A Harpa do Crente/II

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É tão suave ess'hora,

Em que nos foge o dia,

E em que suscita a Lua

Das ondas a ardentia,


Se em alcantis marinhos,

Nas rochas assentado,

O trovador medita

Em sonhos enteado!


O mar azul se encrespa

Coa vespertina brisa,

E no casal da serra

A luz já se divisa.


E tudo em roda cala

Na praia sinuosa,

Salvo o som do remanso

Quebrando em furna algosa.


Ali folga o poeta

Nos desvarios seus,

E nessa paz que o cerca

Bendiz a mão de Deus.


Mas despregou seu grito

A alcíone gemente,

E nuvem pequenina

Ergueu-se no ocidente:


E sobe, e cresce, e imensa

Nos céus negra flutua,

E o vento das procelas

Já varre a fraga nua.


Turba-se o vasto oceano.

Com hórrido clamor;

Dos vagalhões nas ribas

Expira o vão furor


E do poeta a fronte

Cobriu véu de tristeza;

Calou, à luz do raio,

Seu hino à natureza.


Pela alma lhe vagava

Um negro pensamento,

Da alcíone ao gemido,

Ao sibilar do vento.


Era blasfema ideia,

Que triunfava enfim;

Mas voz soou ignota,

Que lhe dizia assim:


«Cantor, esse queixume

Da núncia das procelas,

E as nuvens, que te roubam

Miríades de estrelas,


E o frémito dos euros,

E o estourar da vaga,

Na praia, que revolve,

Na rocha, onde se esmaga,


Onde espalhava a brisa

Sussurro harmonioso,

Enquanto do éter puro

Descia o Sol radioso,


Tipo da vida do homem,

É do universo a vida:

Depois do afã repouso,

Depois da paz a lida.


Se ergueste a Deus um hino

Em dias de amargura;

Se te amostraste grato

Nos dias de ventura,


Seu nome não maldigas

Quando se turba o mar:

No Deus, que é pai, confia,

Do raio ao cintilar.


Ele o mandou: a causa

Disso o universo ignora,

E mudo está. O nume,

Como o universo, adora!»


Oh, sim, torva blasfémia

Não manchará seu canto!

Brama a procela embora;

Pese sobre ele o espanto;


Que de sua harpa os hinos

Derramará contente

Aos pés de Deus, qual óleo

Do nardo recendente.