A Falência/XII
Havia no palacete Teodoro um compartimento que raras vezes se abria: era uma sala, destinada naturalmente na sua origem a biblioteca, e de que o negociante fizera o seu escritório. Ficava embaixo, no rés do chão, ao fundo do vestíbulo. toda voltada para o silêncio do jardim, que formava perto das suas janelas grupos de plantas sem aroma, dentro de grandes relvados, onde a bulha dos pés morria.
Como o negociante não usasse de livros. o seu escritório não tinha estantes. A mobília, de canela e de couro, guardava ali, na sua atitude impassível, um cunho de austeridade que não desdizia do aposento, vasto e sóbrio.
Aquelas cadeiras e aquele sofá de braços estendidos, tinham o ar das coisas a que a intimidade dos seres não deu ainda uma alma.
A melhor parede para uma armação era ocupada por dois quadros industriais, de ricas molduras lampejantes, e por um contador veneziano. Sobre esse móvel, erguia-se, com ar de desafio, a estatueta de um cavalheiro de capa e espada e grande pluma ao vento.
Do lampião de bronze com abajur, caía uma luz bem dirigida, espalhando-se sobre a secretária em um largo círculo tranqüilo.
Foi para junto dessa mesa que Francisco Teodoro levou o amigo. o Inocêncio Braga, oferecendo-lhe uma cadeira ao pé da sua.
A figura trêfega daquele homem miúdo, que com os seus quarenta anos não parecia ter mais de vinte e cinco, o brilho movediço dos seus olhinhos, perspicazes e mergulhadores, a sua palidez baça, os seus movimentos rápidos e incisivos, a febre dos seus gestos, a clareza da sua exposição, punham em evidência a pacata atitude do dono da casa, a calma dos seus modos, de satisfeito, de burguês que já da vida alcançou tudo, e que se compraz em ver o mundo do alto do seu fastígio.
Com as mãos apoiadas na mesa, onde, a par de um vistoso tinteiro de prata maciça, só havia o Código Comercial de Orlando, Francisco Teodoro abria os ouvidos às palavras do outro, em quem pressentia o desejo arrojado de grandes vôos. Sabia-o tão inteligente quanto esperto, de uma atividade febril e fecunda. Esperava que aquela entrevista fosse para lhe pedir o nome e o capital para qualquer empresa.
Tinha-se aparelhado já com algumas evasivas e preparado para uma certa condescendência, que o valor do homem o obrigava a ter. O seu capital, avolumado, podia com lucro tomar diversas derivações, fertilizando zonas e expandindo a sua força; tudo estava no crédito de quem lho pedisse, e nas vantagens que lhe oferecessem.
E era só em negócio que Francisco Teodoro fazia caso do dinheiro. No mesmo dia em que assinava vinte ou trinta contos para um hospital ou uma igreja, numa penada rija e franca, recusava emprestar a qualquer pobre diabo cinco ou dez contos para um começo de vida.
O seu dinheiro, adquirido com esforço, gostava de mostrar-se em borbotões sonoros, que lampejassem aos olhos de toda a gente.
Queria tudo à larga. Era uma casa a sua em que as roupas, as comidas e as bebidas atafulhavam os armários e a despensa até a brutalidade. Dizia-se que no palacete Teodoro os cozinheiros enriqueciam e que a vigilância trabalhosa da Nina não conseguia atenuar a impetuosidade do desperdício. As próprias dívidas do Mário faziam vociferar o negociante, não pelo consumo do dinheiro, mas por perdição daquele filho, que ele não conseguia dirigir a seu modo.
Gastar consigo, com a sua gente. era sempre um motivo de vaidade e de gozo; mas gastar mal em negócio. arriscar em comércio problemático, é que lhe parecia uma ignomínia.
Agora, com este Inocêncio Braga. as coisas mudavam. A superioridade do homem obrigava-o a transigir um pouco...
Por isso ele fez entrar o Inocêncio para o escritório, onde mal chegava o eco das correrias das pequenas.
Sem preâmbulos, o outro atacou o assunto com a altivez de quem não pede, mas oferece favores.
Com o seu timbre de voz nasalada como se toda ela só lhe saísse da cabeça, começou:
— Lembrei-me de organizarmos aqui no Rio um grande sindicato de café. O Gama Torres, que, aqui entre nós, deve aos meus conselhos a sua prosperidade, está pronto a entrar com grande parte do capital. Foi ele que me disse que o consultasse também.
