A Falência/XI

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Era a hora do café no armazém de Francisco Teodoro. O escritório estava cheio; o Inocêncio, miúdo e trêfego, retorcendo com mão nervosa o bigodinho alourado, com os olhos pequenos fulgurando-lhe no rosto pálido, dilatava as narinas, cheirando dinheiro, que lhe parecia andar esparso no ambiente de todo aquele enorme casarão de S. Bento.

Percebia as coisas de relance, e apanhava no ar as que lhe convinham.

A seu lado o velho João Ferreira, espadaúdo trigueirão, largo de faces e de gestos comentava com benevolência os atos do governo, berrando às vezes contra a opinião dos outros, que o atacaram por todos os lados em vivas represálias.

O Lemos sorria calado, muito estúpido para entrar em questões de tal ordem. Que lhe falassem do preço da carne seca, que importava em grosso, e dos jacás de toicinho, e a sua opinião figuraria logo com todo o peso da autoridade. O Negreiros em pé, com o seu enorme nariz de cavalete, que a mão distraída acariciava de vez em quando, era o único republicano naquele ninho de velhos portugueses aferrados às instituições tradicionais da sua pátria e desta que o seu amor e o seu bem-estar escolheram.

João Ferreira desculpava a fraqueza dos homens; palrador, como todo o minhoto, discursava por gosto, abafando com o seu vozeirão as ironias do Inocêncio, um ou outro aparte medroso do Lemos, e os protestos de Francisco Teodoro, que não compreendia como um tão fiel monarquista pudesse achar desculpas para os desatinos desta "República de ingratos".

Negreiros sorria com a serenidade de um confiante. Ele fora sempre um republicano e um estremado e era por isso olhado por alguns dos seus compatriotas com estranheza e susto. Como João Ferreira no maior ardor de seu discurso esbarrasse com a expressão alegre do rosto de Negreiros, e lhe compreendesse o contentamento de o ter de seu lado, tergiversou e, com maldade alegre, achou logo também motivos de áspera censura ao mesmo governo que tinha gabado havia pouco. Não, que ele já estava maduro para dar o seu braço a torcer!

Os outros triunfaram, era assim que o queriam; e chegou a vez de Negreiros entrar na discussão.

Foi nesse instante, no meio da balbúrdia de vozes, que o capitão Rino apareceu no limiar da porta com o chapéu na mão, e uma expressão interrogativa no rosto.

A chegada súbita daquele estranho, para quem Francisco Teodoro fez logo um lugar ao pé da sua secretária, abaixou o calor da conversa.

Dividiram-se os grupos; houve risos baixos, pancadinhas nos ombros, de reconciliação e amizade. Só os olhinhos do Inocêncio Braga ardiam na mesma febre, e os seus dedos magros torciam com maior nervosismo as pontas do bigode delgado.

— Que novidade é esta, o senhor por aqui?!

— Não lhe roubarei o tempo; é por curtos instantes.

— Ora essa! tenho muito prazer com a sua visita... dê-me licença de o apresentar aos meus amigos.

Feitas as apresentações, o Isidoro entrou com o café em uma grande bandeja e houve uns segundos de silêncio. Depois, Francisco Teodoro perguntou baixo ao capitão se lhe quereria falar reservadamente.

— Não senhor; venho apenas despedir-me e rogar-lhe que apresente os meus cumprimentos à sua família. Parto para o Pará.

— Por que não vai jantar conosco? o senhor não imagina como é querido lá em casa. A minha gente não lhe perdoaria isso! Bem sabe que não fazemos cerimônias.

— Obrigado, mas a minha viagem desta vez é mais longa, obriga-me a preparativos que não me deixam tempo para nada. Na volta levarei os meus respeitos a todos.

O capitão corava dizendo estas coisas. Todo o seu sangue, agitadíssimo, lhe bailava sob a pele de louro.

— Bem, bem! as obrigações não se deixam por coisa nenhuma... dou-lhe razão; sou homem de negócios. Darei os seus recados à minha gente. Camila vai ficar triste... paciência... Pois quando quiser lá estamos às ordens como bons amigos; e Francisco Teodoro estendeu a mão larga ao capitão Rino, que a apertou confuso e alvoroçado.

Seu Joaquim apareceu no escritório e pousou um maço de papéis na secretária, pedindo a Teodoro que lhe desse pronto expediente.

