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A Falência/XVII

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Nina tinha voltado do casamento de Mário e despia-se devagar no seu quarto, com os olhos fixos na luz branca do espelho.

Era o fim, e nem por estar tudo consumado se resignava. Para bem dela, os noivos iam nesse mesmo dia para Petrópolis, e de lá só voltariam para bordo de um transatlântico. Como seria doce à Paquita cruzar os mares nos braços do seu amor...

Nina desprendeu do corpete as flores de laranjeira que a noiva lhe dera para casar depressa, e contemplou-as com ironia... ia atirá-las ao chão, quando alguém bateu à porta. Abriu.

Era a Noca, que vinha toda alterada.

— Nossa Senhora! quebrou-se o espelho grande do salão!

— Quem foi que o quebrou? perguntou Nina, para dizer alguma coisa.

— Ninguém sabe. Veja só, que desgraça estará para acontecer! Espelho quebrado: morte ou ruína.

— Morte! se fosse a minha...

— Cala a boca, menina, não diga asneiras. Quem é que ama uma vez só na vida?

— Muita gente... eu.

— Não acredite, deixe falar. A senhora é moça, verá. Mas venha ver o espelho; não presta a gente ficar calada quando está aflita. Parece arte do diabo, cruzes! Logo hoje!

— Vá andando, eu já vou.

Nina mudou de vestido à pressa e desceu.

Encontrou dois criados boquiabertos em frente ao espelho, prevendo desgraças, sugestionados pela influência da Noca.

— Que pena! um espelho tão rico... murmurou Nina maquinalmente, pensando na Paquita.

— O caso não é o dinheiro. Eu cá não tenho pena, tenho medo.

— Agora que se há de fazer? ter paciência e esperar, disse Nina com um sorriso pálido.

— Esperar! Diz você muito bem. Foi uma vontade mais forte que fez aquilo, temos que esperar grandes coisas. Noca não fala à toa. Vocês verão. É melhor não dizer nada a nhá Mila.

— É melhor...

No dia seguinte, quando o dr. Gervásio entrou no jardim de Camila, encontrou-a no terraço, rescendente e fresca no seu peignoir marfim pontilhado de ouro.

— Como estás linda! murmurou ele pegando-lhe na mão, que ela deixou beijar à grande luz, como se a ausência de Mário cegasse todos de casa.

E o casamento de Mário fora um alívio para ambos. Estavam livres daquela testemunha importuna, que tinham de respeitar. Mila bendizia aquele casamento, que a libertava de uma humilhação constante, levando-lhe o filho para as terras do luxo e do prazer. Separando-se, ele ia ser feliz. Que mais poderia desejar um coração de mãe?

Foi nesse mesmo dia, à tarde, que Francisco Teodoro chegou sombrio a casa e, em vez de subir, como de costume, encerrou-se no escritório, em baixo. Camila entrou da rua mais tarde, sacudindo-se à pressa pela escada acima.

Durante o jantar só ela falava, muito risonha, rescendendo à essência com que Gervásio a pulverizara pouco antes no chalezinho da Lagoa, onde escondiam o seu amor. Aquele perfume era como que a alma dele que ela trouxesse consigo.

— Que linda tarde! olhem para o jardim, exclamou ela, apontando para fora com a mio fulgurante de anéis.

Era um por-de-sol maravilhoso.

— Tudo cor de rosa! Parece-me que o jardim nunca teve tantas flores. Como isto é bonito! E há quem fale mal da vida; e há idiotas que se matam!

Francisco Teodoro cruzou o talher sem ter comido.

— O senhor está doente? perguntou-lhe Nina.

— Não tenho vontade de comer, mandem-me o café ao jardim.

Camila contemplou-o com mágoa e explicou aos outros:

— Ele está impressionando com o casamento de Mário. Meninas, vocês procurem entreter e distrair seu pai. Mande guardar um copo de leite para ele, Nina; seu tio não pode ficar assim. Deus queira que ele não me fique doente...

E um véu de tristeza passou pelos olhos, há pouco risonhos, de Mila.

Mas nada houve nessa tarde que entretivesse Francisco Teodoro; ele repelia a companhia de toda a gente para ir passear sozinho lá para o fundo da chácara. Ruth tocou em vão as suas melhores músicas: o pai nem parecia ouvi-las...

Na sala de engomar, a Noca comentava a tristeza do patrão, como um fato anunciado pelo desastre do espelho... "A coisa está começando... Eu não dizia"?

