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A Harpa do Crente/IV

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Solevantado o corpo, os olhos fitos,

As magras mãos cruzadas sobre o peito,

Vede-o, tão moço, velador de angústias,

Pela alta noite em solitário leito.


Por essas faces pálidas, cavadas,

Olhai, em fio as lágrimas deslizam;

E com o pulso, que apressado bate,

Do coração os estos harmonizam.


É que nas veias lhe circula a febre:

É que a fronte lhe alaga o suor frio;

É que lá dentro à dor, que o vai roendo,

Responde horrível íntimo cicio.


Encostando na mão o rosto aceso,

Fitou os olhos húmidos de pranto

Na lâmpada mortal ali pendente,

E lá consigo modulou um canto.


É um hino de amor e de esperança?

É oração de angústia e de saudade?

Resignado na dor, saúda a morte,

Ou vibra aos céus blasfémia d'impiedade?


É isso tudo, tumultuando incerto

No delírio febril daquela mente,

Que, balouçada à borda do sepulcro,

Volve após si a vista longamente.


É a poesia a murmurar-lhe na alma

Última nota de quebrada lira;

É o gemido do tombar do cedro;

É triste adeus do trovador que expira.


DESESPERANÇA


Meia-noite bateu, volvendo ao nada

Um dia mais, e caminhando eu sigo!

Vejo-te bem, ó campa misteriosa...

Eu vou, eu vou! Breve serei contigo!


Qual tufão, que ao passar agita o pego,

Meu plácido existir turvou a sorte:

Hálito impuro de pulmões ralados

Me diz que neles se assentou a morte:


Enquanto mil e mil no largo mundo

Dormem em paz sorrindo, eu velo e penso,

E julgo ouvir as preces por finados,

E ver a tumba e o fumegar do incenso.


Se dormito um momento, acordo em sustos;

Pulos me dá o coração no peito,

E abraço e beijo de uma vida extinta

O último sócio, o doloroso leito.


De um abismo insondado às agras bordas

Insanável doença me há guiado,

E disse-me: «No fundo o esquecimento:

Desce; mas desce com andar pausado.»


E eu lento vou descendo, e sondo as trevas:

Busco parar; parar um só instante!

Mas a cruel, travando-me da dextra,

Me faz cair mais fundo, e grita: «Avante!»


Porque escutar o trânsito das horas?

Alguma delas trar-me-á conforto?

Não! Esses golpes, que no bronze ferem,

São pura mim como dobrar por morto.


«Morto!, morto!» me clama a consciência:

Diz-mo este respirar rouco e profundo.

Ai!, porque fremes, coração de fogo,

Dentro de um seio corrompido e imundo?


Beber um ar diáfano e suave,

Que renovou da tarde o brando vento,

E convertê-lo, no aspirar contínuo,

Em bafo apodrecido e peçonhento!


Estender para o amigo a mão mirrada,

E ele negar a mão ao pobre amigo;

Querer uni-lo ao seio descarnudo,

E ele fugir, temendo o seu perigo!


E ver após um dia ainda cem dias,

Nus d'esperança, férteis de amargura;

Socorrer-me ao porvir, e achá-lo um ermo,

E só, bem lá no extremo, a sepultura!


Agora!... quando a vida me sorria:

Agora!... que meu estro se acendera;

Que eu me enlaçava a um mundo d'esperanças,

Como se enlaça pelo choupo a hera,


Deixar tudo, e partir, sozinho e mudo;

Varrer-me o nome escuro esquecimento:

Não ter um eco de louvor, que afague

Do desgraçado o humilde monumento!


Ó tu, sede de um nome glorioso,

Que tão fagueiros sonhos me tecias,

Fugiste, e só me resta a pobre herança

De ver a luz do Sol mais alguns dias.


Vestem-se os campos do verdor primeiro:

Já das aves canções no bosque ecoam:

Não para mim, que só escuto atento

Funéreos dobres que no templo soam!


Eu que existo, e que penso, e falo, e vivo,

Irei tão cedo repousar na terra?!

Oh, meu Deus, oh, meu Deus!, um ano ao menos;

Um louro só... e meu sepulcro cerra!


E tão bom respirar, e a luz brilhante

Do sol oriental saudar no outeiro!

Ai, na manhã saudá-la posso ainda;

Mas será este Inverno o derradeiro!


Quando de pomos o vergel for cheio;

Quando ondear o trigo na planura;

Quando pender com áureo fruto a vide,

Eu também penderei na sepultura.


Dos que me cercam no turbado aspecto,

Na voz que prende desusado enleio,

No pranto a furto, no fingido riso

Fatal sentença de morrer eu leio.


