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A Falência/XVIII

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Todos os dias era aquilo: logo pela manhã Francisco Teodoro saltava da cama com sentido nos telegramas do Jornal. Desta vez, como das outras, sofreu o mesmo desapontamento. Lá vinha a notícia de que o café baixava de preço, pouco a pouco, invariavelmente.

Vestiu-se à pressa e desceu ao jardim, taciturno, como se os pesadelos da noite se prolongassem. E o sol estava lindo. As cigarras cantavam pelos tamarineiros.

Eram seis horas, e já Lia e Rachei andavam aos saltos, ainda de calções de dormir. Noca perseguia-as, chamando-as para o banho, com os enxugadores no braço e a saboneteira na mão.

— Então, crianças; que cacetes!

As pequenas, de queixinhos erguidos, sorriam para o pai, tomando-lhe o passo.

— Bons dias, papai!

— Bons dias, papai!

O pai nem sorriu, afastou-as com brandura e disse:

— Vão tomar o seu banho.

— Eu quero passear com o senhor.

— Eu também quero...

— Não façam esperar a Noca. Vão tomar o seu banho. Logo...

As crianças começaram então a desafiar a paciência da mulata, em correrias e negaças. Francisco Teodoro seguiu sozinho para o fundo da chácara. E por ali andou calado, sem atender aos cumprimentos dos empregados que passavam por ele.

Sentia-se opresso, como se carregasse nos ombros um fardo muito pesado. Era a primeira vez que atentava na pequena duração da mocidade: a falta da energia dos outros tempos doía-lhe na alma.

E as cigarras cantavam; felizes, as cigarras, que só têm vida para isso...

A Nina foi ter com ele.

— O senhor anda muito madrugador... Quer almoçar? Está tudo pronto.

Ele puxou pelo relógio.

— Sim, posso ir, são quase nove horas...

Entraram. As pequenas puseram-se aos lados do pai, que lhes metia na boca bocadinhos de pão com ovo.

— O senhor dá tudo às meninas e não come nada! observou Nina.

— Não tenho fome.

— Depois fica doente... por que não fala com o médico?

— Eu? para quê?

— Aqui está o café.

Engolindo o café, de um trago, Francisco Teodoro saiu apressado.

Noca foi espiá-lo à janela e veio dizer à Nina que seu Teodoro parecia outro homem; até mudara de andar. Contemplaram-se as duas, e foi ainda a mulata quem murmurou:

— Quem sabe se alguém disse de nhá Mila, hein?

As onze horas, quando se sentaram à mesa do almoço, já a visão de Teodoro se desvanecera. Deveria ser um mal passageiro.

A mesa era farta, o sol brilhante punha na sala manchas vermelhas, através do toldo riscado das janelas; sobre a toalha havia os mesmos excelentes vinhos e o mesmo excelente aroma de manacá. Nas jardineiras, os tufos rendados das avencas davam, como em todos os dias, igual aspecto de frescura à sala; as crianças rebentavam de saúde... Que mais seria preciso para que as horas voassem na vida como num sonho?

Entretanto, o dr. Gervásio perguntou a Mila:

— Seu marido está melhor?

— Não sei; anda amofinado... Sentiu muito o casamento de Mário. Ele não quer que se diga que está doente. E efetivamente não está. Não sei o que é aquilo.

Gervásio calou-se, pensativo. As gêmeas começaram a rir, uma da outra.

— Viu que bonito cróton está no vaso da entrada, doutor? perguntou Ruth ao médico.

— Vi. O cróton é bonito, o vaso é que é medonho. Tirem aquele vaso de alabastro dali, ou eu não volto cá.

— Acha feio?

— Horrível.

Nesse dia, Francisco Teodoro não achou um instante de alivio no trabalho.

Foi ao escritório do Inocêncio e maçou-o com interrogações, percebendo que o achavam fastidioso, e que o evitavam disfarçadamente.

Já havia perto de três meses que os telegramas anunciavam regularmente numa proporção de acinte, a baixa do café no Havre.

E ainda o Inocêncio conservava o seu risinho zombeteiro, de sentido esgarçado, fugitivo.

Francisco Teodoro, mais enfurecido nesse dia que nos outros, teve ímpetos de bater-lhe, tal foi a raiva de o ver sorrir; todavia, conteve-se, certo de que nada lucraria, e desceu a escada do outro com o protesto de ser a última vez.

