A Intrusa/III
O trem dos subúrbios ia partir, quando Adolfo e Argemiro entraram na gare da Central. Adiante deles corria uma multidão pressurosa e atrapalhada, sobraçando embrulhos e arrastando crianças.
– A hora do jantar aqui é uma hora perigosa, Argemiro! E digam que o feijãozinho não tem prestígio!
Nesse instante sentiram-se empurrados. Eram umas senhoras que lhes tomavam a dianteira no assalto, muito nervosas, olhando para trás, a contar-se, com medo que não ficasse alguma extraviada.
– Isto é uma ignomínia. Obriga tua sogra a vir cá para baixo.
– Imagina se não lhe tenho pedido! Cada vez que vou ver minha filha é este horror! E perco um tempo!
Caldas rogou uma praga.
– Que foi isso?! olha se te mandam para o xadrez!...
– Aquele sujeito ia me arrebatando o pacote dos marrons de tua filha! Não lhe basta a carga. Gente amiga de embrulhos, a dos subúrbios! Olha.
– Não tenho tempo. Entra.
Entraram ambos para um carro.
Cheirava a carvão de pedra e havia calor.
Argemiro continuou, depois de sentado:
– Minha sogra tem razão; ela vive como uma abadessa de convento rico; tem um prestígio por toda aquela redondeza que nem calculas... Muito boa, muito esmoler, é o centro de uma população de pobres e de famílias que, se não dependem dela materialmente, acostumaram-se à sua tutela moral e não a dispensam. Eu compreendo-a e dou-lhe razão. Há ainda outro motivo que a obriga a viver na chácara: é o empenho de ter a neta só para si. Minha mulher, não sei se já te disse, era filha única e criada com um mimo raro; durante o tempo em que vivi casado tive ocasião de conhecer a mãe mais extremosa que jamais vi. Para mim foi de uma bondade e de uma ternura encantadora. Amava-me porque via bem quanto eu fazia a filha feliz... A neta reproduz para ela a filha morta. Glória foi para casa da avó muito pequena; foi ela quem a criou, julga-se com todo o direito a guardá-la para sempre... E é para tê-la só para si, nos mesmos lugares em que cresceu minha mulher, que teima em não sair do seu canto...
– E contigo não se conta?
– Considera-me muito, mas entende, e com razão, que não posso ter Glória em minha companhia.
– E se te casares?
– Ela sabe bem que isso não acontecerá nunca. Minha sogra herdou o ciúme da filha... Sabes que minha mulher me pediu que não me tornasse a casar...
– Todas as mulheres rogam aos maridos a mesma coisa, e afinal... todos os viúvos se casam! Mais depressa que os solteiros, nota.
– Sinto-me bem assim.
– Teu sogro aferra-se também por gosto a este sítio?
– Por gosto e por economia. Ele explica melhor a sua predileção pelo campo, dizendo que, à sombra das suas mangueiras, se sente mais longe da República...
– Aí está! e eu nunca o ouvi falar em política...
– Não é homem que discuta fatos consumados. Depois, está velho e é amigo do repouso... Fez-se botânico, para entreter os ócios da chácara. Teve uma mocidade tempestuosa; a mulher não foi feliz; agora então, para compensá-la, dá-lhe toda a soberania e é um cordeiro. O bom velho fez esquecido o mau rapaz...
Argemiro reparou que ainda tinha nas mãos distraídas um lequezinho de papel apanhado à entrada do vagão. Revirou-o entre os dedos: tinha uma vareta quebrada, unida às outras por um fio de linha.
– Deve ser daquela moça que se remexeu há bocado procurando qualquer coisa... Pensei que lhe tivessem roubado o relógio!
– Talvez faça falta...
Era dela. Argemiro, ao entregar-lhe o leque, notou-lhe um movimento de alegria mal disfarçada. Voltou a sentar-se e Caldas instou:
– Influi teu sogro a vender as suas terras em Minas. O Barreto pediu-me para organizar uma colônia suíça, para a indústria dos laticínios... e convém lhe adicionar às dele as terras do barão. Dão-lhe resultado?
– Filho, não sei. Meu sogro é um homem calado e eu fujo de mostrar interesse por questões de dinheiro. Mas onde diabo vais tu arranjar suíços?!