Aquilo eqüivalia a uma despedida; havia urgência de recomeçar-se a lida. Levantaram-se todos.

Inocêncio Braga deixou-se para último e ao despedir-se do negociante pediu-lhe uma entrevista em sua casa para negócio urgente, de alta importância.

No olhar de Teodoro houve uma interrogação pasmada. O do Inocêncio tinha lampejos de ouro. Seu Joaquim observava em silêncio.

O capitão Rino, que desceu na frente, topou com o caixeiro Ribas no corredor junto às grades do armazém, de orelhas moles e ombros descaídos, ruminando ódios em silêncio contra o Joaquim, que o deprimia à vista de todos. O capitão levava os olhos cheios de outras imagens, para atentar nele. O bafo quente da rua, cheia de povo e de sol acordou-o do sonho. Na calçada, mesmo à porta do armazém, a velha Terência varria à pressa as pedras com a vassourinha de piaçava, e a cabecinha amarrada no lenço branco, pendente para o seu trabalho. Os carregadores iam e vinham, cruzando-se, serpeando entre os veículos repletos de café, numa gritaria medonha. O trabalho trombeteava a todos os ventos a sua força poderosíssima.

O capitão Rino seguiu, abrindo passagem através de grupos compactos e movediços.

Aquela multidão aturdia-o.

O mar limpo e vasto obrigara-o sempre a viver das suas próprias comoções, a ser um isolado e um melancólico, afeito a amar na natureza o que ela tem de maior e de mais simples.

A onda do povo rude com que esbarrava, era bem mais complexa do que a do oceano que ele cortava com a proa firme do seu Netuno.

Talvez tivesse escolhido mal a sua profissão. A vida do homem era aquilo que ali estava: a agitação perene, o trabalho violento, o amor sem idealizações, o espetáculo renovado de tudo que a terra produz, mata e faz renascer para a fulguração do tempo, que é instantâneo e é eterno.

O próprio mar, que escolhera e a que se lançara na fantasia da adolescência, não era à orla branca da Terra que vinha atirar a sua grande queixa, a sua fúria formidável ou a sua voluptuosidade infinita?

A terra pálida dos areais, a terra cor de sangue das matas, a terra negra do ouro, a terra roxa dos cafeeiros, mãe da abundância, ou a terra clara dos laranjais, fonte de perfume, não é por ventura a parte do mundo consagrada ao homem, onde o seu suor, em caindo, se trasmuda em orvalho fecundo?

O capitão Rino olhava para toda aquela gente, marinheiros, soldados, vadios e trabalhadores braçais, negros ou portugueses, uma população de homens apressados, sem lhe fixar o desalinho do gesto ou a preocupação das vistas abrasadas. Eram homens, passavam em repelões, pensando no ponto da chegada. Ele ouvia-lhes a respiração, a ofegância dos peitos cansados e a cadência dos passos batendo dominadoramente as pedras duras do chão.

Aquele ruído era sempre para ele uma música de sonoridade nova.

Entrou na rua da Prainha, tomou depois a da Saúde, sem notar o aspecto desigual da casaria, os negros trapiches tresandando a sebos de carnes e meladuras de açúcar esparramadas no solo, onde moscas zumbiam desde a porta da rua até lá ao fundo do armazém, aberto para um quadro lampejante de mar.

Os trapiches sucediam-se, repletos de barricas, de sacos, de fardos e de pranchões, enchendo o ar de um cheiro complexo, que a maresia levava de mistura, e de sons ásperos dos guindastes, suspensos sobre balanças. Lanchas passavam perto em roncos e silvos entrecortados, e aquela confusão louca de vozes, que lhe era familiar, dava-lhe agora a impressão de que a terra se debatia num delírio de febre.

Ele ia ao morro da Conceição, dizer adeus a um antigo companheiro, agora padre. Para isso, enveredou por uma ladeira estreita, talhada sobre rocha branca. A rua serpeava em curvas contrafeitas, elevando-se aqui para se despenhar acolá, acotovelando-se em ângulos de uma lado para descer ao outro em escadarias toscas.

De casas velhas, abertas para a grande luz, saíam mulheres para estender ao sol blusas de marinheiros, enquanto lá dentro vozes frescas de moças cantavam modinhas ternas.

