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A Luneta Mágica/II/XI

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Entre o primeiro e o segundo processo tivemos uma hora de folga, que tanto durou o conselho secreto.

O meu velho amigo, cujo nome quero agora declinar, o Sr. Nunes, veio sentar-se junto de mim: apertei-lhe a mão com força, prazer e confiança; pois era a ele que eu devia o ter ido à casa do Reis, onde encontrei o maravilhoso armênio.

— Então? perguntou-me o velho; que tal achou a luneta?... estou ansioso por sabê-lo; não dormi um instante toda a noite; que me diz da luneta?

— É admirável, meu amigo.

— É, na verdade mágica?

— Estupendamente mágica.

— Conte-me alguma coisa...

Contei-lhe tudo.

Cometi um erro, sendo completamente franco na exposição de todas as minhas experiências, e outro, ainda maior, na confidência dos meus dois projetos, o de encarregar a um procurador hábil o arranjo dos meus negócios com o mano Américo, e o de criar para mim uma família, casando com uma jovem formosa e pura.

O velho Nunes sorriu-se agradavelmente, com expansão de amizade, apertando-me as mãos, e desfazendo-se em felicitações: a alegria radiava-lhe nos olhos e no rosto. Que excelente e nobre homem!... que diferença entre ele e os meus três parentes!...

No fim de alguns minutos em que me pareceu refletir, disse me:

— Eu creio que nasci predestinado para lhe ser útil.

— Já lhe devo muito.

— E vai dever-me mais; o seu primeiro projeto e justo; mas arriscado. . .

— Por quê?

— Mal pode calcular como são alicantineiros, palros e vorazes quase todos os procuradores e solicitadores que por aí andam, e receio muito vê-lo cair nas garras de algum desses trapaceiros.

— Pensa? ..

— Mas ainda bem que eu sou também solicitador no foro da corte, e tenho orgulho da reputação de probidade e de dedicação, que ninguém ousa disputar-me; o trabalho me sobra, e o tempo me falta; mas para servi-lo, ofereço-me de corpo e alma para concluir em poucos dias todos os negócios que tem com seu irmão e sem escândalo nem desgosto.

— Oh! meu bom amigo!

— Pode chamar-me assim; tenho queda para o senhor; amanhã há de jantar comigo: quero apresentar-lhe minha mulher que é uma santa e minha filha que é uma flor do paraíso

Senti-me cativo do honrado e generoso velho e para melhor apreciá-lo, fixei a luneta, ele porém voltou o rosto imediatamente; três, cinco, dez vezes repeti a manobra, e o Sr. Nunes outras tantas fugiu com o semblante, e por fim ao sair o conselho da sala secreta, mudou o velho de cadeira e sentou-se exatamente diante de mim, dando-me portanto as costas.

Admirei tanta modéstia, e ensaiando uma nova experiência, pus a luneta em ação e olhei o velho Nunes pelas costas durante sete minutos.

Oh! luneta sublime! não há recurso que possa anular a tua força!

Eu vi perfeitamente o homem.

Misericórdia! que enormíssimo tratante é o Sr. velho Nunes! — afável, obsequiador, loquaz, insinuante, sabe um por um todos os segredos das traficâncias que desmoralizam o povo: tem falsificado documentos, rasgado e sumido folhas de autos, já furtou a firma de um juiz, já solicitou pró e contra em mais de vinte causas, tem comprometido interesses, demolido fortunas, e ainda não entrou na casa de correção!... aluga-se, quando não lhe convém vender-se, e vende-se apenas lhe chegam ao preço; tem de seu mais de cem contos de réis torpemente adquiridos, e é usurário de profissão; surrava os escravos sem piedade, vendeu-os todos há poucos meses, arremata outros em praça para vendê-los em breve prazo, e é entusiasta da emancipação; é cabalista admirável de eleições, tem sido eleitor por todos os partidos, e votado como eleitor nos candidatos que lhe compraram os votos por dinheiro, e por transações que valem dinheiro. Exalta os gozos suaves e a santidade do lar doméstico, e no lar doméstico dá pancadas na mulher, que o teme e que o detesta, e vive em guerra aberta com a filha porque ela em doces e costuras que faz ganha somente bastante para se vestir.

E, o que é mais, eu me vi, eu me encontrei e me reconheci nos cálculos da mente do velho Nunes!... elo sabe melhor do que eu a quanto chega a minha fortuna, planeja explorá-la em seu proveito, desacreditar, infamar meu irmão, ou negociar com ele em meu prejuízo, e finalmente concebeu a idéia de casar-me com sua filha!!!

Tive horror do execrável Nunes, a quem mais nunca darei o nome de velho amigo; senti-me, porém, desconsolado e triste, descobrindo tanta malvadeza, em quem supunha tanta bondade e virtude.

É ainda uma desilusão! é ainda um turvo desengano a arrastar-me à desconfiança e talvez em breve ao aborrecimento dos homens.

Sai do júri mais sombrio e abatido do que os réus que por ele acabavam de ser condenados.