– À China, talvez... que pergunta! Irei à Suíça, homem!
– Sempre arranjas uns negócios!
– Nunca os procuro. Eles entram por seus pés em minha casa; aí, ou os recebo ou atiro-os pela porta afora. Fica certo que negócios procurados não prestam. Não há nada como um sujeito passar por homem rico, para enriquecer... O próprio indivíduo chega até a iludir-se e a ficar mais bonito... Conheces maior volúpia que a do dinheiro, senhor absoluto do mundo todo? Só o que é bom e caro dá prazer...
Argemiro sorriu, lembrando-se do lequezinho quebrado, e do gesto de contentamento que fizera a dona ao reavê-lo. Pobrezinha...
Caldas, por ter confiança no amigo, entrou a falar-lhe baixo da sua cooperação nos relatórios do Vieirinha, ainda maior trabalho do que tivera com os relatórios do Teobaldo, quando ministro da fazenda...
– Dize-me cá, – atalhou Argemiro. – Em que disposição está o presidente a respeito do Pedrosa, sabes?
– O burro do Pedrosa vai ser ministro.
Argemiro riu-se; Caldas retomou o fio das suas confidências interrompidas.
O trem corria de estação em estação, com os seus guinchos ensurdecedores. Uma criança chorava no colo da mãe aflita; um grupo de rapazes amarelos e desdentados falava de eleições do Clube Riachuelo, ao pé de uma senhora de cabelos grisalhos, bem vestida, e que viajava só.
Lá fora a paisagem estendia-se larga, banhada de sol escaldante. Um véu fino de pó dourava a atmosfera. Laranjeiras pequenas, de grandes frutos dourados, alegravam aqui e acolá um ou outro ponto dos campos mal tratados, onde em gramados secos trilhas barrentas descreviam linhas tortuosas.
– Isto é desconsolador... – observou Argemiro, apontando para a extensa pradaria, onde em vários trechos se agrupavam casinhas feias.
– E este trem poderia rolar entre pomares cheirosos. O Brasil é a terra da flor esquisita e da fruta saborosa. De um lado e de outro destas estradas, se tivéssemos camponesas e agricultores de bom gosto, veríamos, Argemiro, lindas orquídeas suspensas na galharia de árvores frutíferas. Olha bem para aquilo! É preciso não ter absolutamente gosto nem instinto, para se fazer uma cerca assim, de paus tortos, aqui no país do bambu. Do lindíssimo bambu! Ah! o japonês! que povo feliz e aproveitador... Vou lembrar ao Barreto instalarmos aqui uma colônia de japoneses, com a condição de fazerem eles mesmos as suas casas e trazerem muitas musmés bonitas...
– Condição essencial!
– E que tu com toda a tua viuvez aproveitarias melhor do que eu...
– Aprecio pouco o tipo e detesto a raça...
Adiante, o grupo de rapazes aumentara com outros sujeitos, que, abandonando os seus lugares, tinham vindo discutir a eleição do clube. Um dos moços, no calor da discussão, sentara-se no braço do banco em que viajava a senhora de cabelos grisalhos. Ela encolheu-se, com ar constrangido. O rapaz gritava aos outros:
– Se eu não tivesse educação, não teria contido o ímpeto que tive de esbofetear o Andrade, ali mesmo no clube!
Um outro advertiu-o de que ele estava incomodando a viajante; ele levantou-se com uma desculpa e foi nesse instante que o trem parou em Madureira.
Caldas e Argemiro encontraram na estação a vitória do barão, que os esperava.
– Lá em casa todos bons? – perguntou Argemiro ao cocheiro.
– Todos bons.
– Nota esta esquisitice, Adolfo; só me lembra que minha filha pode estar doente no momento em que me aproximo dela. Assalta-me então o terror de a ir encontrar de cama...
A chácara do barão ficava a um quilômetro da estação. O carrinho partiu ao galope de um cavalo ligeiro, e dez minutos depois transpunha o largo portão da chácara, seguindo até à porta da habitação, por uma extensa rua de mangueiras belíssimas.
– Como isto repousa a gente! – exclamou Caldas, aspirando com força o aroma da flor de fruta e pascendo o olhar pela frescura daquelas sombras.
