A Hydra
Ha muito que desceu das orientaes montanhas
A hydra singular que espalha nas ardencias
D'uma luta febril scintillações estranhas!
Ella galga, rugindo, ás grandes eminencias,
E emquanto vae soltando o silvo pelo espaço
Engrossa á luz do sol na seiva das consciencias.
Tem rijezas sem par, como de roscas d'aço
E corre descrevendo em giros caprichosos
Na leiva popular um indefinido traço.
Prefere aos antros vis os focos luminosos
E em mil voltas crueis aperta dia a dia,
N'uma longa espiral, os thronos carunchosos.
Passou pelo paiz da candida Utopia:
Nos mythicos rosaes viveu d'um vago aroma
Ao pallido fulgor da aurora que rompia.
Mas hoje com valor em toda a parte assoma,
E sem temer sequer a lugubre vizeira
Ha muito que transpoz os porticos de Roma.
E os Papas mais os Reis sentindo-a na carreira
Do seu longo triumpho, um tanto apavorados,
Trataram d'acender a livida fogueira.
E ao galope lançando os esquadrões cerrados
Começaram depois, na terra, a perseguil-a,
A cumplice fatal dos lividos Pecados!
Mas ella sem temor, nos cerberos tranquilla,
Derrama cada vez mais bellos e fecundos
Os intensos clarões da lucida pupilla,
E emquanto a imprecação de tantos moribundos,
Os despotas crueis, acolhem com desdem,
A hydra immensa—a Idéa—a farejar nos mundos
Ainda a garra adunca afia contra alguem!