A beira dos precipícios, crianças, quase nuas, atiravam com os pés, dentre montes de lixo, latas vazias, que rolavam, tinindo pelas ribanceiras, e velhas, sujas, agachadas em uma ou outra soleira, coziam trapos, entre gatos adormecidos e galinhas soltas.

O dia estava azul, e o ar do mar vinha, em grandes lufadas, acariciar a face quente e robusta da terra.

Capitão Rino atravessava uma rua de marinheiros.

Ao ver alguns rostos tranqüilos e braços grossos de mulheres, trabalhando ao ar livre, pareceu-lhe que o coração daquela gente era resignado e sabia esperar.

A grande virtude estava com ela, só os simples podem ser fortes.

Depois de várias voltas, por caminhos muito acidentados e sujos, ele viu-se na ladeira da Conceição, entre casas baixas, umas com as faces para as outras, mal abertas, de ar desconfiado.

Outra gente ali se movia nas ruas. Rolavam no cisco das calçadas velhos botões azinhavrados de fardas. Mulheres de soldados tagarelavam em língua áspera, com vizinhos de má compostura, e um fartum enchia a atmosfera da rua longa, até às proximidades da velha fortaleza.

Em todo o comprimento do seu passeio, foi ali a primeira vez que o capitão Rino ouviu uma voz lamurienta, a pedir-lhe uma esmola.

Aí estava uma coisa que ele não ouvia nunca sobre a onda inconstante...

Pouco depois bateu à porta do amigo, mas ele não estava em casa; só voltaria à noite. Rino continuou para cima até o pátio do forte e aí sentou-se um bocado na muralha, olhando para baixo.

Que via ele? a casaria desigual, feia, derramada, brilhando aqui nas telhas novas de reconstruções, mostrando acolá outras, negras ou esverdinhadas, sobre paredes encardidas? Reparava para o movimento contínuo da rua embaixo, cortando com uma linha larga e branca os prédios melancólicos? Não. Com os olhos fixos na água crespa da baía, coalhada de vapores negros, de navios brancos, de embarcações de todo o feitio, ele só pensava em Camila, tão rígida para com ele quanto dócil e amorosa para com o outro...

Fugia. Estava tudo acabado. Era o adeus à sua mocidade, àquele sonho de amor, que ele dizia através daquela infinidade de corações felizes, fortes, que esses telhados abrigavam por certo. Não haveria mais ninguém assim, tão desafortunado.

Como seria bom viver, mesmo naquele imundo bairro de trabalho, com o coração tranqüilo, com fé no amor!

Para ele, estava escrito: não tornaria a ver Camila. A humilhação da última visita queimara-o como brasas. Ainda se ela o desprezasse, mas não amasse o outro!

E toda a causa da sua desventura estava naquela preferência. Por que havia de ser o outro, e não ele?

O sino da Conceição badalou com força. Rino voltou-se; dois padres moços, de batina, atravessavam o largo, como dois pontos pretos de exclamação em um quadro vasto de sol. Nesse instante o moço marítimo teve a visão de que, ao encontro da sua, vinham duas almas iguais, tristes na sua esterilidade. Ainda aquelas tinham o seu ideal, se guardavam intato o óleo divino que todas as chagas suaviza e todas as misérias embeleza.

E ele? sem fé sem um fito qualquer que explicasse o motivo dos seus dias, com um amor renegado, cavalheiro sem dama e sem sonho, que valia neste mundo, onde o homem merece pelo que pensa, pelo que cria, pelo que combate ou pelo que amplia?

Os padres passaram; ele quis segui-los, mas o corpo, cansado, amolecido, ficou ainda. E o pensamento recalcava: por que havia Mila de preferir ao outro? parecia-lhe que todo o seu amor seria para sempre doce e platônico, se ela fosse para todos uma mulher austera, bem encerrada no círculo de seus deveres.

Esta idéia trouxe a lembrança da mãe, morta a facadas pelo pai, como adúltera. A imagem dela encheu-lhe o coração; ergueu-se bruscamente e começou a descer a rua, apressado com a idéia de fugir para longe, salvar-se do perigo que o solicitava.

Era preciso não tornar a ver Mila; nunca mais! Para algo lhe serviria o seu orgulho de homem.

A vontade domaria o coração rebelde. Não tornaria a vê-la.

A idéia da mãe lembrou-lhe a irmã; tinha ainda tempo de ir jantar com ela naquela silenciosa casa das Laranjeiras. Só no dia seguinte iria para bordo aprestar o Netuno.