– O Paraíso... murmurou Argemiro, esticando o pescoço, a ver se via, ainda que de longe, a filha.
Antes que o carro chegasse à casa, Maria da Glória atravessou aos gritos um grande relvado lateral da rua e, irrompendo de entre as mangueiras, atirou-se para o carro alegremente:
– Papai! papai!
O cocheiro mal teve tempo de diminuir a marcha do animal e ela trepou para o estribo, enfiando no carro a cara afogueada e risonha. O pai segurou-a, puxando-a para dentro, sem coragem de ralhar com ela por aquela imprudência. Tentou falar, ela cobriu-lhe as barbas de beijos.
– Que exuberância! – exclamou Caldas, rindo.
Chegavam à porta do velho palacete dos barões do Cerro Alegre.
No patamar da escada, o sogro do Argemiro, barbeado de fresco, com o seu corpo franzino dentro de brins bem alvejados e o boné de seda preta seguro na mão fina e nervosa, sorria à espera dos hóspedes, a quem abraçou.
– Mamãe?
– Espera-os na sala do meio. Entrem.
Argemiro aprendera com a mulher a chamar a baronesa de mamãe; percebendo agora quanto aquele título comovia o coração da velha, continuava a dispensá-lo de bom grado. Era como se a alma da morta lhe passasse pelos lábios todas as vezes que dizia essas duas sílabas amadas.
A baronesa era uma senhora gorda, alta, de lindos olhos negros e cabelos completamente brancos.
Tinha as faces flácidas, a carne do pescoço descaída, a boca larga, a testa curta e ainda roubada pela espessura das sobrancelhas escuras. Cosia sentada em uma cadeira de balanço, ao lado de uma mesa redonda, coberta de um pano escuro e onde floria em um vaso um ramo de crisântemos pálidos.
– Benvindos sejais! – exclamou ela com a sua voz forte, de contralto.
Argemiro beijou-lhe a mão e sentou-se a seu lado. Caldas entreteve-se a conversar com o barão, que, pedida a vênia, cobrira com o boné de seda os seus cabelos brancos e encaracolados.
– Então, meu filho, como acha sua filha?
– Forte... muito alta!
– Cresce de dia para dia! Se não vivesse no campo, com esta liberdade, não sei que seria... Precisa ralhar com ela; está muito voluntariosa...
– Tem a quem sair...
– A mãe era um cordeirinho...
– Mas a avó é enérgica. E eu...
– Você é um homem. Sua mulher puxava toda ao tipo do pai; Gloriazinha saiu mais a mim... olhe para aquelas sobrancelhas!...
– Parecem uns bigodes! – retorquiu Argemiro para fazer zangar a filha. E depois de a beijar nos olhos: – E a respeito de estudos?
– Isso! fale-lhe nisso! É uma vadia de força... o avô não se cansa de a chamar e de ensinar-lhe as lições. Mas santos de casa...
– Pois chamemos os de fora. Vai buscar os livros, Glória.
– Ora, papai... depois... eu...
– O que ela quer é andar como os cabritos, aos saltos e correrias... eu, enfim, consinto nisso, porque com aquele crescimento não deve haver sujeição... Graças a Deus, ela tem uma saúde de ferro.
– Por isso mesmo precisa ter outros modos... se a puséssemos em um colégio?
Pelos olhos da baronesa passou a sombra de um desgosto e ela disse:
– Se quiserem matá-la...
O barão protestou:
– Isso nunca. Colégios nem para rapazes. São lugares de perdição. O que temos a fazer é interessá-la pelo estudo.
– Mas como?
– Há de haver um meio... Ó Glória, vai tocar a tua última lição, anda. A professora de música não está descontente...
Glória amuou.
– Eu não sei nada!
– Como não sabes?! Vai tocar!
– Não...
– Glória!
– Não...
– Esta menina!
Argemiro olhava para a filha com desgosto. A baronesa interveio:
– Depois do jantar teremos tempo; ela está com vergonha... manda servir o jantar, Glória; depois tocarás...
Glória aproveitou o ensejo e correu para o interior, onde daí a instantes soavam as suas gargalhadas fortes, muito barulhentas.
O pai informou-se, voltando-se para o sogro:
– Como vai ela na leitura?