Á noite, enquanto Francisco Teodoro folheava embaixo a papelada do Inocêncio Braga, Mila despia-se em frente do seu psyché, namorando a própria imagem, milagre da juventude, sentindo em um frêmito a delícia de bem merecer um grande amor.

Como a Sulamita, toda ela era formosa. O peito farto, o pescoço alvo e redondo, as mãos pequenas, os pulsos delicados, e uns olhos negros e pestanudos, de onde jorrava uma luz veludosa e doce que toda a vestia de graça.

Ao prender o cabelo, lembrou-se de uma comparação de Gervásio; ele dissera uma vez, ao vê-la pentear-se, que as suas mãos eram como duas aves luminosas esvoaçando na treva. Mila sorriu.

Foi só depois das orações, ao espreguiçar-se no seu largo leito, que se lembrou ter de levantar-se cedo no dia seguinte para ir a bordo despedir-se do filho.

Tudo era como um sonho. O Mário já casado! Parecia-lhe que ainda o estava a ver pequenino e gorducho, engatinhando pela casa, aquele sobrado da rua da Candelária, onde a sua vida fora tão diferente. E foi com a visão daquele filho em criança, daquela carne de rosas, daquela boca inocente que a babava de beijos, que ela adormeceu, sentindo-lhe o peso amado do corpo nos braços saudosos.

Quando soou meia-noite, em toda a casa só havia de pé Francisco Teodoro, que folheava ainda no escritório a papelada do Inocêncio Braga.

Nessa manhã ele tivera o primeiro toque de alarma, num telegrama do Havre para o Jornal, que afirmava ter descido o preço do café nos principais mercados.

Aflito, com a percepção de um desastre iminente e enorme, abalou logo do armazém para o escritório do Braga. que o recebeu entre duas risadinhas fanhosas, repimpado na sua cadeira de couro.

— Que é isso! o senhor é assustadiço... pois não percebe que isto tudo é jogo?

— Não compreendo... balbuciou Francisco Teodoro com um enleio, em que entrava com um amargo desapontamento a doçura de uma vaga esperança.

— Não compreende, porque é um nervoso; não tem a calma dos grandes espíritos empreendedores. Eu desejaria convencê-lo da certeza dos seus lucros; mas na disposição de espírito em que está, vejo que isso é coisa difícil. Verá que amanhã não teremos notícia alguma.

— Aquilo é feito aqui, homem, garanto-lhe que é feito aqui!...

— É impossível!

— Acredite.

— Não pode ser. O Jornal, tio sério...

— Ora, não pode ser!... que ingenuidade! Se eu lhe afirmo, é porque sei. E se não fosse assim eu estaria calmo? Diga, seria possível que eu estivesse calmo?

— Penso de outro modo: tenho lá grande parte do meu capital.

— Ninguém diz o contrário... sei... é natural o seu cuidado; somente, afirmo-lhe que é infundado. Amanhã, ou haverá silêncio, ou há desmentido. Tudo isto é jeito. Olhe, o Gama Torres está satisfeitíssimo; saiu há pouco daqui. Está contente; aquele é um homem do tempo. há de ir longe...

— Pois eu, confesso-me arrependido.

— Ora, não diga tal! que barbaridade! O nosso triunfo é certo. E já que se mostra assim apreensivo, façamos uma coisa; telegrafemos ao Lacerda. Eu por mim não telegrafaria, conheço a alma destas maquinações. Tudo é química. Digo-lhe mais: eu estou contente.. Olhe, amanhã poderei provar-lhe com documentos irrefutáveis a veracidade das minhas afirmações. Venha cá ás duas horas.

Francisco Teodoro saiu menos torturado: mas, á proporção que as horas avançavam, voltava-lhe a inquíetação, a ponto de não poder trabalhar. Fugiu para casa e ali encontrou o mesmo desassossego.

Atirou-se aos papéis: leu-os, releu-os, tirou notas e cada vez sentia maior confusão naquele embrulho de problemas, em que todo o seu bom senso naufragava.

Inquietava-se com pressentimentos. Era muito disso. Afinal, um telegrama isolado, discordando de tudo o que se dizia, podia não ser verdadeiro. Afligiam-no certos zum-zuns da cidade. Os boatos são como os corvos, aparecem no ar atraídos pela podridão oculta.

Todavia. forcejava por acreditar nas boas previsões do Braga. O homem era honesto e tinha nas mãos hábeis o fio da trama: logo, melhor seria esperar pelas tais provas irrefutáveis...

Eram seis horas da manhã quando Camila o chamou para irem ao Equateur.

Foi um alvoroço em casa.