Devia pensar noutras coisas; esforçava-se por isso. Desejar Mila, para quê? não tornaria a vê-la...

Desceu o morro apressado, até à rua dos Ourives e seguiu por ela, sacudindo os ombros no movimento bamboleado do corpo, num andar de quem nada quer ver resoluto acalmado por um esforço em que entrara todo o poder da sua vontade.

Fugir de Camila e para sempre, criar, talvez, lá longe, em terras do norte, uma família honesta, era o que devia fazer, o que faria, inevitavelmente e bem depressa, como remédio para esquecer...

O capitão atravessou ruas, passou por amigos como se ninguém visse, e só ao desembocar na rua do Ouvidor parou de chofre, com um batimento forte de coração. Diante dele, majestosa no seu vestido preto picado apenas no peito por uma rosa escarlate, Camila sorriu-lhe, estendendo-lhe a mão enluvada. Era uma reconciliação e um apelo; ele não atinou com que dissesse. Ao lado da mãe, Ruth fixava nele aquele brilhante par de esmeraldas que Deus lhe dera por olhos. Trocados os cumprimentos elas não se detiveram, e o moço seguiu também o seu caminho, enfraquecido, todo embebido no aroma dela todo deslumbrado por aquele ar de deusa inatingível.

Dali até à Carioca já os seus passos se colavam às pedras, desejosos de parar para a seguirem depois, quando ela voltasse para o calor da sua casa; mas o capitão Rino obrigou-se a ter juízo e caminhou para um bonde das Águas Férreas, que era justamente o assaltado nessa ocasião.

Só depois de sentado reparou que estava junto da D. Inácia Gomes e das duas filhas, a Carlotinha e a Judith, ambas muito faceiras e risonhas nas suas toilettes claras.

D. Inácia suspirava, cansada do esforço da tomada de lugar, com as mãos carregadas de embrulhos, e o toucado já descaído sobre a orelha esquerda. Não a pilhariam tão cedo na cidade, afirmava.

Reconhecendo o capitão Rino, pediram-lhe logo notícias da família Teodoro, como estava a boa Camila?

Ele disse o que sabia, um pouco atrapalhado, corando.

A Carlotinha, sempre trêfega, debruçava-se sobre o colo da mãe, dizendo-lhe com a sua voz maliciosa frases em que entrava mais atrevimento do que espírito. Tinham-se mudado para as Laranjeiras e ofereciam-lhe a casa. D. Inácia vinha espantada com os preços dos objetos adquiridos; se não fossem as moças, ela não viria à cidade; gostava do seu canto, da boa paz caseira.

— E o sr. Gomes, como está? perguntou o capitão, menos por interesse do que para dizer alguma coisa.

— Coitado, como velho cheio de trabalho. O sr. não imagina! meu marido sacrifica-se pelos outros e o resultado nós sabemos qual é. Este mundo é de ingratos...

— Sim, é de ingratos; confirmou o capitão.

Até as Laranjeiras D. Inácia teve tempo de despejar todas as lamentações da sua alma atribulada; falou de tudo, até das cozinheiras e do mau serviço do açougue. O discurso, interminável, numa lenga-lenga, ora lamurienta, ora resignada, tornava ao capitão insuportável a lonjura da viagem.

Carlotinha perguntou pelo dr. Gervásio. Que era feito dele, que ninguém o via, senão no palacete Teodoro?

Rino encolheu os ombros, não sabia. Judith debruçou-se por sua vez, e contemplou-o com curiosidade.

Tinham chegado ao termo da viagem e desceram com muitos oferecimentos, apontando o portão da sua residência.

O capitão Rino correspondeu às expansões com amabilidade discreta, admirado da exuberância daquela gente. Que lhe importavam as denguices da Carlotinha, de olhar gaiato e tez de jambo, ou as da Judith, pálida e pequena, se todo o seu pensamento estava na outra, naquela Mila de formosura opulenta, de quem guardava ainda na palma a doçura da mão enluvada?

A fatalidade daquela paixão bem se revelava em tudo; ele furtava-se a vê-la, saudoso e aflito, mas forte na sua resolução, e eis que ela lhe aparecia em uma volta 4e rua, inesperadamente! O bond parara no ponto e o moço desceu, caminhando para diante até a chácara da madrasta; o portão estava aberto, entrou.

