A Falência/XXIII
Adeus, mamãe! nós vamos levar estas sobras do jantar às crianças da Jacinta, ouviu? Nina disse que não vale a pena guardar para amanhã; é pouco e pode azedar.
— Mas que crianças são essas? perguntou Camila às duas gêmeas, que lhe falavam do quintal com a trouxinha da comida num guardanapo.
— São as netas da Jacinta...
Ruth apareceu atrás das irmãs.
— Mamãe não conhece... Jacinta é uma velha paralítica que mora na vizinhança da minha discípula. Sempre que passamos por lá nos pede esmola... E tão velhinha que faz pena. Combinamos com a Nina que sempre que sobrasse alguma coisa do jantar fôssemos levar a ela. Quando me lembro do que se desperdiçava lá em casa! Por um lado, mais vale a gente ser pobre... Os ricos, não é por mal, mas como não conhecem a necessidade dos outros não consolam ninguém...
— Fala baixo! Bem, meus amores, vão antes que seja noite.
— Anda depressa, Noca.
— Mamãe, como nós vamos acompanhadas, podemos depois fazer um passeiozinho?
— Sim...
As crianças saíram com a mulata. Camila sorriu. A Providência não a desamparava. Ainda na sua casa havia sobras para dar...
A tarde caía com lentidão; a viúva, derreada na cadeira de balanço da sala de jantar, olhava pela janela aberta para a grande amendoeira do quintal, cujas folhas cor de ferrugem caíam espaçadamente, com um rumor tímido.
Invadia-a uma grande tristeza, um desejo vago de fugir, de sumir-se na transformação de uma essência diversa. A sua alma amorosa crescia-lhe dentro do peito na ânsia do calor do abraço e o sabor do beijo. Não podia mais, as roupas negras sufocavam-na, lembravam-lhe a todos os instantes aquele minuto inolvidável, que se lhe fixara na vida, que se repetia sessenta vezes em todas as horas e de que ela não se libertaria nunca!
Nunca? Quem sabe? a sua carne forte acordava de um longo letargo com frêmitos de mocidade, capaz de todos os prodígios. Se a paixão que ela via arrefecer nos olhos de Gervásio se reacendesse! Se ele voltasse a amá-la com aquele amor antigo, todo de extremos... Se ele voltasse!
Na palidez da tarde moribunda, a grande amendoeira desnudava tranqüilamente. Camila olhava para ela, invejando-lhe a serenidade, quando sentiu passos.
Voltou-se.
Gervásio sorria-lhe da porta.
— Vem! murmurou ela então, num triunfo, estendendo-lhe os braços... Ele precipitou-se.
— Enfim, voltas a ser minha! a ser minha!
— Espera... sossega... a Nina está em casa...
— Que importa a Nina?
— Cala-te! Oh, eu já não posso mais!
Muito juntos, com as bocas quase unidas, eles repetiam as mesmas palavras de outrora, que soavam agora aos ouvidos de Mila como novas.
O céu ia mudando de cor; as folhas da amendoeira desprendiam-se céleres e com freqüência; dir-se-ia uma tarde de outono, e era apenas começo de verão.
Camila, reentrada no seu sonho maravilhoso, parecia iluminada. O médico puxou-a para si, ia beijá-la, quando a Nina apareceu na sala, com modo disfarçado.
— Querem luz? Como as meninas estão tardando!
Gervásio não respondeu; achou-a importuna. Camila disse com meiguice:
— É cedo, minha filha...
Ficou depois por muito tempo calada, recolhida na sua alegria. Era como se a tivessem encerrado em uma redoma luminosa e cheia de perfumes, em que houvesse outra atmosfera que lhe alterasse a natureza, isolando-a de tudo o mais. As roupas do luto não lhe pesavam, semelhavam rendas levíssimas; pela primeira vez a imagem do marido no último momento se lhe apagou na memória... Era já noite quando ela acompanhou Gervásio ao jardinzinho da entrada. Ele sentia-a trêmula, numa comoção de virgem, como se aquele velho amor pecaminoso fosse um amor nascente.
A sua voz, lenta e grave, tinha inflexões tímidas, e a brancura da sua carne tantas vezes beijada por dois homens, parecia-lhe, na sombra, de uma imaterialidade puríssima.
— Agora és só minha, só minha! dizia Gervásio, apertando-lhe as mãos com força, quando um homem se aproximou do portão e o empurrou. Olharam, com espanto, mas logo Camila deu um grito: reconhecera o filho e correu para ele.
Mário olhou para o médico com aborrecimento não disfarçado e recuou, dando lugar a que ele passasse para a rua, como a despedi-lo.
Trocaram um cumprimento rápido e cruzaram-se.
Foi só depois do portão fechado sobre as costas do outro que o Mário se voltou para a mãe com uma expressão que significava - ainda?!