Noca era a mais curiosa; queria ir também despedir-se do Mário e ver por dentro uma daquelas casas flutuantes. onde não viajaria nem à mão de Deus Padre!

Apressou-se em vestir as gêmeas, que se faziam de tolas, exigindo os vestidos novos e os chapéus cor de rosa.

— Não: ponderava ela, deixem os chapéus cor de rosa para passear na cidade... levem os brancos.

— Eu quero levar o chapéu cor de rosa, gritou Lia; e logo Rachel:

— Eu também quero levar o chapéu cor de rosa.

— Que tolice, gente! um chapéu daqueles para o mar!

As meninas berraram, e Mila interveio:

— Pois que levem os chapéus cor de rosa; também vocês gostam de aborrecer as crianças.

As dez horas embarcaram numa lancha. Ruth lembrou-se do passeio ao Netuno, e voltando-se para a mãe, perguntou:

— É verdade! nunca mais a gente soube do capitão Rino.

Camila levantou os ombros.

— Quando ele voltar, hei de pedir-lhe que nos arranje outro passeio pela baía.

— Por uma noite de luar... disse Camila.

Ruth acrescentou, para bulir com a Noca, que se agarrava às bordas da lancha:

— Ou mesmo por uma noite de tempestade, com muitos relâmpagos e trovões. Ainda há de ser mais bonito.

— Ué, que maluquice! exclamou Noca; Nossa Senhora da Penha! eu com este sol todo estou com medo, quanto mais...

— É pena que Nina não tivesse vindo...

— Para quê! para ver a outra?

Francisco Teodoro não ouvia nada; percorria com a vista ansiosa todos os telegramas dos jornais. Nada; não vinha nada; e com isso ele não sabia se havia de achar motivo de alívio ou de maiores apreensões.

Quando subiram ao tombadilho, já lá encontraram o Meireles, mais o Mário e a Paquita. Ela, sempre com o seu arzinho enjoado, contando as palavras que dizia, tratando a família do marido com cerimônias afastadoras. Mário ia e vinha, solícito, obedecendo com sorrisos ás ordens que ela lhe dava em frases curtas:

— Que fosse ao camarote guardar-lhe a bolsa das jóias... Que lhe fosse buscar a capa... Que verificasse quais as malas que iam para o porão e que mandasse a vermelha para o beliche.

Mal ele se lhe aproximava, logo ela o incumbia de qualquer coisa que o afastava: Que contasse os volumes,.. Que entregasse a cesta das frutas ao maitre d'hotel, recomendando-lhe que as metesse na geleira... Que pusesse os seus cartões de visita nas costas das cadeiras, para evitar confusões... Mário girava sobre as solas de borracha dos sapatos claros e lá ia lépido cumprir as ordens. Camila pasmava. Quem lhe diria que aquele era o mesmo Mário indomável, seco, tão imprestável sempre aos favores pedidos pela mãe e as irmãs? Vendo aquilo, subia-lhe do coração aos olhos uma tristeza ciumenta, mágoa de alma ferida a que nenhuma razão abafa a queixa.

Paquita percebeu tudo e redobrou de frieza, mal respondendo às perguntas da sogra.

Entretanto, Teodoro e o Meireles passeavam a largas passadas da proa a ré.

O velho Meireles era de opinião que o telegrama do Jornal inserido na véspera era coisa séria, de alarme. Francisco Teodoro engoliu em seco: não teve coragem para lhe dizer que grande parte do seu capital fora atirado à voragem de uma especulação. Relatou porém, as palavras do Braga e as suas afirmações.

— Não me fale nesse homem, interrompeu o outro com violência; é um especulador sem escrúpulos... quer mais claro? - é um ladrão!

Veio de Portugal, há coisa de seis anos, sem vintém, e sabe quanto já passou para Inglaterra em bom metal? mais de mil contos!

Vi a prova. O patife!

Aquilo é lá da minha freguezia... conheci-lhe o pai, era outro marreco que tal! Homem - não se deixe levar pelas cantigas novas, nós antigos. verdadeiros pés de chumbo, caminhamos devagar e escolhendo terreno. Essas basófias e esses atrevimentos são bons para quem não tem nada a perder... Olhe, lá toca a retirada; avise sua senhora, para descerem sem precipitação...

Ao abraçarem Mário, Francisco Teodoro, com a voz estrangulada. recomendou-lhe:

— Juízo, meu rapaz.

