até. Já me aconselhei com o padre Mendes, sem dizer de quem se tratava, está claro, e pedi-lhe que rezasse para que isso acabasse em bem... Ele é um sacerdote, deve ser atendido... enquanto que eu, pobre pecadora...
— Mas a senhora está louca, d. Joana?! balbuciou o médico, mal disfarçando a sua ira; não a entendo!
Com medo de uma descarga de censuras, d. Joana despediu-se. Ia ainda dar uma volta pela Pedra do Sal.
O dr. Gervásio mal a cumprimentou; sentia-se colado de espanto àquele chão poeirento. Os seus amores, que ele julgava bem ocultos, tinham varado as sacristias e ido do Botafogo elegante até aos casebres do Castelo e da Conceição! Quis desmentir a velha; mas os seus olhos claros, de um castanho louro, não o deixaram falar, cortando-lhe pela raiz qualquer protesto. Ela não falara só pela boca, que a tinha sincera; mas também pelos olhos, em cuja limpidez aparecera toda a verdade.
O médico viu-a, com ódio, ir arrastando, na sua peregrinação de fé, as pernas inchadas, rebolando os quadris largos, bem fornidos e que ainda os franzidos da saia exageravam.
Apressou-se em voltar-lhe as costas, com medo que ela tornasse, para lhe dizer ainda alguma coisa do pecado.
O que lhe repugnava, sobretudo, era a solicitada intervenção do padre. Desde então deixou de reparar nas coisas, para pensar em si. E os seus sentimentos eram de espécie confusa e tristonha.
Em outros tempos, de mais verdes anos, a divulgação de tais amores não o desgostaria, talvez... Ser amante de uma mulher bonita e cobiçada não é coisa que fique mal a um homem... Por ela, sim, devia ter cuidados e mistério; mas esse mesmo dever de discrição absoluta não seria abafado pela voz do egoísmo, sempre a mais imperiosa nos homens, e pela da vaidade, se outras circunstâncias não lhe exigissem segredo? As almas fortes dos homens têm dessas pequenices, e a dele, sabia-o bem, era como as dos outros, amigas, sem propósito, de causar inveja aos menos afortunados...
Cansado, nervoso, picado pelo sol, o dr. Gervásio seguiu à-toa, desceu o morro, andou pelas ruas, mal respondendo aos cumprimentos dos conhecidos, que ia encontrando à proporção que se aproximava do seu centro habitual. Já nada do que vira e o impressionara naquele giro, se lhe esboçava na lembrança. Aquelas riquezas, aquele movimento, aquelas casas, aquele rumor de população atarefada, baixa e mesclada, aquelas altas ruas despenhadas em escadarias imundas e barrancos, tudo se dissipava e se fundia numa impressão de mar e de lixo, de onde surgia a voz melada, untuosa da tia Joana, oferecendo promessas, confidenciando com estranhos. sobre os seus amores e os seus adorados segredos.
Uma raiva surda roncava-lhe no peito, quando chegou à rua do Ouvidor,
Veio-lhe então em cheio o aroma das flores frescas, à venda na esquina; e a graça de uma mulher que passava com um chapéu atrevido e um vestido bem feito, distraíram-no um pouco...