Camila rompeu em soluços e então o filho abraçou-a docemente, e a foi levando para dentro. Nina acendeu o gás, batendo os dentes, num acesso nervoso; depois contemplaram-se todos, em silêncio. Foi ainda soluçante, que Mila perguntou afinal:
— A Paquita?
— Está muito pesada, por isso não veio.
Camila sentiu o sangue sumir-lhe. Que! um neto! o seu Mário ia ter um filho!
— Demorei-me mais na Europa por esse motivo: os médicos acharam imprudente que a Paquita se metesse em viagens...
— Fizeram bem. Por aqui sofreu-se tanto! Quando chegaram?
— Esta madrugada. Desembarcamos às nove horas...
Outra decepção: todo o dia. no Rio, e só à noite o filho a procurava!
Ele explicou: tivera muito trabalho, idas à alfândega, uma trapalhada! E as irmãs? onde estavam as irmãs?
— Já vêm, andam aí pela calçada. Vai avisá-las, Nina.
A moça saiu. Mário continuou:
— Porque não as entregou à minha cunhada? Ela escreveu-nos falando nisso...
— Tive pena... não me quero separar delas.
— Sim, concordo que é penoso; mas é para o bem delas, e esta situação não pode continuar. Paquita é uma mulher sensata, mesmo a bordo determinou tudo da melhor maneira: Lia e Rachei vão para a casa de minha cunhada; Ruth irá morar conosco, isto até lhe facilitará um casamento, coisa sempre difícil para uma moça pobre, e Nina tem o recurso de ir para a casa do pai...
— E...eu?!
— A senhora, visto que agora é livre... porque não se há de casar?
Camila tornou-se rubra e escondeu o rosto nas mãos.
Mário não soubera reprimir-se, e já agora prosseguia:
— Acho preferível o casamento à continuação desta vida. Perdoe-me que lhe diga, mas suas filhas merecem outros exemplos...
As mãos de Mila, geladas, apertaram com mais força o rosto em fogo.
Mário falou ainda.
Ele premeditara o seu discurso, ao lado da previdente Paquita, mas a língua recusava-se a repeti-lo inteirinho, no seu rigor de forma decisiva.
Vinha como uma espada, cortando todos os nós. Prevalecia-se da sua autoridade de homem.
A mãe teve nojo, e num só grito explodiram-lhe todas as queixas. As faces, de vermelhas tornaram-se lívidas, as mãos e os beiços tremiam-lhe; avançou:
— Vá dizer à Paquita, à sua prática e sensata Paquita, que eu não preciso do dinheiro dela ouviu? Não se demore, que ela é capaz de bater em você'
- Mamãe!
— Perversos! vir de tão longe, o meu filho, para me dizer isto. O meu filho! e eu que tinha tantas saudades!
— Mamãe, a senhora é injusta...
— Injusta é ela, que me quer separar de todos os filhos e te ensina a faltar-me ao respeito. Acham que tenho sofrido pouco?!
— Acalme-se e reconhecerá que temos razão. Paquita é um anjo.
— Um diabo do inferno!
— A senhora está me ofendendo.
— E ninguém me ofendeu? Diga! ninguém me ofendeu?!
— Sossegue: tudo se há de arranjar; bem sabe que eu não tenho nada; a fortuna é de minha mulher, mas nós lhe daremos uma mesada, visto que...
— Recuso; não quero nada dessas mãos. O meu filho morreu no dia em que se casou. Se o envergonho, é melhor fingir que não me conhece. Vá-se embora.
— Mamãe...
— Vá-se embora! Eu não preciso de nada. Suas irmãs saíram para dar uma esmola. Temos sobras em casa. Que castigo, meu Deus!
— Não tive a intenção de a ofender. Se eu não tivesse encontrado aqui aquele maldito homem, as coisas teriam caminhado de outra maneira. Compete agora a mim o dever de zelar pela sua honra. A senhora é viúva, o Dr. Gervásio é solteiro, amam-se, casem-se. E lógico.
— Pelo amor de Deus! Mário!
— A senhora não é criança, deve perceber que desse modo compromete o futuro das meninas. O tempo lhe dirá se tenho razão...
— Que insistência! uma vez por todas: basta, basta, basta!
— Bem. mamãe, calo-me.
— Enfim!
Era oportuno o ponto. As meninas entravam em tropel pelo jardim, gritando:
— Mário, Mário!
Ele chegou à porta, agitadíssimo e estendeu os braços a Ruth, que lhe pareceu muito magrinha, já de vestido comprido, como uma senhora. O abraço evocou em ambos a lembrança do pai. Mário semeou beijos e lágrimas nos cabelos da irmã, na sua primeira efusão de ternura.
Foi só depois de tudo acabado, que à Noca, contemplando o moço de frente, murmurou:
— Gentes! reparem como o bigode de Mário cresceu, e como ele está bonito!