Francisco Teodoro sentiu um arrepio mas não pestanejou. Os olhos do Braga cintilavam na sombra.
Com elogios moderados, mas de infalível alcance, à argúcia e bom critério do negociante, Inocêncio expôs o seu plano, estudando-o, revirando-o por todos os lados, mostrando cálculos, em cuja elaboração perdera noites de sono, assoprando-o devagar, com eloqüência, fortificando-o com argumentos persuasivos.
Tudo aquilo aparecia como a irrefragável verdade, singelamente. Nenhum artifício de palavras. Termos límpidos como água da fonte.
Francisco Teodoro, empolgado. reclamava repetições. Inocêncio prestava-se.
Todos os pontos obscuros eram esclarecidos, repetidos, como os compassos difíceis de uma música, até que se passasse por eles sem tropeço. O tino comercial do Inocêncio Braga confirmava-se.
Entretanto, Francisco Teodoro hesitava. A sua escola fora outra, mais rude.
O assalto as.
Sentido-o escorregar medrosamente dentre os seus dedos nervosos, Inocêncio sorria e com habilidade, sem querer constranger resoluções, retomava o fio de ouro da sua proposta, e estendia-a sedutoramente.
Não havia zona cafeeira, em África, na América ou na Ásia, de que ele não falasse com a autoridade de bom conhecedor.
Dir-se-ia que podia contar os grãos de cada árvore. Em algumas colônias o sol mirrava o fruto; noutras, chuvaradas tinham levado colheitas; em certos países de café, o café faltava, e só no Brasil, terra da promissão, os cafezais vergavam ao peso da cereja rubra. Tudo isto era documentado com trechos de jornais estrangeiros, colados num caderno, anotado nas margens, com letra miúda.
Em toda a exposição não havia cálculo sem base, idéias sem argumentos. Tudo era saber aproveitar a ocasião propícia, esta incomparável época de negócios, para lançar a rede....
Francisco Teodoro resistia ainda, ou antes, queria resistir, por instinto; mas a verdade é que abria os ouvidos às palavras do outro, e não achava termos com que defendesse a sua relutância.
O prestígio de saber traduzir um artigo para jornal vale alguma coisa. Inocêncio leu um artigo traduzido por ele do inglês, sobre a propaganda e o futuro do café, obra sólida, que Francisco Teodoro aprovou.
Reconhecia nos ingleses grande capacidade.
— Justamente, grande capacidade, atalhou o outro; e sabe o senhor por que?
— Superioridade de raça... Sim, é o que dizem.
— Não creia o senhor nessas balelas. Qual superioridade de raça! de educação, só de educação. Individualmente, o inglês não é mais forte do que nós, com toda a sua ginástica, com todas as pipas de óleo de fígado que tenha ingerido em pequeno.
A vantagem deles é outra: vêem melhor e fazem a tempo as suas especulações. Podem ter medo de fantasmas, mas não têm medo de negócios. Especular com inteligência, ganhar boladas gordas, encher as mãos, que para isso as têm grandes, de libras esterlinas, eis para o que o inglês nasce e se desenvolve.
Por isso o comércio deles é tão forte.
Como os ingleses se ririam de nós, meu amigo, se quisessem perder tempo estudando as tímidas especulações do nosso comércio de analfabetos!
Não percamos também nós o nosso tempo; estudemos este assunto.
Curvaram-se outra vez para a secretária coberta de artigos, tabelas, estatísticas...
Francisco Teodoro não se atrevia a uma resposta. Inocêncio disse, sem tirar os olhos dos papéis:
— Aqui só vejo um homem capaz de entrar nisto sem medo: o Gama Torres.
— É rapaz novo...
— E atiladíssimo.
— Os negócios precisam ser feitos com vagar....
— À moda antiga.
— De todos os tempos.
— Não. Quando há febre é preciso saber aproveitá-la na subida do termômetro.
As ocasiões fogem e não se repetem; o senhor refletirá; esperaremos alguns dias, poucos, bem vê que não devemos adiar isso para outra época. Esta é a melhor. - É a única.
Deixo-lhe aqui a minha papelada: consulte-a. Aqui estão coisas melhores e mais convincentes do que palavras: - cifras.
Francisco Teodoro, acavalou no nariz a sua luneta de vista cansada e seguiu com o olhar os caracteres cerrados que os dedos do outro apontavam e percorriam rapidamente.
Como o rumor da enchente que se aproxima e vem até a inundação, assim aquele amontoado de parcelas ia crescendo e ameaçando de desabar em blocos de ouro.