O velho abanou a cabeça, sorrindo; mas a avó exclamou, dirigindo-se ao Caldas:
– Se ela quisesse! Não imagina o talento que aquela menina tem! Aprende tudo com uma facilidade espantosa, de relance! Mas o diabo é que ela não quer! – asseverou o avô, rindo.
– Ora! não é tanto assim; o sr. Caldas é capaz de pensar que a nossa Glória é uma analfabeta!
– Quase.
– Ora, não digas isso! Ela lê... e escreve... e demonstra muito jeito para a música. Afinal, não se educa para doutora nem para professora. No meu tempo não se exigia tanto...
– Não é razão. A mulher hoje precisa ser instruída, solidamente instruída, mamãe, e eu quero, eu exijo que minha filha o seja.
– Está direito, mas sempre quero saber se o sacrifício do estudo tem compensações verdadeiras! Andar atrás de uma pobre criança o dia inteiro, fazendo-a conjugar verbos e compor e recompor orações gramaticais, atirando-lhe para dentro da cabeça nomes de terras e complicações matemáticas; curvar-lhe a espinha em cima de mapas e linhas geométricas, cansar-lhe a vista antes do tempo, roubando-lhe a liberdade que dá saúde, alegria e ousadia, olhem que não me parece obra de amor nem de caridade! Eu, cá por mim, confesso: fujo da sala de estudo quando vejo meu marido chamar a neta para a lição...
– Eu imagino que ele há de ser muito ríspido... – comentou Caldas, sorrindo. Argemiro pegou nas mãos da sogra e disse:
– Mamãe, talvez a senhora tenha razão; mas a verdade é que Glória já chegou a uma idade em que não deve ser tratada como o animalzinho amimado que é. Precisamos prepará-la para o futuro, que é sempre incerto. Imagine que um dia, que infelizmente há de vir, faltem à nossa Glória os seus cuidados, os do avôzinho e os meus... que será dela, se for uma ignorante, ela que é tão impulsiva e... tão geniosa; hein?
– Quando isso acontecer, para longe o agouro, sua filha estará casada!
– Estará ou não. E se for mal casada? Se o marido esbanjar toda a sua fortuna e a atirar depois às urtigas?
Os olhos da baronesa encheram-se de lágrimas; o velho pigarreou, advertindo o genro que avançara demais no caminho das hipóteses; mas a baronesa reagiu, sorrindo:
– Glória casará bem, com um homem que a ame e a respeite. Não faltava mais nada! minha neta mal casada! pobre... desprezada... precisando trabalhar para viver... que coisa horrível!
– O que é horrível, mamãe, não é trabalhar; é não saber trabalhar!
– Ora... a necessidade é o melhor mestre; se algum dia... oh! não! nem pensar nisso!... A minha Glória nasceu para ser amada. Eu leio naqueles olhos esse destino... É um pouco brusca... é um tanto autoritária... ora adeus! os homens gostam disso.
Riram-se e o riso abafou um suspiro em que o Argemiro murmurou:
– Eu queria-a mais meiga.
– Vovó, o jantar está na mesa! – gritou Gloriazinha do corredor, falando com a boca cheia.
– Já ela me foi às nozes... não tenho remédio senão concordar com ela; é um diabinho e é assim que eu a amo!
Foi só à sobremesa que Argemiro declarou ter tomado uma governanta para casa, e querer daí em diante ter uma visita da filha todas as semanas. Era um sacrifício para ele, homem tão ocupado, ir ali amiúde. Assim dividiriam o trabalho.
A sua Gloriazinha iria jantar com ele todos os sábados, que era o seu dia mais livre.
A sogra parecia aterrada.
– Uma governanta!... quem a inculcou? – perguntou ela, mal disfarçando a sua má impressão.
– Ninguém; respondeu o genro placidamente; – arranjei-a por anúncio.
A baronesa pulou na cadeira.
– Por anúncio! meteu em sua casa, na casa da minha filha, uma mulher por anúncio! E quer confiar-lhe a sua filha, durante as horas em que ela estiver na cidade! Oh! meu amigo, isto não parece seu!
– Que queria, mamãe, que eu fizesse! Quantas e quantas vezes lhe pedi que me ajudasse a arranjar uma preceptora para Maria e que fosse ao mesmo tempo governanta da minha casa, e a senhora não se quis nunca dar a esse trabalho... Afinal, eu não lhe roubo a neta. Maria da Glória irá só aos sábados. É justo que eu também goze um pouco da companhia de minha filha. Voltará no próprio sábado, ou no domingo pela manhã...