Quando entrou no seu escritório, o guarda-livros estendeu-lhe um telegrama: A casa Mendes e Wilson, de Santos, declarava falência, arrastando na queda grandes capitais de Teodoro.

O negociante leu a comunicação em silêncio e em silêncio se conservou por algum tempo, branco como a cal, suando em grossas camarinhas, de olhar parado e o papel aberto nas mãos trêmulas.

Os empregados do escritório assistiam mudos e contrafeitos àquela cena. O Mota já lá estava, muito amarelo, de olhos encovados, mal escovado, com a gravata torta num colarinho amarrotado, com o triste ar de pobreza relaxada; também ele percebeu que pairava ali uma grande desgraça, e sacudiu piedosamente a cabeça, fixando o rosto transtornado do patrão.

Ouviam-se as moscas no ar zumbir com força.

Quinze dias mais tarde anunciava-se o fim de tudo, - a grande casa Teodoro teve de declarar falência.

Na família nada se sabia; o negociante readquirira nos últimos tempos uma relativa serenidade. Tinha de se render à praça numa segunda-feira, e exatamente no domingo a sua mesa encheu-se.

A família Gomes chegou cedo.

D. Inácia mudara mais uma vez o feitio ao seu vestido de seda cor de pinhão; que seda aquela! parecia nova, com as rendas pretas do adorno.

— Então, como se passa por aqui? disse ela alegremente, repimpando-se na melhor cadeira da sala de jantar.

— Assim, assim,... tio Francisco não anda nada bom, está muito abatido, respondeu Nina.

— Isso é que é mau. E sua tia?

— Está lá em cima, já vem.

— Gostaram dos biscoitos que eu mandei?

— Muito, são muito bons.

— Eu trouxe a receita para Mila. Amanhã, se Deus quiser, hei de experimentar outros. Como a Ruth cresce! Aqueles são de polvilho. Perceberam?

— Percebemos.

— Com muitos ovos. Nas confeitarias não se fazem assim...

— Não...

Carlotinha tirava o chapéu em frente ao espelho da etagêre, cantarolando:

"No Brasil é doce dovos, Chiquita Um beijo dado em você." "Um beijo..."

e chilreou um beijo no ar, cumprimentando Ruth, que sorria para ela.

Judith, com o seu andarzinho saltado de mulher baixa, rabeou pela sala, sacudiu os braços numa tilintação de pulseiras e roubou Nina à mãe, puxando-a para o terraço:

— Você sabe duma coisa? Fui pedida em casamento. Ah, como é bom! como eu estou contente!

— Foi o Samuel?

— Então, quem havia de ser?

— Seu pai não queria...

— Que remédio teve ele... Custou, hein? Ele há de passar por aqui... Você vem comigo para o jardim?

Pouco depois chegaram as Bragas com o estudante dos monólogos. O dr. Gervásio mesmo, que não costumava aparecer aos domingos, lá foi para o joguinho com o Lélio e o Gomes.

Francisco Teodoro mandou abrir cerveja. A criançada da vizinhança tagarelava pelos corredores. Fazia um sol!

— Gostou dos biscoitinhos que eu lhe mandei, sr. Teodoro?

— Muito bons... a sra. d. Inácia é emérita. Sabemos.

— São de polvilho... Eu trouxe...

Camila apareceu na sala. Vinha bonita, toda de azul. D. Inácia remexeu-se nas sedas e levantou-se interrompendo a frase. Disse outra:

— Como ela vem! É um céu!

De vez em quando Noca aparecia na porta do corredor, percorria com a vista toda a sala e voltava risonha para dentro, contando aos outros criados, em arremedos alambicados, as pieguices enjoadas da Terezinha Braga com o estudante dos monólogos, pelos vãos das janelas.

— Credo, um mocinho tão aquele...

Às dez horas da noite começou a debandada. As primeiras a sair foram as Bragas com muitos adeuzinhos e risadas. O dr. Gervásio carregou com o Lélio, dando-lhe hospedagem com a condição de lhe ouvir Chopin. As Gomes foram as últimas. As moças saíram carregadas de flores e mudas de plantas, e d. Inácia com o braço vergado ao peso da bolsa cheia de pêssegos inchados, bons para doce.