Quando via uma abertazinha, Francisco Teodoro aproveitava-a para uma objeção, que Inocêncio repelia sem esforço, com mostras de quem já vinha prevenido para tudo.
A meia-noite ergueu-se, dizendo:
— Amanhã é domingo; o senhor fique com estes papéis e leia-os outra vez, com o seu sossego. Segunda-feira eu irei procurá-los no armazém, das duas para as três horas. Estude e resolva. Boa noite.
Francisco Teodoro acompanhou a visita até o portão do jardim. Em cima, a casa estava toda fechada; a família dormia. O jardineiro, na soleira, esperava que a visita saísse para soltar os cães.
— Que linda noite, sr. Teodoro, e como o seu jardim cheira bem!
— Sim, Camila gosta muito de flores. Deve ser das violetas.
— É dos jasmins do Cabo, asseverou o jardineiro.
— Ou dos jasmins do Cabo; pois muito boas noites!
Nessa noite Francisco Teodoro mal pôde dormir. O seu pensamento girava, girava. Como os tempos eram outros! Percebia a razão do Inocêncio: o comércio do Rio já não tolerava o cansaço das obras lentas. A finura e a astúcia valiam mais do que os processos rudes e morosos do sistema antigo. Ah! se ele tivesse tido instrução...
Quando no dia seguinte abriu o Jornal, na frescura da varanda, percebeu que não suportaria a leitura. Os olhos teimaram, e ficaram-se presos ao papel; mas o pensamento, insubmisso, embarafustou por outros caminhos; foi preciso fazer a vontade ao pensamento. Francisco Teodoro desceu ao escritório e engolfou-se na papelada do Inocêncio Braga.
E lia ainda, meio tonto, quando Ruth entrou, com ar amuado.
— Sabe uma coisa, papaizinho?
— Não... não sei nada. Que temos?
— Uma desgraça.
Francisco Teodoro levantou os olhos, assustado.
— Que dizes?!
— Digo que a Nina faz anos hoje e que ninguém tem um presente para lhe dar. Demais a mais é domingo: está tudo fechado...
— Então a desgraça é essa?
— Sim, senhor. Ela não se esquece de ninguém, não é justo que os outros, que podem mais, se esqueçam dela...
— Ora, não lhe falta nada.
— A mim parece-me que lhe falta tudo. Quando qualquer de nós faz anos, o senhor dá uma festa e mamãe arranja surpresas... Ela é como se fosse outra filha. Quando Rachei esteve doente, eu ia dormir para a minha cama e era Nina que fazia de irmã, velando ao pé da doente... Entretanto...
Francisco Teodoro contemplou a filha com atenção.
— Acaba.
— Quando Rachei ficou boa, toda a gente se congratulava com papai, com mamãe, comigo, mesmo com a Noca, e ninguém se lembrou dos sacrifícios de Nina. O senhor diz: não lhe falta nada. É o que parece. Basta dizer que se quiser fazer a esmola de um vintém precisa de pedi-lo ao senhor ou a mamãe.
Foi uma maçada eu não ter-me lembrado ontem! Ela não tem chapéu....
— Quem te lembrou isso hoje?
— Lembrei-me eu mesma, quando tirei a folhinha...
— Bom; promete-lhe o chapéu.
— Só?
— Parece-te que temos sido ingratos para com ela?
— Parece-me que além do chapéu ela precisa de outra coisa...
— Que coisa?
— Outro dia, quando fomos à cidade, ela gostou muito de uma gravata que viu numa vitrina. Eu perguntei-lhe: - mas por que é que você não compra esta gravata? E ela sorriu. Depois, passamos numa confeitaria e ela manifestou vontade de tomar um sorvete. Eu estava com tosse, não podia tomar gelo, mas perguntei: - por que é que você não toma um sorvete? E ela foi andando. No bonde quando voltamos, o condutor vendo que ela era mais velha pediu-lhe as passagens. Nina ficou que nem uma pitanga e indicou-me com um gesto... Foi então que eu percebi que desde que uma pessoa põe vestido comprido, precisa de usar uma carteirinha no bolso...
— Queres então dar-lhe uma carteira?
— Não. Eu dou o chapéu; a carteira deve ser dada ou por papai ou por mamãe.
— Está dito. Vamos a ver agora se nos dão almoço.
Já toda a família os esperava na sala de jantar. O dr. Gervásio faltara, por isso o Mário se dignara de aparecer.