Vistes vós criminoso, que hão lançado

Seus juízes nos trances da agonia,

Em oratório estreito, onde não entra

Suavíssima luz do claro dia;


Diante a cruz, ao lado o sacerdote,

O cadafalso, o crime, o algoz na mente,

O povo tumultuando, o extremo arranco,

E Céu, e Inferno, e as maldições da gente?

Se adormece, lá surge um pesadelo,

Com os martírios da sua alma acorde;

Desperta logo, e à terra se arremessa,

E os punhos cerra, e delirante os morde.


Sobre as lájeas do duro pavimento

De vergões e de sangue o rosto cobre.

Ergue-se e escuta com cabelos hirtos

Do sino ao longe o compassado dobre.


Sem esperança!...

Não! Do cadafalso

Sobe as escudas o perdão às vezes;

Porém a mim... não me dirão: «És salvo!»

E o meu suplício durará por meses.


Dizer posso: «Existi: que a dor conheço!»

Do gozo a taça só provei por horas:

E serei teu, calado cemitério,

Que engenho, glória, amor, tudo devoras.


Se o furacão rugiu, e o débil tronco

De árvore tenra espedaçou passando,

Quem se doeu de a ver jazendo em terra?

Tal é o meu destino miserando!


Númen de santo amor, mulher querida,

Anjo do Céu, encanto da existência.

Ora por mim a Deus, que há-de escutar-te.

Por ri me salve a mão da Providência.


Vem: aperta-me a dextra... Oh, foge, foge!

Um beijo ardente aos lábios teus voara:

E neste beijo venenoso a morte

Talvez este infeliz só te entregara!


Se eu pudesse viver... como teus dias

Cercaria de amor suave e puro!

Como te fora plácido o presente;

Quanto risonho o aspecto do futuro!


Porém, medonho espectro ante meus olhos,

Como sombra infernal perpétuo ondeia,

Bradando-me que vai partir-se o fio

Com que da minha vida se urde a teia.


Entregue à sedução enquanto eu durmo,

No turbilhão do mundo hei-de deixar-te!

Quem velará por ti, pomba inocente?

Quem do perjúrio poderá salvar-te?


Quando eu cerrar os olhos moribundos

Tu verterás por mim pranto saudoso;

Mas quem me diz que não virá o riso

Banhar teu rosto triste e lacrimoso?


Ai, o extinto só herda o esquecimento!

Um novo amor te agitará o peito:

E a dura lájea cobrirá meus ossos

Frios, despidos sobre térreo leito!...


Ó Deus, porque este cálix de agonia

Até as bordas de amargor me encheste?

Se eu devia acabar na juventude,

Porque ao mundo e a seus sonhos me prendeste?


Virgem do meu amor, porque perdê-la?

Porque entre nós a campa há-de assentar-se?

Tua suprema paz com gozo ou dores

Do mortal, que em ti crê, pode turbar-se?


Não haver quem me salve! e vir um dia

Em que de minha o nome ainda lhe desse!

Então, Senhor, o umbral da eternidade,

Talvez sem um queixume, transpusesse.


Mas, qual flor em botão pendida e murcha,

Sem de fragrâncias perfumar a brisa,

Eu poeta, eu amante, ir esconder-me

Sob uma lousa desprezada e lisa!


Porquê? Qual foi meu crime, ó Deus terrível?

Em te adorar que fui, senão insano?...

O teu fatal poder hoje maldigo!

O que te chama pai, mente: és tirano.


E se aos pés de teu trono os ais não chegam;

Se os gemidos da terra os ares somem;

Se a Providência é crença vã, mentida,

Porque geraste a inteligência do homem?


Porque da virgem no sorrir puseste

Santo presságio de suprema dita,

E apontaste ao poeta a imensidade

Na ânsia de glória que em sua alma habita?


A imensidade!... E que me importa herdá-la,

Se na Terra passei sem ser sentido?

Que vale eterno vaguear no espaço,

Se nosso nome se afundou no olvido?


O ANJO-DA-GUARDA


Ímpio, silêncio! A tua voz blasfema

Da noite a paz perturba.

Verme, que te rebelas

Sob a mão do Senhor,

Vês os milhões d'estrelas

De nítido fulgor,

Que, em ordenada turba,

A Deus entoam incessantes hinos?

Quantas vezes apaga

Do livro da existência

Um orbe a mão do Eterno!

E o belo astro que expira

Maldiz a Providência,

Maldiz a mão que o esmaga?

Acaso pára o cântico superno?

Ou apenas suspira

O moribundo,

Que se chamava um mundo?

Quem vai pôr uma campa sobre os restos

Desse inerte planeta,

Que o destrutor cometa

Incinerou na rápida passagem?

E tu, átomo obscuro,

Que varre à tarde a aragem,

Soltas do seio impuro

Maldição insensata,

Porque o teu Deus te evoca à eternidade?