— Com o pretexto da doçaria, ela passava sempre revista ao pomar de Camila. O marido dava-lhe o braço, com a cabeça erguida, para que não lhe caíssem do nariz o pesado pince-nez de tartaruga.

— Foi um dia bem passado! disse depois Mila à sua gente.

Os outros concordaram.

Recolheram-se. Quando viu toda a casa silenciosa e fechada, Francisco Teodoro entrou no quarto das crianças.

Do gás em lamparina descia uma luz doce, atenuada por um globo de porcelana.

Em duas caminhas iguais, de ferro branco com varais dourados, e separadas apenas por um intervalo de um metro, as duas meninas dormiam profundamente, com os lençóis revoltos, as pernas nuas, os cabelos espalhados sobre as almofadas. Por acaso estavam ambas de papinho para o ar e lábios entreabertos.

Era a primeira vez que as achava semelhantes. Lia, batida de luz, parecia mais clara, tinha um joelho erguido, amparado pela aba da cama; a outra velava-se em uma meia sombra, com as mãos espalmadas no peitinho gordo.

Que dormir tão bonito. Quase que lhes lia os sonhos, através das pálpebras mimosas...

Francisco Teodoro esteve longo tempo a olhar, ora para uma filha, ora para outra. Como eram bons aqueles leitos, como era espaçoso aquele quarto, como eram finos aqueles sapatinhos que descansavam vazios sobre o tapete, e como cheiravam bem aquelas sainhas bordadas e aqueles vestidos brancos que estavam ali atirados para as costas de uma cadeira! E não poderiam crescer assim as suas filhas, com aquele conforto de luxo! Dias depois sairiam do seu palacete, e iriam... para onde? que os esperaria a todos?

Francisco Teodoro curvava-se para beijar Rachel, quando sentiu passos; voltou-se assustado. Era Noca que entrava com um copo de leite. A mulata, que vinha deitar-se, recuou espantada. O negociante explicou:

— Pareceu-me ouvir gemer: vim ver o que era.

— Tão sonhando... às vezes basta mudar de posição e ficam logo quietas...

— Sim, estarão sonhando... queira Deus que os sonhos sejam bons...

— Elas não têm nada! Tão frescas... apalpe só, pra vê...

— Sim, deixe-as dormir... olhe por elas... olhe por elas!

Francisco Teodoro saiu do quarto com um nó na garganta. Como seriam educadas aquelas crianças? As pobres ainda não sabiam nada, nem uma letra... nem uma! Em vez de subir para seu quarto, onde Camila adormecia, ele acendeu uma vela, apagou o gás da saleta e desceu para o seu escritório, no rés do chão.

À uma hora da madrugada, Teodoro escrevia ainda. Do lampião de bronze descia uma luz calma, fixa, propicia à escrita. A mobília de canela e de couro lavrado, nua, bem arrumada, tomava uma feição de espanto naquela claridade muda.

Sobre o contador, o cavalheiro de capa e espada desenhava na parede cor de avelã a sombra da sua atitude arrogante e viva...

Na mesa, ao lado do código de Orlando, o tinteiro de prata tinha reflexos brancos; e só das quatro molduras douradas dos quadros saltavam lampejos luminosos que animavam a sala.

Francisco Teodoro escrevia cartas: acabada uma, começava outra. Dir-se-ia que as palavras eram em todas iguais. A pena corria dando as mesmas voltas e rangendo com força, como se fosse calcada por uns dedos de ferro. Terminada a última, colocou-as em um maço sobre a pasta e encostou-se na larga cadeira, ofegante, com os olhos no vácuo. Esteve largo tempo assim, imóvel. Depois, sem que um único músculo do rosto se lhe contraísse, abriu uma gaveta da secretária, tirou dela um revólver e examinou-o com atenção. Era uma arma nova, reluzindo ainda às últimas fricções da camurça; o negociante revirou-a entre os dedos, moveu o gatilho, carregou-a e tornou a guardá-la na mesma gaveta, que fechou à chave.

Estava ali dentro o descanso, a eterna paz.

Tinha ao alcance da mão o esquecimento de tudo...

No dia seguinte, depois de uma terrível noite de insônia, Teodoro desceu à hora do costume para a sala de jantar, reluzente de cristais e prataria, e sentou-se à mesa, em frente ao terraço que todo se via pelas largas portas abertas. Ao centro, uns degraus amplos desciam para o parque de relvas bem tratadas; junto ao ponto terminal dos balaústres irrompiam, de entre tufos de avenca, dois esplêndidos pés de manacá em flor. Francisco Teodoro olhava para eles sem os ver, absorvido no seu desgosto, quando a afilhada o interrompeu:

— Bons dias, titio!