Nos largos canteiros touceiras de canas da Índia erguiam os seus penachos de flores vermelhas e amarelas; ele tomou à esquerda, por uma rua ladeada de girassóis e de magnólias cor de ouro velho. Era ao fundo dessa rua que aparecia a casa, de feição antiga, sólida e simples, com paredes brancas e largas janelas de guilhotina.

Sentindo gente, veio um cão enorme lá de dentro, aos saltos e latidos, e logo após apareceu Catarina no patamar de pedra, da escada em semicírculo.

Ela desceu ao encontro do irmão, muito risonha.

— Estás boa? perguntou-lhe ele, segurando-lhe no queixo forte e ligeiramente quadrado e fixando-lhe de perto os olhos claros.

— Estou, d. Mariquinhas é que está doente, com uma das linfatites do costume.

— Chamaste médico?

— Chamei, e lá a deixei com a Hemengarda ao pé da cama.

— Que Hemengarda?

— Aquela enfermeira mulata, do n. 15, mãe do...

— Já sei.

— D. Mariquinhas gosta muito dela. Queres ir vê-la agora?

— Depois; fiquemos por aqui. Os teus girassóis estão muito lindos.

— Não parece um jardim japonês? Repara. Temos crisântemos que nem os dos biombos, canas como as das ventarolas, lírios e girassóis... d. Mariquinhas acha detestáveis todas estas flores e fala em mandá-las arrancar... Esta nossa madrasta tem singularidades. Não compreende o adorno e desconhece a graça das linhas. Só gosta das flores pelo cheiro.

— Que tens feito?

— Lido, cosido e jardinado; que mais hei de fazer? quem me acompanha se eu quiser sair?

— Efetivamente estás muito só.

— Preciso casar-me.

— Casa-te.

— Tenho medo.

— Os homens assustam-te?

— Um pouco. São enganosos, e eu sou franca. Imagina o conflito! Depois, a lembrança da nossa mãe faz-me odiar o casamento.

— Sê honesta.

— Quem pode saber hoje o que será manhã?

— Tens razão. Fica solteira; serás mais feliz. Tens uma alma indomável. Conserva-te aqui. Esta casa é tão propícia a uma vida de calma e de reflexão!

— Minha madrasta, bem sabes, vive em guerra aberta comigo. Chama-me com malícia - doutora. Todos os meus gostos são assunto de mofa para ela, e todos os seus são para mim de aborrecimento. E aí tens a calma desta casa. Fresca tranqüilidade!

— Tem paciência ou, então, dou o dito por não dito. Casa-te!

— Com quem?

— Comigo não pode ser.

— Nem tu quererias.

— Por que?

— Porque amas a Camila Teodoro.

Tinham-se afastado de casa e seguido para as bandas do pomar. O jardineiro passou com o carro de mão cheio de folhas secas, e cumprimentou o moço, que não lhe correspondeu à cortesia, tonto. pasmado para a irmã, que estacara também ao dizer as últimas palavras.

— Nega, se és capaz; disse ela.

— Não nego.

Quedaram-se mudos, contemplando-se de face. Pela mente de ambos passou, dolorosissimamente, a lembrança da mãe assassinada pelo marido. Compreenderam-se através do silêncio. Catarina murmurou:

— À proporção que envelheço, mais se vincula em mim a saudade dela e não consigo desvanecer o meu rancor por ele. Não lhe perdôo.

— Nem eu; mas a sociedade absolveu-o.

— Os homens. Ela era tão boa!

— Enganou-o.

— Que monstruoso castigo! E o resultado, lembras-te? O teu afastamento de casa e o meu ódio. Em vão ele se fazia bom para agradar-me; era de uma humildade que comovia a todos, menos a mim. Não tornei a beijar-lhe a mão.

— Nem mesmo na hora da morte?!

— Nem mesmo na hora da morte. E eu quis; curvei-me; mas quase ao encostar a minha boca à mão dele, ergui-me com terror. Ele percebeu tudo. Que morte!

— Foste cruel.

— Fui humana. Tu o amavas?

— Antes? muito!

— Depois?

— Não. Mas era nosso pai...

— E ela era nossa mãe!

— Tens razão. Para os filhos a mãe é sempre a melhor e a mais pura entre as mulheres.