Que é o viver? O umbral, a que um momento

O espírito, surgindo

Das solidões do nada

À voz do Criador, se encosta, e atento

Contempla a luz e o céu; donde desata

Seu voo à imensidade.

Geme acaso o passarinho

De saudade,

Quando as asas expande, e deixa o ninho

A vez primeira, a mergulhar nos ares?

Volve olhos lacrimosos

Aos mares tormentosos

O navegante, quando aproa às plagas

Da pátria suspirada?

Porque morres?! Pergunta à Providência

Porque te fez nascer.

Qual era o teu direito a ver o mundo;

Teu jus à existência?

Olha no Outono o ulmeiro

Que o vendaval agita,

E cujas ténues folhas

Aos centos precipita.

São a folha do ulmeiro o nome e a fama,

E o amar dos humanos:

Ao nada do que foi assim se atiram

No vórtice dos anos.

Que é a glória na Terra? Um eco frouxo,

Que somem mil ruídos.

E a voz da Terra o que é, na voz imensa

Dos orbes reunidos?

Amor!, amor terreno!... Ai, se pudesses

Compreender a amargura,

Com que te choro, ó alma transviada!

Eu, que te amei do berço, e qual doçura

Há no afecto que liga o anjo ao homem,

Rindo despiras esse corpo enfermo,

Paru te unir a mim, para aspirares

O gozo celestial de amor sem termo!

Alma triste, que mesquinha

Te debruças sobre o Inferno,

Ouve o anjo, pobrezinha;

Vem ao gozo sempiterno.

Resigna-te e espera, e os dias de prova

Serão para o crente quais breves instantes.

Tomar-te-ei nos braços no trance da morte,

Fendendo o infinito coas asas radiantes.

Depois, das alturas teu térreo vestido

Sorrindo veremos na Terra guardar

E ao hino de Hossana nos coros celestes

A voz de um remido iremos juntar.


A GRAÇA


Que harmonia suave

É esta, que na mente

Eu sinto murmurar,

Ora profunda e grave,

Ora meiga e cadente,

Ora que faz chorar?

Porque da morte a sombra,

Que para mim em tudo

Negra se reproduz,

Se aclara, e desassombra

Seu gesto carrancudo,

Banhada em branda luz?

Porque no coração

Não sinto pesar tanto

O férreo pé da dor,

E o hino da oração,

Em vez de irado canto,

Me pede íntimo ardor?


És tu, meu anjo, cuja voz divina

Vem consolar a solidão do enfermo,

E a contemplar com placidez o ensina

De curta vida o derradeiro termo?


Oh, sim!, és tu, que na infantil idade,.

Da aurora à frouxa luz,

Me dizias: «Acorda, inocentinho,

Faz o sinal da Cruz.»

És tu, que eu via em sonhos, nesses anos

De inda puro sonhar,

Em nuvem d'ouro e púrpura descendo

Coas roupas a alvejar.

És tu, és tu!, que ao pôr do Sol, na veiga,

Junto ao bosque fremente,

Me contavas mistérios, harmonias

Dos Céus, do mar dormente.

És tu, és tu!, que, lá, nesta alma absorta

Modulavas o canto,

Que de noite, ao luar, sozinho erguia

Ao Deus três vezes santo.

És tu, que eu esqueci na idade ardente

Das paixões juvenis,

E que voltas a mim, sincero amigo,

Quando sou infeliz.

Sinta a tua voz de novo,

Que me revoca a Deus:

Inspira-me a esperança,

Que te seguiu dos Céus!...


RESIGNAÇÃO


No teu seio, reclinado

Dormirei, Senhor, um dia,

Quando for na terra fria

Meu repouso procurar;


Quando a lousa do sepulcro

Sobre mim tiver caído,

E este espírito afligido

Vir a tua luz brilhar!


No teu seio, de pesares

O existir não se entretece;

Lá eterno o amor florece;

Lá florece eterna paz:


Lá bramir junto ao poeta

Não irão paixões e dores,

Vãos desejos, vãos temores

Do desterro em que ele jaz.


Hora extrema, eu te saúdo!

Salve, ó trevas da jazida,

Donde espera erguer-se à vida

Meu espírito imortal!


Anjo bom, não me abandones

Neste trance dilatado;

Que contrito, resignado,

Me acharás na hora fatal.


E depois... perdoa, ó anjo,

Ao amor do moribundo,

Que só deixa neste mundo

Pouco pó, muito gemer.


Oh... depois... diz à mesquinha

Um segredo de doçura:

Que na pátria o amor se apura,

Que o desterro viu nascer.


Que é o Céu a pátria nossa;

Que é o mundo exílio breve;

Que o morrer é cousa leve;

Que é princípio, não é fim:


Que duas almas que se amaram

Vão lá ter nova existência,

Confundidas numa essência,

A de um novo querubim.