— Adeus, Nina.

— Estava gostando de ver os manacás?

— Sim...estão bonitos...

— Lindos! Sabe? tia Mila vai ter hoje um desgosto!

— Hein?! perguntou Francisco Teodoro sobressaltado.

— Amanheceu hoje morto o cacatuá, e ninguém sabe porque. Noca já está dizendo que é sinal de desastre em uma casa...

— Ah! ela disse isso?

— Disse. Nós não nos importamos; mas o senhor sabe como tia Mila é impressionável!

— Não lhe digam nada. Quem foi que deu o cacatuá?

— O capitão Rino.. Quer que eu lhe sirva um pouco de fiambre?

— Não... Dê-me uma xícara de chá...

— Mas o bife e os ovos aí vêm...

— Não quero nada. Só chá.

— Coma então destas bolachinhas. Estão muito bem feitas.

Nina foi ao armário, de onde retirou a biscoiteira de cristal. Enquanto o tio comia, ela sentou-se a seu lado e pediu-lhe lápis para escrever uma nota, nas costas de um cartão de visita. Ao mesmo tempo ia dizendo:

— Deus queira que eu não me esqueça de nada do que tia Mila recomendou...

Depois leu alto:

— Para o senhor fazer o favor de dizer a Mme. Guimarães que mande trazer hoje os dois vestidos de seda e amostras de veludo turquesa.

Dizer ao Bastos que faça, pela medida que tem lá, mais um par de sapatos de cetim preto... Há mais: um quilo de bombons e...

— Não diga mais; hoje não posso fazer nada disso.

— Então tia Mila irá a cidade... É melhor.

— Não! que não vá, atalhou ele nervosamente. Dize-lhe que voltarei cedo. Eu farei tudo... mandarei vir os vestidos de seda, os sapatos de cetim, os doces...Ah! a Noca tinha razão! Sabes tu, Nina?

— Eu? murmurou a moça espantada: Eu? repetia ela, com assombro, eu não sei nada!

— Tens razão... cala-te e espera. Expliquem à minha mulher o significado da morte do cacatuá, não faz mal. Adeus, tenho pressa...

Nina ficou pensando:

— Tio Francisco estará doido?

Um lindo dia, quente e luminoso. Nas copas floridas dos flamboyants, as cigarras cantavam estridulamente. Os bondes vinham cheios, e bandos de crianças passavam nas calçadas a caminho do colégio.

Francisco Teodoro é que não caminhava bem: tinha um grande peso derrubando-lhe os ombros, e sentia as pernas amolecidas. Tomou o bonde já na praia. Adiante dele, no banco da frente, ia um portuguezinho recém-chegado, de jaqueta, chapéu de feltro de abas ensebadas e grossos sapatos enlameados. O pequeno volvia para tudo um olhar pasmado, entreabrindo os lábios secos e gretados numa expressão admirativa. Francisco Teodoro não podia desprender a vista daquela criança rústica. Veio-lhe à memória o seu desembarque, a sua pobreza, a crosta da terra pátria que trazia presa às solas brutas dos seus sapatos, e o espanto com que ele, também, nos seus primeiros dias, olhava para este céu, e estas árvores, e estas montanhas, em uma interrogação de esperança e de medo; e da saudade que tivera da broa, da aldeia, das águas claras daquele rio em que se banhava nas tardes de verão, daquelas charnecas onde ia à caça dos grilos, daqueles campos de trigos dourados ao sol, das cerejeiras onde trepava, dos ralhos da mãe, das caminhadas pelas brancas estradas atrás dos burricos do moleiro...

E, em um assomo, teve vontade de dizer ao ouvido do rapazinho: "Volta para a tua aldeia, contenta-te com o pão duro, com a sardinha assada, e a água do bom Deus!

"Onde há uma árvore há sombra onde um homem se deite. Não queiras a riqueza, que ela engana e mente. Mas vale ser pobre toda a vida! Volve; acostuma tua mulher ao trabalho e os teus filhos a rolarem nus pela terra que um dia os há de comer... Se bem os vestires a todos... verás: pesarão ouro e valerão pó..."