– Era só o que faltava... Glória dormir fora de casa, entregue a uma mulher saída Deus sabe de onde! Uma mulher de anúncio! Uma... – a baronesa conteve-se; e depois de uma pausa, em que bateu com o garfo na mesa: – É velha, ao menos, essa criatura?
– É moça...
– Hein?!
– Tem vinte e poucos anos.
– Não é possível, Argemiro, ter essa mulher em casa!
– Por quê?!
– Não é conveniente...
– Pois já lá está. Entrou esta manhã.
– Poderá sair esta noite...
– Não. Eu já esperava esta tempestade, e pela milésima vez direi isto: eu não podia dispensar em casa uma pessoa que soubesse dirigir os meus criados, coisa de que eu sou incapaz. Reparem bem para o Feliciano. Veste-se no meu guarda-roupa, fuma os meus charutos, folheia as minhas revistas e serve-se da minha carteira muito melhor do que eu! Os outros, por seu lado, roubam como podem e trazem o serviço mal acabado, feito por favor... Além disso, eu quero ter minha filha à minha mesa, uma vez por semana, ao menos, e não podia deixá-la só, entregue a homens, e que homens! Concordem que não é exigir muito!
– Pois sim! Fizesse tudo isso, mas arranjasse governanta respeitável, mulher idosa e com bons certificados... Conheço o seu caráter, sei que não poria nunca minha neta em contato com uma... – Aí tremeu o queixo à baronesa e ela concluiu sufocadamente:
– Pobre da minha filha!
Houve um silêncio constrangido. O barão interrompeu-o:
– Bom, bom! Está tudo determinado: aos sábados Glória irá visitar o pai. É muito justo...
– A moça é bonita, papai? – perguntou Glória.
A baronesa olhou para o genro com curiosidade.
– Não sei... falei-lhe uma vez só, e ela levava a cara tapada por um véu lavrado, muito espesso. Mas não me pareceu bonita; nem mesmo isso me importa. Quanto aos atestados, mamãe, ela deu-mos e bons. O padre Assunção tomou algumas informações a seu respeito e todas excelentes. Está claro que eu não tomaria levianamente uma mulher, a quem, embora por poucas horas, terei de confiar minha filha.
– Eu preferiria que você desmanchasse a casa e viesse morar conosco... não sei o que parece ir uma mulher estranha para o lugar de... minha filha...
– Oh, mamãe, que lembrança! A senhora repare que esta é uma mulher mercenária, uma alugada, pouco mais do que criada, não passa disso... O lugar de Maria é insubstituível no meu coração, bem o sabe, melhor que ninguém. Quanto a eu morar aqui, isso é absurdo; preciso viver na cidade: os meus negócios não me permitem este luxo do campo... Agora só lhe peço uma coisa: tomar esta minha resolução como irremediável e aceitá-la, ao menos, por algum tempo...
Glória assistira a toda a cena com muita atenção. O avô só no final se lembrou da conveniência de a afastar. Caldas, um pouco constrangido, demorava-se a descascar a sua laranja, conservando um silêncio discreto, e foi só depois do jantar que ele pôde convencer o barão a vender as suas terras ao ministro para a formação da colônia suíça, exploradora dos laticínios.
A baronesa retirou-se para o seu quarto, declarando uma enxaqueca súbita. Argemiro aproveitou um momento para conversar um bocado com a filha.
– Escuta, meu amor, por que é que tu não modificas esses teus modos de rapaz? Já estás crescida.
Ela abraçou-o com frenesi pelo pescoço.
– Olha que me amarrotas o colarinho! – disse ele rindo. – Não me respondes?
– Eu não sei!...
– Gostas de ir jantar comigo todos os sábados?
– Se gosto! Havemos de ir ao teatro, sim, papai?
– Ainda é cedo... terás tempo...
– Eu tenho uma vontade doida de ir ao teatro!...
– Irás... irás, se fores boazinha e dócil a teus avós... teu avô queixa-se de que estudas pouco... não quero isso.
– Não gosto de estudar; não gosto e não quero.