Camila, branca como mármore, apertou o filho com força ao coração; depois, sentindo-o frio no seu abraço, beijou-o no pescoço e na face e fixou nele em uma queixa muda os seus grandes olhos magoados. Foi só na lancha, escondendo-se dos olhares da Paquita, que ela desatou em soluços que ninguém tentou reprimir.

Havia em todos igual ressentimento. Noca chamava mentalmente a Paquita de lambisgóia, percebendo que ela roubava o Mário a toda a família, absolutamente. Ruth reconhecia que as separações são as reveladoras do amor. Cuidara ela nunca por ventura que um abraço de despedida custasse tanta pena? Lia e Rachel abriam olhares curiosos para tantos rostos preocupados, e só Francisco Teodoro acenou para o filho com um lenço, pondo naquele adeus toda a sua ternura.

Quem lhe diria? Agora, na possibilidade de um desastre, a única pessoa da família que ele via salva era o Mário!

Chegando à terra, Camila e as filhas foram de carro para casa, e Francisco Teodoro, depois de almoçar à pressa num restaurante, seguiu impaciente para o armazém.

A porta dele a pretinha Terência guinchava contra um italianinho que se lhe associara sem licença ao negócio, atirando-se a pilhagem do café da calçada.

— Há alguma novidade? perguntou Teodoro ao gerente.

— Não, senhor. Ah! ê verdade, o Mota parece que está moribundo.

— Pobre homem...

— A filha veio hoje procurar o senhor; vinha chorando.

— Há de ser preciso mandar recursos a essa gente... Arreda dali aquele saco, João!

— Coitado do Mota...

O gerente já não o ouvia: determinava serviços.

Chegando ao escritório, Francisco Teodoro tratou de remeter dinheiro ao Mota e informar-se do seu estado. O portador voltou depressa. O velho tivera uma síncope mas estava melhor.

— Coitado do Mota, murmurou Teodoro, consultando o relógio, morto pelas duas horas. E às duas horas correu ao escritório do Inocêncio.

Em cima um empregado informou-o de que o Sr. Inocêncio partira nessa manhã para Petrópolis, a negócio urgente. Deixara dito que na volta iria procurá-lo.

Francisco Teodoro não conteve um movimento de raiva, e saiu tonto, sem cumprimentar ninguém.

O ruído, o trabalho, o movimento alegre da rua fizeram-no sentir mais o seu cansaço moral. Ia cabisbaixo, quando encontrou o Negreiros; deteve-lhe os passos e, quase sem explicação, perguntou-lhe:

— Diga-me cá: que opinião faz você do Inocêncio Braga?

O Negreiros sorriu, coçou o nariz enorme, e sibilou:

— Aquilo é um espertalhão; não é bom fiar, não é bom fiar.

— E que me diz você daquele telegrama do Jornal de ontem, sobre a baixa do café?

— Que hei de dizer? que anuncia catástrofe para muita gente boa. Sabe o que me consola? É que os Estados Unidos ainda levarão um rombo maior do que nós. Não lhe parece?

Que importavam a Francisco Teodoro as falências dos americanos! ele só tremia pela dele, era na sua fortuna que estavam condensados todos os bens do universo.

Negreiros sentiu-lhe a mão fria, ao apertar-lha, e voltou-se de repente, fixando-o nos olhos:

— Homem, querem ver que você...

O negociante não lhe respondeu; simulando pressa passou adiante.

Nessa tarde ele encontrou a casa cheia. D. Inácia espalhava receitas de doces por todos os cantos onde encontrasse dois ouvidos pacientes. A Carlotinha, com o seu ar picante de morena desembaraçada, debicava as Bragas, que riam muito, aludindo aos namorados da Judith e da irmã, piscando para um estudante de medicina, o Oscar Pereira, que elas apresentavam nesse dia à família Teodoro, como um excelente recitador de monólogos.

Mas na casa pouco se apreciavam os versos e ninguém lhos pediu.

O Dr. Gervásio jogava com o Gomes e o Lélio, Camila girava pela casa, esquecendo-se no meio do ruído, da impressão de abandono dessa manhã no Equateur.

Lá dentro, Nina mandava acrescentar mais uma tábua à mesa e descia à adega para determinar ao copeiro os vinhos a servir.

Assim, aquele dia de semana parecia de festa.

Francisco Teodoro sentou-se ao pé do piano e olhou para todos como se olhasse para fantasmas. Que quereria dizer tanta alegria? Então toda aquela gente não teria mais que fazer, nem outras coisas em que pensar?

Não esteve muito tempo sossegado. Lia e Rachel saltaram-lhe para os joelhos, e ele, cansado, deixou-as trepar, e fez de cavalinho durante alguns minutos...