Eram dez horas quando o negociante entrou no armazém. Seu Joaquim andava azedo e mal humorado, e até mesmo para o patrão tinha um modo rebarbativo e seco. Depois, o trabalho estacionara; não havia nenhum caminhão à porta e os caixeiros pasmavam-se para as rumas de sacos e para as aranhas do teto.

Francisco Teodoro chegou-se à mesa que estava à esquerda da porta de entrada, apanhou ai a sua correspondência e girando sobre os calcanhares entrou no corredor ao lado e subiu ao escritório.

Em cima estavam só o guarda-livros, que escrevia de pé, e o velho Mota, todo embebido no trabalho. Trocaram-se os bons dias.

— O Leite Mendes mandou cá?

— Não senhor...

— Está tudo direito, não?

— Tudo.

— Escrevi eu mesmo as cartas... veja se estão em ordem...

O guarda-livros fez um gesto de recusa.

— Não; já estou desacostumado dessas coisas... veja. Depois será bom mandá-las entregar, insistiu Teodoro.

— Julgo melhor esperarmos pela resposta do Sidney, de Santos.

— Para quê?

— Adiaremos ao menos a... a catástrofe.

— Ora! o Sidney! há de dizer o mesmo que os outros! Olhe, tenho aqui justamente uma carta dele, que ainda não abri. Vou lê-la agora.

Francisco Teodoro sentou-se muito pálido, e rasgou o sobrescrito com mão trêmula. O guarda-livros desviou a vista. Houve depois da leitura uma grande pausa, em que o silêncio pesava; ao fim de alguns minutos o negociante ergueu-se e começou a passear nervosamente de um lado para o outro. De vez em quando lançava uma pergunta pueril ou distraída:

— Que dia é hoje?

— 29...

— Ah!... sim... 29... é isso... 29... 29... repetia ele baixo.

Os outros calavam-se.

O sol entrava com força pela sacada aberta; Francisco Teodoro pôs as folhas da janela em fresta e voltando-se atravessou vagarosamente e em diagonal o escritório até o canto da talha, cujo barro começou a raspar com a unha.

Da rua vinha uma bulha ensurdecedora: rolavam conjuntamente carroças e vozes praguejantes; os chicotes estalavam no ar e, em grossas nuvens de pó, o cheiro do café cru subia na atmosfera quente.

Súbito, Francisco Teodoro voltou-se para o guarda-livros e disse com voz segura:

— Mande as cartas. E entrou para o seu gabinete.

O empregado releu os sobrescritos e chegando-se à janela do fundo, que deitava para o interior do armazém, gritou para baixo:

— Seu Augusto!

Ninguém lhe respondeu, e como ele repetisse o chamado com mais força, o gerente voltou-se para cima com ar ameaçador e um outro caixeiro gritou:

— Seu Augusto ainda não voltou da rua!

Fechado o gabinete, Francisco Teodoro escreveu longamente Meireles e ao Mário, relatando-lhes o desastre, sem lamentações.

Fechada a carta, lembrou-se que poderia talvez ter recorrido à Lage, mas levantou logo os ombros; era uma mulher, que podia entender de negócios? De mais, as coisas iriam em declive rápido, e um novo empréstimo seria um compromisso irremissível... melhor fora não se ter lembrado dela. E as tias do Castelo? a essas pediria apoio para a família; ele já nada queria para si; poucos dias teria de vida: o golpe era muito forte para deixá-lo de pé. Mas a mulher?... e as filhas? E, afinal, acreditava ele na fortuna das velhas? onde a escondiam elas que ninguém a via? Riquezas, riquezas, vá a gente desencantá-las em cofres ávaros!

As cartas expedidas tinham marcado para o dia seguinte ao meio-dia a reunião dos credores no armazém, para verificação do estado da casa. Francisco Teodoro tinha algumas horas diante de si para avisar a família, mas faltava-lhe a coragem.

Saiu do escritório mais tarde, fugindo do encontro habitual de um ou outro amigo. Logo no primeiro quarteirão teve um sobressalto; à porta da casa Torres estaca um dos seus credores, o Serra; mal lhe adivinhou o corpanzil metido em alvejantes brins, com um fraque preto fugindo para trás e grossa corrente de ouro do Porto arqueando-se-lhe sobre o abdômen arredondado. Francisco Teodoro corou, teve desejos de ser engolido pela terra; e tocando com os dedos trêmulos na aba do chapéu esboçou um sorriso e foi andando.