Um sabiá cantou e eles ficaram a escutar, com os olhos rasos de água.

— Foi no Netuno que percebeste tudo, não foi? perguntou Rino mudando de tom.

— Onde havia de ser?

— E só aquela vez bastou?

— Só.

— Manda calar aquele sabiá, Catarina!

— Deixa lá o pássaro; chora.

— ... Parto depois de amanhã. Desta vez a viagem será longa... Entrego em Belém o comando do Netuno a outro. Tenho substituto; está tudo combinado e resolvido. Bem resolvido. Devo fugir-lhe. Não era preciso que evocasses a lembrança do passado para me dissuadir...

— Não tive a intenção de te dissuadir; quer-me parecer que o amor não é figura de barro que se amolgue com os dedos. Somente, como ela ama o dr. Gervásio...

— Por quem soubeste isso?

— Por nossa madrasta, que sem sair daqui sabe sempre de tudo, benza-a Deus!

— Mas quem lhe diria a ela semelhante coisa?!

— Talvez o médico... talvez a cozinheira... talvez o vento. O vento traz-lhe aos ouvidos coisas que ninguém mais ouve. E é uma espada desembainhada para todas as faltas, aquela mulher!

— De mais a mais, é uma calúnia! Camila é discreta; mesmo que isso assim fosse, quem poderia adivinhar?

— João, amores são como luzes através de rendas: aparecem sempre.

— Não, não; é preciso convencê-la de que isso é falso. Mila não ama ninguém; não ama ninguém!

Catarina fechou os olhos por um segundo, depois recomeçaram a andar, um ao lado do outro, silenciosos, pisando o enorme tapete sulferino que as flores dos jambeiros-rosa alastravam no chão. A tarde descia clara e calma, toda azul, com leves tons opalinos.

— Catarina?

— João?

— Precisava ter-te sempre a meu lado...

— Pois casa-te e chama-me para a tua companhia. Eu criarei o~ teus filhos. Procura amar outra mulher. Há tantas no mundo, há tantas.

— Há uma só: a que amam os. Só quero aquela.

— Sofres muito?...

— Horrivelmente, horrivelmente! Este desabafo há de fazer-me bem. Custa muito guardar um segredo destes! E eu guardo o meu há lauto tempo!

— Parecia-te. Bem viste que eu já o tinha comigo. Sorriram ambos, com tristeza.

Como tivessem dado volta ao pomar, passaram pelo recanto onde Catarina tinha o viveiro das rosas. mas não se detiveram. Tornaram a cruzar-se com o jardineiro e, tomando a larga rua dos girassóis. entraram em casa.

Antes de se sentarem à mesa, os dois irmãos foram ao quarto da madrasta. uma senhora muito gorda, que se alastrava pela cama, com um lenço amarrado na cabeça e o rosto polvilhado de amido. A Hemengarda tinha cerrado as janelas e vigiava a doente, na penumbra. Sobre a mesa muitos vidros de remédios, e um cheiro de cânfora espalhado em tudo.

O leito rangeu, ao movimento do corpo enorme, que se voltava a custo, e a enferma, fazendo uma voz débil, queixou-se de muitas dores e de muito frio.

Os enteados disseram-lhe meia dúzia de frases animadoras, recomendaram-lhe paciência e. sentindo que a importunavam. saíram em bicos de pés.

Antes de se sentarem à mesa, Catarina confessou ao irmão sentir-se aliviada com a ausência da madrasta. Teriam assim um jantar mais íntimo.

Ele perguntou:

— Afinal, tu a aborreces só por ela ser tua madrasta?

— Só. Se a morte de minha mãe tivesse sido natural, eu aceitaria depois a madrasta, senão com ternura, ao menos com respeito. Assim, quero-lhe mal, porque, escolhendo meu pai. ela ofendeu minha mãe. Mas o mal está feito e é irremediável, não falemos nela. Supõe que eu sou uma esquisita, que ela é outra, e não penses mais nisso.

Ao jantar falaram-se baixo para não incomodar a doente, cujo quarto era na vizinhança.

Quando à noite o capitão Rino se despediu da irmã no jardim, sentiu, ao abraçá-la, que ela chorava. Era a primeira vez, entre tantas de separação, que isso acontecia. Ele beijou-a consolado, certo de que em toda a terra havia um coração que o amava com firmeza. com sinceridade - odela.