Foi logo no princípio do almoço que Francisco Teodoro, voltando-se para a sobrinha, declarou:
— Nina, como eu não entendo de modas, o presente que escolhi hoje para você foi uma casa. Com os aluguéis você poderá escolher todos os meses um vestido a seu gosto.
A moça, que fazia nesse momento os pratos de Rachel e de Lia, estacou com os olhos esbugalhados. Riram-se do seu espanto e fizeram-lhe a saúde. Ela começou a chorar.
— Homem, não foi para a ver chorar que eu disse o que disse. De maneiras que você...
Mas, Francisco Teodoro tinha também os olhos luminosos. Camila aplaudiu a idéia e tocaram os copos, comovidos.
Depois, o negociante disse que levaria a sobrinha no dia seguinte ao tabelião, para a transferência da propriedade, e acrescentou:
— A casa não é grande, mas é nova e bonitinha.
— É verdade, Mário, interrompeu Camila, a baronesa tornou a escrever, insistindo para que você não falte ao baile do pai.
Parece que a Paquita está apaixonada!
Mário teve um sorriso de desdém; Nina deixou cair o talher com que recomeçara a partir o beef das primas.
— Então convidaram só o Mário?! inquiriu o negociante, espantado.
— Não, a todos: vamos todos. Eu já mandei fazer os vestidos, mas do Mário é que fazem questão... uma insistência esquisita! Eu só atribuo a querê-lo o Meireles para genro.
— Fresco genro, um frangote sem profissão... deixa-se de asneiras! O Meireles não é nenhum parvo.
Mário fixou o pai com ar atrevido, e disse:
— Pois fique o senhor sabendo que mamãe acertou. A Paquita gosta de mim, e já disse ao velho que não se casará com outro. Eu é que não quero.
Nina tremia.
Francisco Teodoro riu alto.
— Ora! a pequena, não duvido... agora o pai! Há de casá-la como casou a outra, com um homem de peso...
— Pois sim!...
— Verás. Bom casamento é ela, lá isso é... Quantas filhas são?
— Cinco, parece-me que cinco.
— Mesmo assim. O Meireles está podre de rico. Podre de rico! Também nunca vi homem tão agarrado; tinha até a alcunha do Chora vinténs... Dantes eram muito freqüentes as alcunhas... ai, no comércio... Alcunhas e bofetões. Hoje está tudo mudado...
— Assim mesmo ainda há muita brutalidade! disse Camila com um arzinho de nojo.
— Que queres? Nem todos nascem para doutores.
Não havia alusão. Francisco Teodoro tinha na mulher a fé mais cega; todavia, ela corou e não se atreveu a voltar o rosto para o lado do filho.
Findo o almoço, a Noca cercou a Nina na copa para lhe perguntar:
— Que foi que eu lhe disse hoje?
A moça, aturdida, não se lembrava; a mulata explicou:
— Menina, pois eu não lhe disse que ver borboleta azul é sinal de boa nova?
— Borboleta azul?...
— Gente! já se esqueceu que hoje de manhãzinha viu uma borboleta azul? Pois olhe: ela veio lhe avisar que você havia de receber este bonito dote... E ainda há quem não acredite!
— Sim, é verdade, você me disse...
E a moça sorriu; mas havia no seu sorriso uma mescla de ironia e de doçura.
Na segunda-feira, às duas horas da tarde o Inocêncio Braga apresentou-se a Francisco Teodoro no seu escritório da rua de S. Bento para buscar a papelada; mas o negociante esquecera-se dela em casa, mostrando-se indeciso, e renovando com disfarce perguntas em que transparecia a mais viva curiosidade.
O outro, percebendo tudo, muito correto, explicou com detalhes todos os pontos, sem insistir com Teodoro para que acedesse. O que tinha de dizer estava dito. Que passasse muito bem. Coube então a Teodoro prometer que iria ele pessoalmente levar os papéis à sua residência, na rua do Riachuelo, e conversar de novo sobre o assunto.
Nessa tarde o Ribas, balançando os braços moles, entregava ao patrão uma carta manchada pelos seus dedos suados. Era do velho Mota; a perna não o deixava ainda ir ao serviço; pedia desculpas com humildade, tresuando miséria. Era o dia do vencimento do ordenado.
Francisco Teodoro deixou cair a carta na cesta dos papéis rasgados e, cofiando a barba, cogitou na melhor maneira de responder aoInocêncio...