Já mal podia caminhar: um peso horrível nas pernas fazia-o retardar os passos, exatamente quando os queria acelerar; arrimava-se com força ao seu chapéu de chuva e remexia os beiços como se fosse a falar sozinho; era a secura, tinha um aperto na garganta, parecia-lhe ter engolido todo o pó das ruas.

Já não via ninguém, pouco se importava que o cumprimentassem; ia pensando em tomar o bonde na esquina; mas como não o visse ali em toda a extensão da rua, subiu pela calçada rente aos trilhos. Tinha andado alguns metros quando esbarrou com o Negreiros.

— Então? Todos bons? perguntou-lhe o outro com o ar constrangido de quem já fora informado do desastre e não quizesse aludir a ele.

— Todos bons... estou à espera do bonde.

— Isso às vezes demora... Eu não tenho paciência!

— Han... é aborrecido.

Pararam ambos, e chegando-se para a parede olharam para um coupé particular que roçou na calçada; dentro ia o Inocêncio, que os viu e os cumprimentou com um adeuzinho de mão.

Francisco Teodoro nem tocou no chapéu e murmurou com ódio.

— Cão!

— Vai para a Europa... segue diretamente para Londres, num paquete da Nova Zelândia, amanhã.

— Com o meu dinheiro...

Negreiros engoliu uma palavra qualquer, afagou o nariz e depois, corando um pouco, aproximou-se mais de Teodoro e murmurou:

— Se precisar de mim... os amigos são para as ocasiões...

Francisco Teodoro estremeceu e apertou-lhe a mão com força; houve nos olhos de ambos como que o brilho passageiro e eloqüente de uma lágrima. Vinha um bonde; o negociante tornou a sacudir em silêncio a mão de Negreiros e partiu.

No largo da Carioca, ao esperar outro bonde que o levasse à casa, Francisco Teodoro topou com a baronesa da Lage, farfalhante nas suas sedas e vidrilhos; quis evitá-la, não pôde: a moça estendia-lhe a mão enluvada, sorrindo-lhe através do veuzinho.

— Sabe? Papai escreveu-me. Paquita parece outra, tem engordado muito. Mário está deslumbrado; comprou belos cavalos de raça em Londres; se não fosse a mulher, diz papai que ele poria em poucos dias todo o dinheiro fora...

— Ah...

— Eu tenciono também partir em breve; vou ter com eles a Paris... Irei abraçar a nossa Camila qualquer dia destes. Mário escreveu-lhes?

— Não...

— É noivo... tem desculpa... lá está o seu bonde.

— E a senhora?

— Eu vou de carro. Saudades a todos.

Ela afastou-se ligeira, no frou-frou das saias de seda, e o negociante tomou lugar no bonde, repetindo mentalmente a frase da Lage, acerca de Mário: "Se não fosse a mulher, ele poria em poucos dias todo o dinheiro fora."

Nunca a viagem da cidade à rua dos Voluntários lhe parecera tão curta.

Francisco Teodoro tinha medo de chegar a casa, medo dos beijos das suas gêmeas, à espera dele no jardim, ambas de branco, risonhas e saltitantes, e de Ruth, no patamar, com os seus olhos de esmeralda, que lhe faziam lembrar os olhos da mãe em uma vaga reminiscência saudosa; e, em cima, de Camila, em frente ao espelho, nos últimos retoques da toilette da tarde, com os braços arqueados e os dedos carregados de anéis, unidos nas ondas negras do penteado...

Que lhes diria ele? que lhes diria?!

Lembrou-se então do dr. Gervásio: seria esse amigo quem se encarregasse de dizer tudo a Mila, no dia seguinte, à hora em que ele estivesse com os credores no armazém... no fim, absolutamente no fim!

Essa idéia animou-o.

Iria à noite procurar o médico à sua residência e confessar-lhe-ia tudo. Ao abrir o portão da chácara, viu as suas gêmeas voando nas bicicletas pelas ruas do jardim e ouviu os sons do violino de Ruth em uma sonatina fresca.

Nina fazia um ramo e Camila, já pronta, formosa no seu vestido cor de milho maduro, lia no terraço, com o cotovelo pousado no jarrão das gardênias.