– Não quero?! não quero! então isso é coisa que se diga?!
– É. Eu não quero mesmo! Se o papai soubesse como é aborrecido estudar! Outro dia fiquei com tanta raiva que até rasguei o livro!
– Oh!
– Que espanto! Olhe, foi assim: vovô lembrou-se de me chamar, exatamente quando eu ia para a horta ajudar a Emília a apanhar vagens...
– É muito divertido apanhar vagens?
– É mais divertido do que estar sentada ao pé de vovô, na sala, com a pena na mão ou o livro diante dos olhos! Eu estava lendo e estava pensando na horta, estava escrevendo e estava pensando na horta, estava fazendo contas e a maldita horta não me saía da cabeça!... Vovô ralhou comigo; eu não sei que disse e ele levantou a régua para me dar... vovó entrou, zangou-se com vovô... Saíram os dois, eu fiquei sozinha... um pouco arrependida... quis estudar... abri o livro, mas não sei o que é que tinha nos olhos, que não via bem... então, desesperada, rasguei o livro...
– O que tinhas nos olhos eram lágrimas, minha filha, lágrimas de remorso por teres respondido mal ao teu avô, que te ama tanto, e teres sido causa de outro desgosto ainda maior...
– Oh! papai! – exclamou Glória, atirando-se de encontro ao peito de Argemiro, lacrimejante.
– O que me vale é que tens bom coração...
Durante a viagem de regresso, Argemiro e Caldas falaram pouco. Um pensava na família, o outro em negócios. Foi já quase no fim que Argemiro desabafou:
– Preciso tomar uma resolução séria a respeito de minha filha. Viste bem como a educam? O avô não sabe ser severo; a avó prejudica-a pelo seu excesso de amor, e a menina cresce cheia de vontades e à lei da natureza! Se falo em colégio, arrepiam-se; se falo em trazê-la para mim...
– Estás doido? tê-la contigo, como? Olha que eu não quis nem podia intervir naquela cena de família; mas a tua sogra tem razão. Que diabo! uma mulher, arranjada por anúncio, pode lá tomar conta de uma menina que está exatamente na idade mais delicada da mulher! Deixa a pequena com os velhos e arranja-se uma preceptora inglesa ou alemã. Verás o milagre. Vocês custam a atinar com as coisas simples! São uns complicados...
– Talvez tenhas razão...
– Por força. Eis-nos chegados. Aparece amanhã na Câmara, às duas horas; o Teles vai soltar o verbo. Não faltes.
Argemiro chegou a casa muito fatigado e entrou para o seu quarto. Estranhou logo ao princípio qualquer coisa que não pôde determinar o que fosse, mas que o impressionou bem. Ao pendurar a roupa no cabide de pé, viu que o tinham aliviado do grande peso de ternos de casimira, que o Feliciano deixava acumulado ali semanas e semanas, por preguiça de os escovar e guardar. Enfiando o robe-de-chambre, notou que lhe tinham pregado um botão que lhe faltava. E pensou: “Realmente, só as mulheres sabem governar bem uma casa...”
Sentou-se ao lado de uma mesa a ler um jornal, mas a folha descaiu-lhe das mãos e ele pôs-se a olhar para um retrato da mulher, suspenso em um cavaletezinho de prata fosca. A saudade da sua morta revivia todas as vezes que vinha de ver a filha; sentia-lhe a falta então, poderosamente. Se ela vivesse! Ah, se ela vivesse correria tudo suavemente!
Argemiro levantou o retrato e contemplou-o de perto. Quantas vezes beijara aquela fronte larga e pálida, emoldurada por cabelos loiros, que tão mal se adivinhavam na fotografia! Que pena não ter Glória herdado a finura daquelas feições, tão bem delineadas, tão puras, nem a doçura daquele caráter, que só o ciúme conseguia agitar. Pobre ciumenta, quantas torturas inventara para seu martírio! Que imaginação a dela para criar fantasmas de amores...
Argemiro cerrou os olhos, depondo o retrato sobre a mesa; e calculou: se ela fosse viva estaria agora com trinta e dois anos... teríamos um rancho de filhos... um rapaz... Tanto desejei um rapaz!... e Maria teria outra educação... Pobre da minha filha, foi a sacrificada!...